Sigilo bancário

Acessar dados de cartão de crédito afronta Constituição

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11 de agosto de 2012, 6h51

Muito se tem presenciado a autuação de pessoas jurídicas por informações obtidas por meio das administradoras de cartões de crédito. Ocorre que, por muitas vezes, tais autuações não são precedidas de processo administrativo, bem como autorização judicial para que o chamasse de quebra de sigilo fiscal.

Verifica-se que sem o prévio processo administrativo, os contribuintes autuados são usurpados de seu direito de defesa, ou seja, há pleno cerceamento de defesa.

Evidente que a obtenção de informações pelo Fisco de forma ilegítima e sem autorização judicial prévia viola garantia constitucional de intimidade e de sigilo bancário. O Fisco pode sustentar a legalidade do ato na Portaria CAT-87, de 18 de outubro de 2006, porém autuou-se a contribuinte antes de instaurar um processo administrativo e cumprir o dispositivo do artigo 142, do Código Tributário Nacional. Haja vista que o lançamento tributário do AIIM, ora impugnado, baseou-se em indícios e ficções jurídicas.

O dever de instauração de processo administrativo antes de qualquer autuação está disciplinado na Lei do Sigilo Fiscal, Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, no artigo 6º, abaixo:

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.(g.n)

Além disso, o artigo 197, inciso II, do Código Tributário Nacional, Lei Geral Tributária, determina a intimação prévia e escrita da instituição operadora de cartões de crédito para prestar informações sobre a movimentação financeira de cada indivíduo, o que não ocorreu no caso em tela. Vê-se que a contribuinte, também, não autorizou qualquer disponibilização dos dados bancários, sendo de extrema necessidade que ocorresse, haja vista serem informações pessoais.

O Tribunal de Impostos e Taxas decidiu veementemente:

ICMS – FALTA DE PAGAMENTO DO IMPOSTO – OPERAÇAO CARTAO VERMELHO – OMISSÃO DE RECEITAS – MOVIMENTO REAL TRIBUTÁVEL APURADO COM BASE EM INFORMAÇÕES OBTIDAS JUNTO A ADMINISTRADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITO – APLICAÇÃO DAS DISPOSIÇÕES DO ARTIGO 6° DA LEI COMPLEMENTAR N° 105/2001 – PRECEDENTES JUDICIAIS QUE CONDICIONAM A QUEBRA DO SIGILO FISCAL E BANCÁRIO À INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO – RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO PARA, EX OFFICIO, CANCELAR O AIIM EXORDIAL.[1]

Ademais, há situações em que a operação realizada pelo Fisco não notifica os contribuintes da investigação em andamento, cerceando o contraditório e ampla defesa, bem como a possibilidade de apresentação dos livros registros. As informações unilaterais obtidas sem autorização judicial prévia ou sequer prova de que os informes tenham sido fornecidos de fato pelas operadoras de cartões de crédito caracteriza um possível abuso de poder.

O Juiz Randolfo Ferraz de Campos esclareceu:

Ora, embora tenha acessado os dados fornecidos pelas empresas administradoras dos cartões na forma disciplinada na Portaria CAT-87, de 18 de outubro de 2006, a respeito de operações efetuadas nos anos de 2007 e 2008 cujo pagamento se deu através de cartões de crédito e de débito pertinentes à autora, o que teria fundamento legal (art. 5º da Lei Complementar n. 105/01), a ré deixou de instaurar em seguida processo administrativo ou mesmo procedimento fiscal, inclusive para nele evidenciar os imprescindíveis aspectos tratados no art. 144, caput, do C.T.N. (fato jurídico tributável para verificar sua ocorrência quanto aos aspectos materiais, temporais e espaciais, identificar o sujeito passivo, contribuintes e responsáveis além da natureza e extensão da responsabilidade, encontrar os valores inerentes à base de cálculo e a ela sobrepor a alíquota e apurar o montante do tributo a pagar, fixando os termos de exigibilidade, condições e formas de pagamento) mediante acesso aos documentos, livros e registros das operadoras dos cartões de crédito e débito, inclusive para associar aos documentos, livros e registros da própria autora (e também das instituições financeiras como bancos com os quais estivesse a operar) por meio de fiscalização direta sobre eles. Ou seja, agiu a ré com base apenas nos dados das administradoras de cartões de crédito.[2]

E concluiu explicitamente:

Agiu, pois, a ré com ofensa ao art. 6º, caput, da Lei Complementar Federal n. 105/01, c.c. art. 192 da Lei Magna Federal, pois, ainda que se reconheça não ser absoluto o sigilo dos dados da autora no campo das operações por ela realizadas através de cartões de crédito e de débito, o acesso a eles com fundamento no art. 5º da mesma lei não a eximia de buscar elementos outros para associá-los àqueles dados, agora por meio de devido processo (ou procedimento, se o caso) legal na forma preconizada por aquele primeiro comando legal. [3]

A imputação do AIIM que somente se baseia nas informações de uma única operadora de crédito é ato ilegítimo, uma vez que não há, como é sabido, confrontamento com outros dados existentes sobre a movimentação financeira.

Leandro Paulsen dispõe de maneira objetiva sobre o sigilo bancário:

"É fundamental que associe as informações financeiras a outros dados ou que, ao menos, demonstre certa regularidade nos ingressos, pagamentos e investimentos a demonstrarem padrão de receita superior ao declarado".[4]

É evidente a conclusão de que é indispensabilidade da intervenção do Poder Judiciário no acesso aos dados financeiros de pessoas físicas e jurídicas.

Ainda que se considere como não absoluto o sigilo bancário, o Fisco tem o dever de confrontar os dados, bem como preconiza o Supremo Tribunal Federal:

“o sigilo bancário, espécie de direito à privacidade protegido pela Constituição de 1988, não é absoluto, pois deve ceder diante dos interesses público, social e da Justiça. Assim, deve ceder também na forma e com observância de procedimento legal e com respeito ao princípio da razoabilidade".[5]

 

Cita-se outro precedente do Excelso, o qual:

 

“se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege art. 5º, X não é um direito absoluto, que deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade”.[6]

O Tribunal de Justiça de São Paulo é veemente em suas decisões: “O sigilo bancário é garantido pela Constituição Federal (art. 5o, incisos X e XII), e a sua quebra somente pode ser deferida em casos excepcionais”.[7]

Ademais, há de se ressaltar o que preceitua o Tribunal de Impostos e Taxas sobre o assunto:

 

ICMS. FALTA DE PAGAMENTO DO IMPOSTO APURADO POR MEIO DE LEVANTAMENTO FISCAL COM BASE EM INFORMAÇÕES PRESTADAS PELAS ADMINISTRADORAS DE CARTÃO DE CRÉDITOIDÉBITO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO PRÉVIO À QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO PARA CANCELAR O AUTO DE INFRAÇÃO.[8]

 

Bem como procede tal decisão:

 

ICMS – LEVANTAMENTO FISCAL – OPERAÇÕES COM CARTÃO DE CRÉDITO – SIGILO FISCAL – IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES FINANCEIRAS SEM PRÉVIO PROCEDIMENTO INSTAURADO – Sem procedimento instaurado e sem deferimento da proposta de requisição de dados financeiros, não está o fisco autorizado a utilizar as informações, nem mesmo que estas constem de seus cadastros, pois que, por serem ir1formações financeiras, foram transferidas ao fisco nos termos do art. 50 da Lei Complementar 105/01, devendo ser mantidos em sigilo, conforme o § 5º do mesmo artigo. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.[9]

 

O direito à privacidade deve prevalecer enquanto não haja outro interesse público envolvido de índole constitucional que não a mera arrecadação tributária. De modo sintético, afirma-se que o Decreto 4.489, de 2002, que regulamenta a Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, somente autoriza a Fazenda a cruzar dados de administradoras de cartões com dados fiscais.

Nesse sentido, cruzar informações e lavrar auto de infração e imposição de multa sem prévio processo administrativo possuem ampla diferença semântica. Portanto, torna-se evidente que a utilização dos dados bancários fornecidos pelas empresas de cartões de crédito sem prévia autorização judicial configura afronta aos ditames constitucionais de competência da administração e das garantias fundamentais.


[1] TIT. Recurso Ordinário 45573/2011. Relator: Rosana Ugiolini Benatti. DJ: 07/05/2012.

[2] TJSP. Processo 0.8.26.0053. Relator: Juiz Randolfo Ferraz de Campos. J: 27/02/2012.

[3] TJSP. Processo 0.8.26.0053. Relator: Juiz Randolfo Ferraz de Campos. J: 27/02/2012.

[4] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário. 8ª edição. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 1.332/1.333.

[5] STF. AI 655.298 AgR/SP. Relator: Ministro Eros Grau. J: 4/9/07. DJ: 27/9/07.

[6] STF. RE 219.780/PE. Relator: Ministro Carlos Velloso. J: 13/4/1999. DJ: 10/9/1999. p 2.

[7] TJSP. Agravo de Instrumento 0348549-56.2009.8.26.0000. Relator: Juiz Jesus Lofrano. J: 04/08/2009. DJ: 11/08/2009.

[8] TIT. Recurso Ordinário 120599/2010. Relator: Sylvio Cesar Afonso. DJ: 26/03/2011.

[9] TIT. Recurso Ordinário 681468/2010. Relator: Jefferson Chioro Vieira. DJ: 17/05/2011. No mesmo sentido, TIT. Recurso Ordinário 331351/2011. Relator: Rose Sobral. DJ: 20/01/2012.

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