Relações internacionais

Lula decide que Battisti permanece no Brasil

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31 de dezembro de 2010, 9h56

O presidente Lula esperou o último dia do ano e do mandato para anunciar, nesta sexta-feira (31/12), que o italiano Cesare Battisti deve permanecer no Brasil. De acordo com nota divulgada pela secretaria de imprensa da presidência da República, o presidente acatou parecer da Advocacia Geral da União, que se manifestou contra o pedido de extradição. O caso, decidido na véspera de feriado, pode causar confusão. Isso porque o Supremo Tribunal Federal entendeu que o presidente tem o direito de dar a última palavra no caso desde que obedeça os termos do tratado de extradição com a Itália. 

O presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, disse na quinta-feira (30/12) que, antes de determinar o destino italiano Cesare Battisti, o tribunal vai analisar os argumentos utilizados pelo presidente Lula. Segundo a Folha, o caso vai passar novamente pelo STF, depois do recesso da Corte, em fevereiro.

Em maio deste ano, o Supremo notificou os ministros da Justiça, Paulo Barreto, e das Relações Exteriores, Celso Amorim, comunicando oficialmente a decisão da Corte sobre o processo de extradição do italiano, cujo julgamento foi concluído em dezembro do ano passado. O comunicado foi enviado após o trânsito em julgado do acórdão. 

Naquela ocasião, os ministros do STF autorizaram a extradição e, por maioria de votos, reconheceram “que a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República”. Entretanto, segundo os ministros, o presidente da República deve “observar os termos do tratado celebrado com o Estado requerente, quanto à entrega do extraditando”.

No entendimento do ministro Marco Aurélio, do STF, Battisti deve ser libertado imediatamente. "A condução da política externa do País é incumbência do presidente da República. O STF não é órgão consultivo e não tem atribuição de examinar atos políticos, cuja conveniência é da alçada do chefe do Poder Executivo", disse o ministro. Marco Aurélio, contudo, reafirma que o Supremo tem toda a competência para examinar atos formais.

Para o advogado do governo italiano no Brasil, Nabor Bulhões, a negativa da extradição de Battisti é inconcebível. "É difícil conceber uma hipótese razoável para mantê-lo no Brasil", reforça. Ele explica que há possibilidade de apenas retardar a entrega do italiano, mas não a hipótese de não entrega.

Com o anúncio do refúgio, Lula comprou uma briga diplomática com a Itália. O governo italiano declarou, na quinta-feira (30/12), que se reserva “o direito de considerar todas as medidas necessárias para obter o respeito ao tratado bilateral de extradição”. Segundo o UOL, o Ministério das Relações Exteriores da Itália emitiu comunicado sobre essa possibilidade, após os meios de comunicação do país revelarem que o Brasil poderia não extraditar Battisti.

O ministro italiano da Defesa, Ignazio La Russa, declarou durante a semana que as relações do país com o Brasil ficariam seriamente abaladas caso o ex-ativista não fosse extraditado. "Ninguém deveria imaginar que um ‘não’ à extradição de Cesare Battisti não teria conseqüências", disse La Russa ao diário Corriere della Sera, segundo o portal UOL.

La Russa, integrante da ala direitista do governista partido Povo da Liberdade, é considerado um ministro próximo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, mas não está claro o quanto suas opiniões interferem na política. "Até onde eu sei, estou pronto para adotar outras iniciativas", disse. La Russa não deu nenhum exemplo concreto, mas disse que estaria preparado para dar apoio a boicotes não especificados contra o Brasil.

No entanto, ele afirmou que um acordo de cooperação militar com o Brasil, prestes a ser aprovado pelo Parlamento italiano em 11 de janeiro, estava muito avançado para ser afetado. "É tarde para isso. O governo já fez o que tinha de fazer. O resto cabe ao Parlamento", disse ele.

O porta-voz no Senado do Partido Povo da Liberdade (PDL), Maurizio Gasparri, afirmou que “quem tutela assassinos se transforma em cúmplice”. Ele classificou como intolerável a decisão de não extraditar Battisti. Já o Partido Democrata (PD), da oposição, pediu a extradição de Battisti à Itália. A alegação foi a de que não existe "nenhum princípio fiador e nenhuma proteção nos direitos universais do homem para justificar" uma decisão em sentido contrário sobre "o terrorista" condenado na Itália por quatro homicídios cometidos durante os "anos de chumbo" (década de 1970).

O parecer
Na manhã de terça-feira (28/12), Lula já havia recebido parecer favorável do advogado-geral da União Luís Inácio Adams pela permanência de Battisti em terras brasileiras. O parecer foi assinado pelo consultor da União, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy.

O processo de extradição de Cesare Battisti estava sob a relatoria do ministro Cezar Peluso. Como o ministro assumiu a presidência do STF no último dia 23 de abril, o processo, que estava sendo relatado por ele, passou para o ministro Gilmar Mendes, que o antecedeu na Presidência da Suprema Corte.

Lula deve submeter a decisão de manter o italiano no Brasil ao ministro Peluso, que terá de expedir o alvará de soltura. Mas, dependendo da fundamentação usada pelo presidente, o caso pode voltar ao Plenário da corte.

Além de a Constituição Federal prever que as ações de extradição serão julgadas originariamente pelo STF, a Lei Federal 6.815/80, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, em seu artigo 83, também determina que nenhuma extradição será concedida sem prévia autorização do Plenário do Supremo. A Corte deverá se manifestar sobre a legalidade e procedência do pedido, não cabendo recurso da decisão. Já o artigo 86 da mesma lei estabelece que, concedida a extradição, o fato deverá ser comunicado por via diplomática, ou seja, pelo Ministério das Relações Exteriores, à missão diplomática do país requerente.

Estranhamente, o boletim que divulga diariamente os atos da presidência da República não relacionou a decisão de conceder refúgio que a assessoria de imprensa divulgou.

Novela política
Na Itália, Battisti foi líder da organização de extrema esquerda Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), que atuou na Itália nos anos 1960 e 1970. Em 1993, foi condenado a prisão perpétua sob acusação de participar dos homicídios do agente penitenciário Antonio Mares Santoro, em Udine, no dia 6 de junho de 1977; de Pierluigi Trregiane, em Milão, no dia 16 de fevereiro de 1979; do açougueiro Lino Sabbadin, em Mestre, no dia 16 de fevereiro de 1979; e do agente de Polícia Andrea Campagna, em Milão, no dia 19 de abril de 1979.

Foi o segundo julgamento contra ele pelo mesmo crime. No primeiro, ele havia sido absolvido definitivamente. Mas novas denúncias feitas por outro ex-ativista e desafeto de Battisti, num programa de delação premiada, deram motivos para a reabertura do processo. Battisti nega as acusações.

Enquanto o processo de Extradição corria no STF, o ministro da Justiça, Tarso Genro, reformou decisão do Comitê Nacional de Refugiados e concedeu o refúgio político ao militante. A alegação foi a de que Battisti não teve direito a ampla defesa no seu país e que um eventual retorno colocaria em risco a integridade física do italiano.

Detido em 1979, em Milão, Battisti conseguiu escapar da prisão e fugir para a França. Refugiou-se no México em 1982, mas em 1990 voltou à França. De lá, veio para o Brasil. Em março de 2007, foi preso no Rio de Janeiro e transferido para o Presídio de Papuda, no Distrito Federal. Na França, Battisti trabalhou como porteiro e escreveu romances policiais. Na década de 90, chegou a escrever 10 livros. No Brasil, lançou apenas uma obra, pela editora Martins Fontes: Minha fuga sem fim: dos anos de chumbo na Itália, de leis ao revés na França, ao inferno do cárcere no Brasil.

O advogado de Cesare Battisti no Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, que se encontra em compromisso acadêmico fora do país, comemorou a decisão do presidente que reafirmou a posição humanista do país. "Só aceitei a causa após ler os muitos volumes do processo e que ao final da leitura não tive a menor dúvida de qual lado era o que gostaria de estar", diz trecho da nota.

Clique aqui para ler o parecer da AGU e aqui para ler o despacho da Advocacia-Geral da União.

Leia a nota da presidência:

O Presidente da República tomou hoje a decisão de não conceder extradição ao cidadão italiano Cesare Battisti, com base em parecer da Advocacia-Geral da União.

O parecer considerou atentamente todas as cláusulas do Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália, em particular a disposição expressa na letra “f”, do item 1, do artigo 3 do Tratado, que cita, entre as motivações para a não extradição, a condição pessoal do extraditando. Conforme se depreende do próprio Tratado, esse tipo de juízo não constitui afronta de um Estado ao outro, uma vez que situações particulares ao indivíduo podem gerar riscos, a despeito do caráter democrático de ambos os Estados.

Ao mesmo tempo, o Governo brasileiro manifesta sua profunda estranheza com os termos da nota da Presidência do Conselho dos Ministros da Itália, de 30 de dezembro de 2010, em particular com a impertinente referência pessoal ao Presidente da República.

Leia a nota do advogado de Battisti:

Há muitos motivos para celebrar a decisão do Presidente Lula.

Fico feliz, em primeiro lugar, pelo Brasil, que manteve sua tradição humanista e sua altivez diante de pressões feitas em tom inapropriado pelo Governo italiano.

Fico feliz, em segundo lugar, em nome da justiça. Cesare Battisti é inocente dos homicídios que os verdadeiros culpados transferiram a ele, em um segundo julgamento. Arrependidos e delatores premiados, alguns já condenados, que colocaram todas as culpas no companheiro ausente.

Fico feliz, por fim, porque o Supremo Tribunal Federal, apesar de ter se dividido em relação ao tema, assegurou o direito de o Presidente da República dar a palavra final na matéria, preservando sua competência constitucional em relação à condução das relações internacionais do país. O respeito à posição da maioria, mesmo na divergência, é o diferencial das democracias constitucionais.

Na mesma linha de maturidade institucional referida acima, a decisão do Presidente da República foi exemplar na observância dos parâmetros estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para sua atuação, inclusive e notadamente quanto ao respeito pelo tratado de extradição celebrado entre Brasil e Itália.

Às pessoas que têm uma visão diferente acerca do caso, manifesto meu respeito e compreensão. Isso é normal em uma sociedade aberta e plural. Reafirmo, porém, que  só aceitei a causa após ler os muitos volumes do processo e que ao final da leitura não tive a menor dúvida de qual lado era o que gostaria de estar. Minha posição se baseia em fatos, provas e teses jurídicas consolidadas. A ideologia não é uma boa companheira para a justiça.

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