Trabalho forçado a devedor é um descompasso
16 de setembro de 2011, 13h38
Tanto quanto a própria sociedade, as relações familiares vêm sofrendo um número tão grande de alterações que o legislador, nem sempre, sabe como acompanhá-las.
Assim como numa relação familiar, a adoção de uma postura dialética, ao invés de condutas precipuamente paternalistas ou autoritárias, é fundamental para a harmonia do sistema.
Em termos de processo legislativo, o diálogo deve ser entendido como efetiva comunicação entre dispositivos normativos e realidade sociofamiliar (e não apenas a participação popular na discussão de projetos).
A falta de sintonia com a realidade pode justificar que as normas deixem de ter observância ou que causem inquietação social. Aliás, nesta medida, a sintonia também deve refletir no timing das mudanças, pois a demora legislativa é tão indesejada quanto sua precipitação e, em ambas as situações, a inobservância da lei e a revolta social podem ser verificadas.
O exemplo mais perceptível da assertiva pode ser constatado a partir da disciplina jurídica das relações homoafetivas. Se normas que igualassem a situação destas uniões ao casamento fossem editadas há cinqüenta anos, sofreriam críticas tão severas quanto as que hoje são desferidas contra a moral na disciplina legal.
Outro exemplo válido remonta à lembrança de que até há menos de dez anos, permitia-se a anulação de casamentos caso a mulher não fosse mais virgem — um fato que já de há muito tempo sequer é moralmente reprovável.
A despeito destas considerações, o que se nota nos projetos de lei atuais é justamente esta falta de preocupação com a realidade na qual intenta ser inserida.
É possível ilustrar esta tese com o disposto no projeto de lei da Câmara dos Deputados 991/2011. Segundo a proposta, de autoria do deputado Lira Maia (DEM-PA), o pai ou a mãe cuja obrigação de prestar alimentos for transferida a terceiros (comumente os avós do alimentando) deverão prestar serviços à comunidade.
A intenção do projeto é não permitir que os devedores originais se acomodem na busca de fontes de renda que lhes permitam assumir a obrigação, mantendo o ônus sobre terceiros. Inúmeras críticas podem ser feitas ao projeto, principalmente sob pontos de vista jurídicos. As principais, certamente derivam do conflito entre a proposta e as regras que proíbem o trabalho forçado (no âmbito das convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos e regulação do trabalho, mas principalmente na própria Constituição Federal). Com efeito, se não se pode impor trabalhos forçados a um preso como forma de recriminar um ilícito, com menos razão ainda se poderia impô-la a quem nem sequer cometeu ilícito (a legislação sanciona o não-pagamento da obrigação de alimentos, mas não a transferência da obrigação por falta de condições de prestá-la).
De outra parte, a proposta é falha também pela falta de previsão de sanção, um dos requisitos básicos de normas impositivos, segundo as regras comuns de hermenêutica. Em outras palavras, não há qualquer pena para aquele que deixar de prestar os serviços comunitários a que está obrigado.
Finalmente, é natural argumentar que os serviços que se pretende impor não têm qualquer implicação com o principal escopo da obrigação alimentar. Se a prisão é instrumento de coerção para impor o pagamento da pensão fixada, os serviços obrigatórios não atuam de forma a resultar no efetivo recebimento de alimentos por parte de quem deles necessita.
Entretanto, o maior problema da proposta legislativa é seu descompasso com a realidade, quer social, quer familiar, quer mesmo dos processos judiciais envolvendo a matéria.
Há uma generalização da premissa de que o pai ou mãe que não têm condições de arcar com os alimentos o faz voluntariamente e se compraz da situação de seus familiares que arcam com a obrigação familiar em seu lugar. A experiência prática indica uma série de outras razões para a incapacidade financeira, dentre as quais, problemas de ordem física ou mental incapacitantes.
No entanto, a hipótese mais comum de incapacidade financeira tem sido simples repercussão da falta de controle de natalidade entre adolescentes. É evidente que aqueles que têm filhos entre doze e dezoito anos, via de regra, não têm capacidade de prestar alimentos, pelas próprias restrições legais ao exercício de atividade laboral remunerada. Mais do que isto, em muitos casos, estes adolescentes buscam, em seus estudos (não só no ensino médio, mas também no ensino superior – às vezes em cursos de tempo integral) a qualificação que lhes permitirá adquirir renda suficiente para conferir a seus filhos o sustento digno.
Assim, na prática, o projeto pode resultar em empecilhos na qualificação profissional num país cuja mão de obra ainda está longe do ideal. Ao tentar incutir o trabalho em pais que considera omissos, o legislador, na realidade, limita seu campo de trabalho qualificado, simplesmente por desconhecer a realidade fática das relações que tenta disciplinar.
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