método hermenêutico

Interpretação conforme a Constituição tem limites

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15 de dezembro de 2012, 7h00

As palavras da lei nem sempre são precisas, embora a lei sempre precise de palavras. Infelizmente, a invulgar tarefa legislativa nem sempre é exercida com o denodo e cuidado, gerando situações de dúvida e intranquilidade social. Nesses casos de vagueza, dubiedade ou abertura linguística, é permitido ao Supremo Tribunal Federal o uso da técnica de interpretação conforme a Constituição, cujo objetivo é adequar semanticamente os sentidos normativos da lei, evitando a sempre traumática declaração de inconstitucionalidade. Disse traumática porque o apressado da vida muitas vezes não deixa transparecer a gravidade institucional de uma norma lesiva à soberania constitucional. Aliás, vivemos um tempo tão acrítico e confuso que tudo parece permitido e, sem sentir, passamos a abdicar, gradativamente, da capacidade de refletir sobre os altos temas que nos são relevantes, fazendo dessa patológica permissividade social um instrumento de liquefação das regras éticas, morais e jurídicas que norteiam nossas relações humanas individuais e coletivas.

Ora, o fato é que a inconstitucionalidade não pode ser banalizada, pois o ato inconstitucional configura a ilegalidade de máximo grau. E, assim o é, porque, quando a lei agride a Constituição, estamos diante de um flagrante exercício ilegítimo da prerrogativa democrática de regrar a vida em sociedade. Nesse contexto, o juízo de inconstitucionalidade emite, intrinsicamente, uma mensagem de reprovação judicial ao desempenho político do Congresso que, ao fazer uma lei inválida e viciada, acaba por extravasar os poderes do mandato popular, confundindo liberdade democrática com arbítrio legiferante. Sabidamente, lei e arbítrio são institutos inconfundíveis que, uma vez misturados, produzem o pus do autoritarismo político. Logo, a firme defesa da Constituição é a garantia genuína e autêntica de proteção e efetividade dos direitos fundamentais do povo e da própria democracia institucionalizada contra toda e qualquer arbitrariedade de maiorias parlamentares eventuais.

Deitadas algumas premissas, é possível vislumbrar o quão delicada é a tarefa do Supremo ao analisar a constitucionalidade das leis em tese. Não tendo o colorido do caso concreto, o Tribunal apenas dispõe do cotejo preto e branco da lei com a Constituição. Consequentemente, é impossível à Alta Corte vislumbrar o infinito de situações que a lei poderá gerar no mundo dos fatos. Sobre o ponto, cai como uma luva a advertência do eminente ministro Thompson Flores: “A letra cristaliza o direito, mas não cristaliza a aplicação, porque a vida é rica e exige, dia por dia, que seja vivificado, frutificado”.[1] Dessa forma, somente nos casos de inconstitucionalidade flagrante e incontestável é que a declaração do vício legislativo haverá de ser proferida, ou seja, no manejo dos instrumentos de controle da constitucionalidade, o egrégio STF deve, sempre que possível, procurar salvar a lei. E, aqui, ganha força e oportunidade a técnica da interpretação conforme a Constituição.

Em decisão paradigmática, o ínclito ministro Moreira Alves, após reconhecer e saudar a potente valia constitucional do método hermenêutico, fez o seguinte apontamento: “se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo“[2]. Como se vê, o uso da técnica da interpretação conforme a Constituição deve estar adstrito a dois limites intransponíveis: 1) o Supremo não pode usar tal técnica para legislar positivamente, criando hipóteses não previstas na lei ou estendendo eficácia a situações sobre as quais o legislador silenciou; e, 2) a interpretação conforme à Constituição não poderá subverter os sentidos das palavras da lei, passando a dizer termos ou expressões alheias ao bojo material de significação da norma em exame de constitucionalidade.

Trocando em miúdos: se a lei disse que se aplica a “casas vermelhas”, a interpretação conforme à Constituição não poderá dizer que a norma interpretada se dirige a “edifícios vermelhos” ou a “prédios azuis”. Em outras palavras, para salvar a lei, o Supremo não poderá sacrificar os limites institucionais de sua ação hermenêutica. Se isso fosse possível, estaríamos substituindo o arbítrio legislativo pelo subjetivismo judicial e, assim, ao invés do avanço, estaríamos apenas trocando um retrocesso por outro.

A Suprema Corte, sem dúvida, pode muito, mas, dentro de um modelo de freio e contrapesos, não pode tudo. Assim como o legislador não pode prolatar sentenças judiciais, o juiz não pode ditar a lei. A questão, portanto, é estabelecer limites para que a palavra “interpretar” não seja confundida com “legislar”. Na verdade, a interpretação é uma espécie de coeficiente de elasticidade da norma: algumas são mais rígidas, enquanto outras são mais flexíveis. Todavia, sempre haverá um ponto de saturação que, se rompido, deslegitimará o uso da ferramenta hermenêutica, configurando uma interpretação disforme à Constituição. Portanto, por melhores que sejam as intenções, existem casos que a declaração de inconstitucionalidade é uma realidade incontornável, pois o vício legislativo supera a possibilidade construtiva da interpretação judicial.


[1] in Recurso Extraordinário nº 56114/ES, Terceira Turma do STF, j. 6.XII.1968.

[2] in Representação 1417/DF, Pleno do STF, j. 9.XII.1987

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