Jogo do bicho foi ilegalizado por moral anacrônica
26 de abril de 2012, 17h15
Em vários filmes de fantasia, desses que envolvem dragões e outros tipos de bestas mitológicas, sempre existe um segredo atrás de uma grande e impressionante cachoeira. Ali pode estar a toca do dragão, a gruta que serve de casa para o heroi, o tesouro. O que quer que esteja ali, a cachoeira, com a sua imponência, com o jorrar da sua água vívida, teima em esconder.
Fiquei pensando nisso enquanto acompanhava (e continuo acompanhando) o jorrar de notícias, trechos de conversas telefônicas, documentos conseguidos com exclusividade (alguns ao arrepio do sigilo legal, por sinal), enfim, tudo e mais um pouco sobre “Carlinhos Cachoeira” e sua enorme rede de contatos e negócios. É mesmo irônico que o apelido desse personagem seja Cachoeira, porque, no caso dele, é justamente atrás desse jorrar de notícias e informações que se esconde o que é mais importante, mas que poucos parecem tentar encontrar.
O jogo do bicho faz parte da história do Brasil. Parece que ele nasceu mais ou menos junto com o primeiro Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel, então de propriedade do nobre que o criou: o Barão de Drummond. Passou de um sorteio interno ao Zoológico para um jogo de apostas e assim ficou, mais ou menos inerme, até ser ilegalizado em 1941.
O Decreto-Lei 3.688/1941, aprovado unilateralmente por um presidente-ditador sem Congresso funcionando, e apelidado de Lei de Contravenções Penais, tem um interessante capítulo, o capítulo VII da sua Parte Especial. É neste capítulo, dedicado às “contravenções relativas à polícia de costumes”, que figura o artigo 58: “Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração”. Esse artigo é, na verdade, um tipo especial de proibição relativamente à proibição geral a jogos de azar contida no artigo 50.
A razão oficial para proibir o jogo do bicho e os jogos de azar em geral pode ser encontrada nos consideranda de outro Decreto-Lei. O de 9.215/1946, que revogou a revogação do mencionado artigo 50, considerando, entre outras coisas, que “a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal” e que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar”.
Foi, portanto, sob essa justificativa claramente moralista (e hoje anacrônica) que o jogo do bicho passou de prática popular a ilícito penal. É bem verdade que a ilegalização do jogo do bicho não veio sob uma roupagem jurídica muito severa. Imagino que ninguém em 1940-41 tenha pensado em transformar o jogo do bicho em crime, punido com pena de reclusão ou detenção. Acharam por bem colocá-lo com um ilícito penal menor, uma contravenção, bem próxima de outras contravenções similares, tais como a vadiagem (artigo 59: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho […]”), a mendicância (artigo 60: “Mendigar, por ociosidade ou cupidez”; artigo revogado desde 2009), e a embriaguez pública (artigo 62: “Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo […]”).
Foi também nesse contexto de moralismo anacrônico que se criaram as bases para que, muitas décadas depois, alguém como Carlinhos Cachoeira aparecesse, ficasse milionário, e, aparentemente, passasse a dominar a política do estado de Goiás, além de negócios no Brasil inteiro. Olhando para trás parece realmente incrível que um movimento tão inocente, movido por um chamamento da “consciência universal”, fizesse um estrago tão grande na política criminal brasileira.
Tornado ilegal, mas ainda parte da cultura popular, o jogo do bicho estava aberto a quem tivesse a logística criminal para monopolizá-lo. E, assim, aos poucos, fortunas foram feitas e famílias de exploradores do jogo do bicho criaram máfias dignas de histórias napolitanas ou sicilianas. Obviamente, já que o jogo era ilegal, as famílias monopolistas tinham de criar e manter uma rede de colaboradores, seguranças privados e agentes públicos corruptos, de modo que os pontos de apostas fossem divididos com o menor trauma possível, quer entre famílias, quer com o Estado. No belo romance “Agosto”, Rubem Fonseca retrata bem a penetração da polícia do Rio de Janeiro pela propina das famílias monopolistas do jogo do bicho. É claro que, naquela época, as drogas ainda não eram tão duramente ilegalizadas quanto se tornariam ao longo da segunda metade do século XX, quando elas tomaram o lugar do jogo do bicho como negócio ilegalizado mais lucrativo.
Essa configuração criminológica de tipo familiar/monopolista/mafioso fez com que as sucessivas gerações dessas famílias monopolistas acumulassem significativa riqueza. Essa riqueza tinha de ser escoada, lavada e contabilizada, para que pudesse gerar a moeda mais importante de uma sociedade capitalista-hierárquica como a brasileira: artigos de luxo. E daí vem empresas (de fachada ou não), laranjas, contas off shore e toda uma engenharia clandestina que procura tornar o bicheiro (um “contraventor” que atenta contra a “consciência universal”) em empresário (uma figura invejada e profícua, que consome e comanda).
Na busca por apagar a desvalorizada identidade de bicheiros, os membros das famílias monopolistas passam a investir em outras atividades sociais, que lhes rendam identidades valorizadas. É novamente irônico, neste ponto, que uma dessas atividades, seja o carnaval, especificamente o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro. A ironia está em que uma atividade ilegalizada por conta da sua afronta a valores “morais, jurídicos e religiosos do povo brasileiro” busque refúgio simbólico justamente na atividade e momento social em que todos os valores moralistas e religiosos se encontram oficialmente suspensos no Brasil, com direito a autorização de nudez, sexo casual em público e outras heresias mais.
De qualquer modo, juntando a ilegalização de uma atividade culturalmente normal para o povo, com o consequente monopólio da atividade tornada ilegal, com a necessidade das famílias monopolistas do jogo do bicho de buscar identidades socialmente valorizadas, chegamos a Carlinhos Cachoeira. Ao que tudo indica, trata-se de uma pessoa que enriqueceu com o monopólio do jogo do bicho, monopólio que lhe foi fornecido pela ilegalização desta atividade, muitas décadas antes.
Cachoeira, no entanto, não queria (somente) ser o bicheiro, um pária social, mas o empresário, um membro da elite. Para isso, utilizou o dinheiro que o monopólio do bicho lhe deu para criar negócios, fazer amizades com políticos e (outros) empresários, financiar campanhas eleitorais. Enfim, tudo o que o seu dinheiro pôde comprar para que ele tivesse acesso ao bem mais valorizado nas relações cotidianas do Brasil: o contato com gente “poderosa”, “influente”.
A estratégia, também ao que parece, só não deu certo porque a marca de bicheiro é poderosa, e porque as instituições do Estado cismam em manter essa paradoxal relação com os monopolistas do jogo do bicho: milhões de reais em recursos públicos para investigar uma mera contravenção penal; milhões de reais em dinheiro do bicho para financiar carnavais, políticos e empresários. Um círculo vicioso que, como uma cachoeira, esconde o real problema: a insustentável ilegalização do jogo do bicho.
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