Independência judicial

CNJ arquiva reclamação contra juíza federal

Autor

17 de agosto de 2010, 15h06

O Conselho Nacional de Justiça, por 11 votos a 4, determinou o arquivamento de reclamação disciplinar proposta pela Advocacia-Geral da União e o Fórum Nacional dos Advogados Públicos Federais contra a juíza federal da 4ª Vara Federal de Porto Alegre, Ana Inês Algorta Latorre. Ela decretou a prisão do procurador-regional da União da 4ª Região, Luís Antônio Alcoba de Freitas, por acusação de crime de desobediência.

A prisão foi determinada em razão do descumprimento da decisão na qual a magistrada determinou a entrega do suplemento alimentar (MSUD2) a um bebê, em 48 horas. A decisão só foi cumprida 48 dias depois da concessão da tutela antecipada, mais precisamente duas horas após a prisão da autoridade federal, que foi solto após concessão de liminar em Habeas Corpus.

Diante disso, a juíza concluiu que o advogado poderia ser responsabilizado pelo descumprimento do despacho. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região revogou o decreto de prisão. Diante da situação, o Advocacia-Geral da União decidiu representá-lo no Conselho Nacional de Justiça.

Na decisão desta terça-feira (17/8), o CNJ concluiu que não houve infração disciplinar por parte da juíza. E, por esta razão, a abertura de processo administrativo disciplinar seria uma injustiça, porque se discutia em âmbito judicial a concessão de medicamentos a uma criança de apenas um ano que sofria risco de vida.

A juíza foi defendida pela equipe do escritório Bottini e Tamasauskas Advogados, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). O escritório alegou o caráter jurisdicional da decisão, impassível de controle disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça.

Para o corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, a decretação da prisão foi imprópria e que a independência funcional do magistrado não pode servir de abrigo à ilegalidade ou ao arbítrio. Mas, no caso em questão, "a falta não decorreu de conduta indevida ou comportamento impróprio da magistrada, mas sim de um conflito de emoções e valores", afirmou Dipp. A magistrada se viu “na última fronteira entre as instituições públicas e o direito à vida”, concluiu ele em seu voto.

Dipp sugeriu que os juízes ajam com cautela nessas circunstâncias, até mesmo porque é controversa, na jurisprudência, a possibilidade de decretação de prisão de funcionários públicos nesses casos. “Não se mostra adequada a instauração de reclamação disciplinar porque nem toda transgressão resulta em conduta indevida ou comportamento impróprio. Por economia processual, sugiro que a eventual reprimenda seja o próprio teor do meu voto”, recomendou.

Ao acompanhar o relator, o ex-presidente da Ajufe, juiz Walter Nunes, enfatizou que os juízes federais são os que mais se deparam com situações deste tipo, nas quais o Poder Público, em muitos casos, só cumpre a decisão judicial quando quer. “O litigante-mor no Brasil é o Estado, tanto que os juizados especiais federais estão se transformando em balcão de atendimento do INSS. A ordem de prisão não foi somente mal endereçada, foi ilegal. Não estamos passando a mão na cabeça da juíza, mas há casos e casos. E, nesse caso, a abertura de revisão disciplinar contra a juíza seria uma injustiça”, asseverou o juiz federal que atua como conselheiro do CNJ.

No mesmo sentido foi a posição do conselheiro Leomar Amorim. Que segundo ele, a eficácia das decisões judiciais não pode ser relativizada quando a parte contrária é a Fazenda Pública. No caso em questão, a juíza ficou no front e a vida da criança estava em risco. Além disso, o argumento de que a aquisição do suplemento alimentar dependia de licitação não se sustenta. “Era caso de vida ou morte e, em casos urgentes, a lei prevê dispensa de licitação”, sustentou.

Último a votar, o presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, fez observações consideradas relevantíssimas pelos juízes federais presentes. Em seu voto, o ministro enfatizou que "estavam em jogo valores da mais alta relevância e mais fina sensibilidade: a independência dos magistrados, a liberdade de ir e vir da autoridade federal contra a qual a ordem de prisão foi expedida, e a vida humana" e que a independência judicial deve ser preservada, sob pena de prejuízo à sociedade.

Ele esclareceu que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e o Código de Processo Civil, ao contrário do que sustentou a corrente contrária, não preveem sanções ao magistrado que erra ao aplicar a lei. Peluso lembrou que a responsabilização do juiz só ocorre quando age com dolo ou fraude ou quando comete impropriedade de linguagem em suas sentenças.

"A impropriedade de que trata o artigo 44 da Loman é a impropriedade de linguagem. Segundo ele, os juízes erram. Erramos todos os dias. E se os nossos erros de interpretação e de aplicação de leis pudessem ser punidos pelas vias disciplinares, não trabalharíamos tranquilos. Na prática isso inviabilizaria nosso trabalho e uma sociedade civilizada não pode viver sem juízes independentes. O ato em questão foi ilegal sim, mas não foi motivado por dolo ou fraude, o que justificaria a punição disciplinar", ressaltou.

O ministro Peluso acrescentou que a juíza esteve diante de um dilema grave sob o ponto de vista humano e agiu para beneficiar uma criança cuja vida estava em risco. "O que está em jogo aqui não é apenas a independência do magistrado, mas a substância da própria justiça. Não houve descumprimento de dever funcional. A juíza só errou na interpretação da lei e isso não é falta disciplinar. A solução proposta pelo relator não é apenas a mais sensata, como também uma solução de justiça", concluiu o ministro.

Apenas os conselheiros Jorge Hélio Chaves, Jefferson Kravchychyn, Marcelo Nobre e Marcelo Neves votaram pelo recebimento da reclamação e consequente instauração do processo disciplinar. Os demais conselheiros acompanharam o voto de Dipp.

A Advocacia-Geral da União havia reforçado a Reclamação contra a ordem de prisão do procurador-regional da União da 4ª Região e pedido a instauração de processo administrativo disciplinar contra a juíza que determinou a prisão.

De acordo com a AGU, a ilegalidade da prisão do advogado se dá porque o procurador-chefe da União da 4ª Região é o chefe da representação judicial da União e, portanto, de todos os seus ministérios. Nesta condição, não tem poderes administrativos de gestão e de execução das respectivas políticas públicas. A AGU sustentou que o representante judicial não se confunde com o representado.

Segundo o advogado-geral da União, Fernando Luiz Albuquerque Faria, os advogados públicos têm como função representar a União, suas autarquias e fundações, ou prestar-lhes assessoramento e consultoria jurídica, fugindo do seu rol de competências a prática de atos administrativos de gestão e de execução de políticas. Dessa forma, é ilegal responsabilizá-los por atos sobre o qual não tem nenhuma ingerência.

O advogado vítima da ordem de prisão na 4ª região é responsável pela coordenação da defesa judicial da União perante a 4ª Região e não foi o profissional que atuou no processo base.

Texto alterado para acréscimo de informações às 17h13 de terça-feira 17 de agosto de 2010.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!