Religião e Direito

Ofensas em discurso de fé podem ser levadas à Justiça

Autor

  • José Rollemberg Leite Neto

    advogado mestre em Direito pela Universidade Gama Filho sócio do Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados membro da Comissão de Reforma do Código Eleitoral do Senado.

14 de novembro de 2010, 8h22

Há duas semanas, o Tribunal Superior Eleitoral julgou um interessante caso. Uma coligação partidária pedia direito de resposta em razão de uma missa transmitida pela televisão (Rp 340322). Isso porque o padre, na homilia, fez um sermão contrário a uma candidatura presidencial. A matéria de mérito não chegou a ser tratada no julgamento, por conta de uma questão processual que impediu a sua análise. Mas a tese demandada, em si mesma, merece algumas reflexões.

A meditação começa fácil porque não há controvérsia quanto aos fatos: houve, sim, um sermão de nítido caráter político. E ele foi transmitido pela televisão, sabidamente uma concessão pública, com regramentos especiais em período eleitoral. O quesito a ser feito é: decorre desse excesso do sacerdote o direito de resposta na própria missa televisada?

Alguns dirão que sim: o Estado é laico (Constituição Federal, artigo 19, I), a televisão é um instrumento do poder público em mãos particulares (CF, artigo 223), houve o excesso e há um diploma legal regendo a espécie (Lei 9.504/97). Como ninguém está acima da lei, também a missa deve ser objeto de intervenção, para o fim de reparação do erro. Ademais, o direito de resposta tem matriz constitucional (artigo 5º, inciso V). São bons argumentos.

Outros, todavia, dizem que não: o Estado respeita a liberdade de culto e o protege (CF, artigo 5º, inciso VI). Por isso, os excessos praticados no momento da celebração religiosa devem ser resolvidos de outra forma, que preserve a intangibilidade dela. Haverá o direito de resposta, mas não no momento da liturgia da palavra. Não no templo. Não no altar.

Bem observada a legislação eleitoral, vê-se que ela assinala que o direito de resposta em rádio e televisão deve ser concedido no mesmo veículo e em tempo igual ao da ofensa, mas nunca em duração inferior a um minuto. É o que dita o artigo 58, inciso II, alínea c, da Lei 9.504/97 e o artigo 15, inciso II, alínea d, da Resolução TSE 23.193. Isto implica dizer que a resposta não há de ser necessariamente proferida no mesmo local (isto é, no mesmo programa) da ofensa. Por isso, missa e contradita podem ser conciliadas. Ou melhor: separadas.

Aí está a solução compromissória que respeita a necessidade de reparação do ofendido e atende ao respeito ao culto religioso, sem vulneração das regras de Direito. A resposta não precisa ser implementada no momento da cerimônia. Pode ser dada por meio de abertura de um espaço específico para ela na grade de programação da emissora. O que se cobra é que seja proporcional ao tempo do ataque (e, por uma razão de bom senso, no mesmo horário em que ocorrida). Os diversos preceitos constitucionais e legais envolvidos estarão preservados com essa providência.

Problemas maiores, contudo, poderão ocorrer quando a ofensa não for de fácil detecção ou não for reconhecida pelo agressor. Será mister, em casos assim, que o Judiciário verifique se a pregação religiosa proferida nos meios de comunicação é desconforme o Direito. A matéria será delicadíssima, porque implicará em jurisdicionalização do discurso da fé. Mas, nem por isso, será proibida a análise judicial. Será mister, nesse contexto, que o assunto seja tratado com redobrada atenção, para que não se perca de mira que existem temas que transcendem o religioso e se encontram com o político.

Aborto, eutanásia, uniões homoafetivas são pautas civis, de relevante interesse para diversas denominações religiosas. Tocar nesses temas é inevitável no culto. Cobrar dos fiéis reverência aos preceitos de seu credo, idem. Esse tipo de concitação pode ter conteúdo político, mas não será repreensível pelo Judiciário.

O encontro das questões de fé com as da política não é obscurantista, não é fundamentalista, não é anômalo. É natural, é lícito, é de ser tolerado. Paixões políticas que pretendem reprimi-lo não são melhores que as ordens religiosas que tentam satanizar as divergências.

O Estado é laico. Os eleitores, nem sempre. As igrejas, nunca. É a vida. É o Direito brasileiro.

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