Influência etílica

Bafômetro não é meio hábil para medir embriaguez

Autores

17 de maio de 2011, 13h27

A edição da Lei 11.705/2008 (popularmente conhecida como “Lei Seca”) tem causado grande repercussão nos meios jurídico e social por alterar dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) com a finalidade de estabelecer a obrigatoriedade da alcoolemia zero e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência de álcool (artigo 1° da Lei 11.705/2008).

Dentre todas as mudanças, as que mais geraram polêmicas são as previstas nos artigos 165 (infração administrativa de dirigir sob a influência de álcool), 277 (medidas administrativas para constatação da embriaguez) e 306 (crime por dirigir com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência).

Não faltam motivos para questionar a inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato, a ilegitimidade do Poder Executivo de legislar em matéria penal e processual penal ou a impossibilidade de aplicação de sanção em matéria penal pela produção de provas contra si mesmo, contudo, pouco se aborda no meio jurídico acerca dos métodos pelos quais se pode caracterizar a embriaguez do condutor de veículo automotor. Será válida a prova testemunhal? Seria o etilômetro instrumento suficiente para precisar a embriaguez? Conforme será demonstrado abaixo, entendemos que somente o exame de sangue é capaz de auferir a concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas por litro de sangue, elemento normativo do tipo penal previsto no artigo 306 do Código de Transito Brasileiro.

Neste ponto, a discussão é tão grande que nem mesmo o Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência pacífica sobre a matéria.

Em regra, a 6ª Turma entende que a constatação da embriaguez só pode ser feita por exame de sangue ou por teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), pois a Lei 11.705/2008 inseriu no art. 306 do CTB “a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir” (HC 166.377/SP, relator ministro Og Fernandes, 6ª Turma, julgamento 10.06.2010, Dje 01.07.2010).

Por outro lado, a 5ª Turma entende que a prova da embriaguez ao volante deve ser feita, preferencialmente, por meio de perícia, mas acredita que esta pode ser suprida pelo exame clínico e, em casos excepcionais, até mesmo pela prova testemunhal. Tal entendimento é fundamentado na própria jurisprudência do tribunal que antes da edição da Lei 11.705/2008 já entendia desta forma. Sucede que as alterações trazidas pela Lei Seca inviabilizam a manutenção deste entendimento, conforme será demonstrado a seguir:

Antes da Lei 11.705/2008, o caput do artigo 277 possuía seguinte redação:

“Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§ 1o Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.

§2° No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.

Por sua vez, o artigo 276 do CTB dispunha que “A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor”.

Já o crime do artigo 306 possuía a seguinte redação:“Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Assim, para a antiga caracterização do crime do artigo 306 do CTB bastava que se comprovasse que o condutor estava sob a influência de álcool e que estava expondo a dano potencial a incolumidade de outrem. De acordo com a jurisprudência do STJ, a comprovação a influência de álcool poderia ser feita por meio de exame de sangue, pelo etilômetro e, em casos extremos, até mesmo por exame clínico ou por prova testemunhal, conforme a redação do artigo 277 parágrafo 2° do Código de Trânsito Brasileiro.

Sem entrar no mérito do acerto, ou não, deste antigo posicionamento, o ponto crasso é que, com a edição da Lei 11.705/2008, a redação do legislador distinguiu as condutas consideradas não permitidas. Vejamos o que agora dispõe o artigo 277 do CTB:

“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

§ 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

Comparando a redação anterior com a atual, é possível perceber que antes o parágrafo 2° do artigo 277 mencionava apenas “a infração poderá ser caracterizada (…)”, de modo que deixava lacuna sobre a sua aplicação. Tal dispositivo seria aplicado somente em infrações ou também em crimes? Agora, esta dúvida não existe mais, pois a nova redação do artigo 277 parágrafo 2° é clara ao dispor que “A infração do artigo 165 poderá ser caracterizada (…)”, de modo que fica evidente que o parágrafo 2° do artigo 277 só se aplica à infração prevista no artigo 165 do CTB e não ao crime previsto no art. 306 do código de Trânsito Brasileiro. Isto, por si só, já inviabiliza o entendimento da 5ª Turma do STJ de que a embriaguez poderá ser caracterizada por prova testemunhal.

Além disso, a nova redação do artigo 306 determina que haja “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a sei) decigramas” e, sem dúvida, o único meio de constatar esta concentração é através de exame de sangue.

A celeuma percebida nas 5ª e 6ª Turmas é profícua, mas não atenta a um ponto crítico e essencial ao tema, qual seja, o bafômetro não é meio apto a determinar com exatidão se o condutor do veículo automotor está embriagado.

Primeiro, porque o tipo penal previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro é um tipo penal fechado e não uma norma penal em branco, de modo que o próprio legislador optou pelo meio de se constatar o índice de álcool no sangue. Para se verificar tal medida, o único meio hábil é o exame de sangue.

Isto posto, o bafômetro não mede o nível de álcool no sangue, mas sim o metabolismo do álcool nos pulmões, o que, por si só, já vai de encontro ao princípio da legalidade.

Tal afirmação é corroborada por especialistas no assunto. Conforme estudo do professor Jéferson Oliveira da Silva, professor da UniRio, na cadeira de Bioquímica, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz na área de toxicologia, e perito-legista de toxicologia no Instituto Médico Legal, informou em brilhante depoimento prestado nos autos do processo 2009.001.085569-1, “o teste do bafômetro, isoladamente, não é suficiente para determinar a embriaguez, porque este teste mede o produto de transformação do álcool, sem o álcool estar presente, ainda”. O citado professor esclarece também que “o jejum prolongado ou o diabetes não tratado podem dar positividade no teste do bafômetro”.

Neste mesmo depoimento, o referido professor explica que os países que utilizam o bafômetro nunca o utilizam isoladamente como meio de verificação da embriaguez, mas sempre associado à avaliação clínica, o que demonstra que, quando utilizado, o etilômetro constitui apenas um método de triagem que deve ser associado ao exame clínico para que seja possível caracterizar níveis de álcool no sangue. Vale ressaltar também que nestes casos os exames clínicos são feitos por médicos com treinamento especializado.

Em consonância a esse entendimento, o professor titular do Departamento de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, mestre pelo Instituto de Química e Doutor Livre Docente Paulo Antônio Rodrigues Terra, também depoente nos autos do procedimento supracitado, confirma que o etilômetro revela produtos do metabolismo do álcool que saem pela expiração, sendo um método de rastreamento, auxiliar, e não de referência. O bafômetro, pois, faz uma avaliação indireta da dosagem de alcoolemia, carecendo de confirmação por outro método mais preciso.

Como se não bastasse, nem mesmo o Instituto Médico Legal utiliza o teste do bafômetro para atestar a embriaguez, mas sim a “medição direta de etanol na corrente sanguínea por cromatografia gasosa, sendo um teste que mede a molécula de álcool e não o metabólico”.

Deste modo, se o teste do bafômetro utiliza uma medida diversa daquela prevista na legislação (metabolismo nos pulmões x concentração de álcool na corrente sanguínea), esse método não se atende ao tipo penal em questão e, se nem mesmo o Instituto Médico Legal, instituto responsável por exames de corpo de delito, utiliza o bafômetro para atestar a embriaguez, como se pode admitir que o Poder Judiciário, que não possui conhecimento específico sobre o assunto, aceite o teste do bafômetro como meio hábil para auferir se um indivíduo estava, ou não, embriagado?

Uma previsão legislativa deve ser adequar à realidade, e não o contrário.[1] Do mesmo modo que a lei não pode impor que a gestação humana dure seis meses, também não pode impor que um aparelho que avalia o ar expelido pelos pulmões meça a quantidade de uma substância na corrente sanguínea.

Agindo desta forma, a credibilidade do judiciário estará abalada, pois teríamos condenações sem certeza. Será este o método adequado para combater as vítimas do trânsito? Evidentemente que não. Equívocos legislativos devem ser corrigidos por meio de novas leis e não por violação de garantias, sob o pretexto de dar eficácia ao dispositivo legal.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!