Direito de recuperação

Poucas clínicas seguem rigorosamente a lei

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23 de janeiro de 2010, 3h25

A Lei Federal 10.216/2004, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e que regula também as internações de dependentes químicos, prevê, em seu artigo 1º, que “os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra”, respeitando o princípio da igualdade previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federativa do Brasil. Assegura, ainda, o direito ao acesso à saúde sem qualquer restrição, também previsão constitucional. Já o artigo 2º dita que “a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo”.

Assim, referida legislação prevê os direitos dos pacientes, principalmente os que são levados à internação, consentida, involuntária ou compulsória, e os deveres das instituições que atuam, principalmente, no mercado privado de exploração deste ramo, para com os seus acolhidos.

E são direitos dos pacientes, poucas vezes observados, os enumerados a seguir: I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; V – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VI – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; VIII – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Não obstante os direitos definidos na lei, reconhecemos que poucas instituições privadas observam categoricamente a previsão acima enumerada, afrontando, diretamente, o que é direito do paciente e de seus familiares. Com efeito, muitas das clínicas de recuperação que recebem estes pacientes não tratam os mesmos com a humanidade preconizada pela lei, embora recebam mensalidades vultosas para o tratamento proposto.

Basta analisarmos a forma com que o paciente é internado nos procedimentos involuntários, quase sempre sedado e conduzido amarrado e à força para estas instituições, muitas das vezes possuindo capacidade plena de entendimento e de manifestação de vontade, ignorados porque o ato sustenta também as chamadas “empresas de remoção”, que, também, recebem o seu preço.

Insta ainda analisar a questão das chamadas “contenções”, nas quais o paciente removido é colocado para que passe os primeiros dias de internação em verdadeiras celas, pequenos cubículos desprovidos de boa luminosidade e ventilação, sem camas ou acolchoados próprios para que dignamente sejam acomodados. As portas destas celas, sempre trancadas, possuem comumente uma pequena abertura pela qual são servidas as refeições.

Não há como afirmar, portanto, que a internação, neste aspecto, resguarda o tratamento com humanidade e respeito determinado pelo item II do parágrafo único do artigo 2º, da Lei Federal 10.212/2004. Dita ainda referido item que o tratamento visa a inserção do paciente em sua família, o que também nem sempre é respeitado.

A maioria da clínicas de recuperação apenas permitem visitas uma vez por mês, isolando totalmente o paciente em detrimento da previsão legal. A afronta ao item acima referido constitui evidente abuso contra o paciente o que, consequentemente, gera afronta ao disposto no item III do mesmo parágrafo.

Indagamos, também, se os pacientes realmente têm seus dados e informações preservados, nos termos do previsto no item IV. Para termos esta certeza basta verificarmos as notícias veiculadas nos jornais escritos e televisivos sempre que alguma personalidade é internada quando há, então, notória invasão de privacidade e quebra de sigilo.

A presença médica a qualquer tempo também inexiste na maioria das instituições, havendo a presença do profissional normalmente uma vez por semana. Isso infringe o dispositivo legal em comento já que, sem a presença do médico no momento da internação, o paciente corre o risco de ficar dias sem ser avaliado para saber se é ou não o caso de internação forçada.

O inciso V trata do livre acesso do paciente aos meios de comunicação disponíveis. Os meios de comunicação disponíveis que podemos considerar para efeito deste breve estudo são os telefones, as cartas e os e-mails, exemplificativamente. Quase nenhuma clínica permite o uso de qualquer meio de comunicação, em claro desrespeito ao previsto na lei. Os telefonemas são proibidos, salvo uma vez por mês ou nos finais de semana, o que não preenche a vontade do legislador.

É comum as intituições também vetarem o envio de cartas sendo que a internet para comunicação ao menos com os familiares também segue a linha da proibição. Quando muito os pacientes tem contato com seus familiares apenas uma vez por mês e desde que se comporte exatamente nos moldes das regras das clínicas, o que também é passível de contestação jurídica, pois afronta o previsto no artigo 3º da lei ora em estudo e que prevê a assistência e participação da família do interno como parte fundamental do programa.

Ao paciente cabe o direito também de ser informado sobre o seu tratamento, o que inclui o período que o mesmo vai durar, informação esta que muitas vezes não é repassada corretamente.

O artigo 4º da Lei Federal 10.216/2004 prevê que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Quem deve fazer esta prévia avaliação é um médico preparado para o ofício, o que inocorre nos casos de remoção forçada que é realizada por empresas particulares com seguranças que, quando muito, tem à disposição um enfermeiro que não é, legalmente, o profissional adequado para fazer cumprir o artigo 4º ora avaliado. Reforça este entendimento a previsão do caput do artigo 6º que dita que “a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.”

Ainda segundo a lei são tipos de internação psiquiátrica ou para dependentes químicos a internação voluntária, que é aquela que se dá com o consentimento do usuário; a internação involuntária, que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e a internação compulsória que se dá por determinação da Justiça.

Importante o conteúdo do parágrafo primeiro do artigo 8º que determina que o estabelecimento deverá comunicar, nos casos de internação involuntária, o Ministério Público no prazo de 72 horas, assim como deve haver comunicação ao mesmo órgão quando da alta do paciente.

Temos visto, no entanto, um Ministério Público omisso e que se dá conta apenas de registrar os casos de internação forçada sem que haja uma fiscalização in locu destas entidades que, repetimos, em sua maioria, mantém condições ilegais de funcionamento, principalmente no que concerne ao não respeito aos direitos básicos do interno quanto à comunicação e à existência das já comentadas “contenções”.

É comum a convivência de menores com maiores de idade, o acesso a cigarros é absolutamente livre, inclusive para menores, e há dependentes químicos juntamente com internos com transtorno mental, o que, a nosso ver, se mostra impróprio.

E nos termos do parágrafo 2º do mesmo dispositivo a internação involuntária cessar-se-á com pedido por escrito do familiar ou responsável pelo paciente. Deve sempre haver atenção ao tema já que é interesse da maioria das entidades manter o paciente que é a fonte de lucro da empresa, podendo haver, por parte das clínicas de recuperação, uma forte pressão psicológica junto dos familiares para que haja o convencimento de que o melhor caminho é manter o paciente internado por meses e até anos.

Por todos estes apontamentos entendemos que é forçoso, como dito, a fiscalização acentuada por parte do Ministério Público dos Estados, dos Conselhos Regionais de Medicina e também por parte da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, o que fica aqui sugerido.

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