A reforma da Câmara dos Lordes chega ao seu clímax
15 de agosto de 2012, 7h50
Símbolo ou sintoma desse novo tempo, é a Fala do Trono de 2012, na qual a rainha Elizabeth II anunciou a intenção de seu Governo de apresentar um projeto de reforma da Câmara dos Lordes. A principal mudança consiste na eleição de seus integrantes, em substituição ao modelo de membros vitalícios. Esta é uma proposição altamente polêmica e que não goza do apoio de parte significativa dos deputados conservadores da Câmara dos Comuns. As vozes contrárias fundamentam-se em razões de variegada ordem: a) o enfraquecimento da posição dos comuns, ante o surgimento de outra espécie de representação parlamentar eleita; b) a perda de força do Partido Conservador em um Parlamento sem a Câmara vitalícia; c) a necessidade de um referendo popular para aprovação dessa reforma constitucional; d) a perda da capacidade da Câmara dos Lordes de se manter distante das polêmicas políticas e de conservar sua autoridade para exigir que o Governo preste contas de sua administração.[1]
A criação de “lordes eleitos”, na prática, extingue os últimos vestígios do modelo aristodemocrático que sempre regeu o Parlamento britânico. No início do século XX, na administração H. H. Asquith, o ministro da Fazenda David Lloyd George apresentou um proposta orçamentária que previa aumento significativo na tributação territorial rural, o que contrariava os interesses da maior parte dos membros da Câmara Alta. Com a ameaça de veto ao projeto de lei pelos lordes, instalou-se uma crise constitucional. O primeiro-ministro Asquith propôs ao rei George V que fossem criados 500 novos cargos na Câmara dos Lordes, com a indicação de pessoas ligadas ao Partido Liberal, o que garantiria a aprovação de uma reforma que diminuísse os poderes desse plexo parlamentar. Se os lordes pretendiam exercer seu direito de veto, que o rei criasse tantos lordes quantos necessários para lhes mostrar quem realmente detinha o poder no Parlamento. O rei, ciente do que isso representava para a legitimidade monárquica, forcejou em aceitar a ideia de seu ministro, até que cedeu a suas instâncias. Antes que a proposição fosse levada a cabo, os lordes recuaram e a reforma passou sem restrições significativas. O Ato do Parlamento de 1911 foi um marco no processo de enfraquecimento dessa casa de bases originalmente aristocráticas.
Na administração trabalhista de Tony Blair, nos anos 1990, aprofundou-se a reforma da Câmara dos Lordes, com a eliminação do direito automático dos “pares do Reino” de terem assento parlamentar. Nesse processo, houve o preenchimento das vagas por meio da indicação de pessoas ligadas aos partidos políticos, oriundas de diferentes procedências, como juristas, cientistas, líderes sindicais e representantes de grupos étnicos minoritários.
A Câmara dos Lordes também possuía, em paralelo às altas funções legislativas, competências jurisdicionais. Ela deteve, até 2009, o status de última instância recursal em matéria penal da Inglaterra, do País de Gales e da Irlanda do Norte. Em matéria cível, além dessas partes do Reino Unido, a Câmara também exercia a jurisdição em último grau sobre a Escócia.
A perda dessas funções jurisdicionais, exercidas pelo Comitê Recursal da Câmara dos Lordes, deu-se com a criação da Suprema Corte do Reino Unido, órgão dotado de autonomia orçamentária e de corpo de pessoal específico.
A Suprema Corte, além de possuir regras próprias de nomeação de seus membros, é composta por doze juízes, nomeados pela rainha, após indicação e seleção por um comitê de nomeações. Seus juízes podem ser escolhidos de entre pessoas oriundas dos tribunais judiciários, das associações de advogados e da sociedade civil.
As tentativas de reforma da Câmara dos Lordes, com o objetivo de convertê-la em uma espécie de Senado, nos moldes republicanos, não avançaram ao longo da primeira década do século XXI, até a ocorrência do episódio da venda de títulos de nobreza pelo Partido Trabalhista, como descrevem Gary Slapper e David Kelly:
“Em setembro de 2003, o governo expediu outra consulta pública propondo a extinção do cargo dos 92 nobres hereditários da Câmara dos Lordes, sem prever qualquer outra reforma. Após isso, esperava-se que o Projeto de Reforma da Câmara dos Lordes seria publicado em fevereiro de 2004, mas em face do desconforto potencial na Câmara dos Comuns sobre a falta de representação democrática na câmara superior, e uma revolta pela Câmara dos Lordes, o governo atrasou tal medida. Entretanto, com o surgimento do que inevitavelmente ficou conhecido como o escândalo da ‘compra de nobreza’ em março de 2006, quando se alegou que o Partido Trabalhista estava nomeando pessoas para a Câmara dos Lordes com fundamento em suas contribuições relevantes em dinheiro para o Partido, o argumento a favor de uma Câmara superior eleita, e não nomeada, ficou ainda mais forte”.[2]
A transformação derradeira desse órgão legislativo terá implicações profundas naquilo que se conhece por sistema jurídico inglês. Questões como a separação dos poderes, a independência judicial e o exercício do controle normativo por um órgão do Parlamento (como era o comitê recursal da Câmara dos Lordes) eram apresentadas como um exemplo da excentricidade do modelo inglês. Tão peculiar e incomum, tão imprevisível e casuístico quanto seu clima, seu modo de encarar o mundo e suas relações com os outros povos.
No que se refere à perda das funções jurisdicionais, por agora, a impressão que essa mudança trouxe foi a de que “a nova Suprema Corte não terá a natureza da maioria das outras supremas cortes, pois não será uma corte constitucional como elas e não terá poderes para invalidar leis. Em consequência, embora as alterações propostas claramente aumentem a aparência de separação dos poderes, a teoria de soberania parlamentar permanece intocada. Presume-se que foi a falta de tal poder que levou o Lorde Woolf a comentar que a nova corte iria de fato representar a troca de um tribunal de primeira classe (a Câmara dos Lordes) por uma Suprema Corte de segunda classe”.[3]
Quanto ao fim do regime hereditário, ter-se-á o apagar dos últimos vestígios do modelo aristodemocrático no âmbito parlamentar, conquanto ele resista na representação simbólica do poder do Estado na figura da Coroa. A função de moderação exercida pela (ainda) atual Câmara dos Lordes perderia seu sentido. No projeto do primeiro-ministro David Cameron não está claro se haverá a assunção pela nova Câmara de um papel federativo, como hoje se observa nos senados das grandes federações contemporâneas, como o Brasil e os Estados Unidos da América.[4]
Não deixa de ser irônico que essa importante reforma constitucional haja sido apresentada por um governo de coalização, dirigido por um conservador. Aqueles que objetam essa peculiaridade acentuam o caráter da debilidade da liderança de David Cameron, que não é visto como um conservador autêntico. Por outro lado, o escândalo da venda de títulos de nobreza e do pagamento indevido de jetons a membros da Câmara dos Lordes indicados pelo Partido Trabalhista levaram muitos críticos a dizer que, após as administrações de Tony Blair e Gordon Brown, a House of Lords não era mais uma casa de senhores respeitáveis. O trocadilho é infame, mas parece ser verdadeiro.
Esses surpreendentes e profundos câmbios, no até então estável e tradicional sistema jurídico inglês, obrigam os estudiosos brasileiros a saírem da zona de conforto dos lugares-comuns e das verdades imutáveis repetidas em salas de aula, com base em lições ultrapassadas de antigos autores de Direito Comparado. Os tempos novos chegaram. É preciso adaptar-se a eles.
[1] http://www.telegraph.co.uk/news/politics/9255520/Queens-Speech-2012-Cameron-urges-Tories-to-back-Lords-reform.html. Acesso em 13-8-2012.
[2] SLAPPER, Gary; KELLY, Gary. O sistema jurídico inglês. Tradução de Marcílio Moreira de Castro. Revisão técnica: Francisco Bilac M. Pinto Filho (capítulos 1 a 8), Monique Geller Moszkowicz (capítulos 9 a 15). 1 ed. brasileira. Rio de Janeiro : Gen, Forense, 2011. p. 68.
[3] SLAPPER, Gary; KELLY, Gary. Op. cit. p. 191.
[4] A íntegra do projeto de lei pode ser consultada em: http://www.official-documents.gov.uk/document/cm80/8077/8077.pdf. Acesso em 13-8-2012.
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