Inquirição de testemunha

Mudança na Lei 11.690 traz dupla interpretação

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30 de novembro de 2009, 5h23

A disciplina da audiência criminal sofreu alterações delineadas pela Lei 11.690/2008 (norma de 9.6.2008, publicada em 10.6.2008). Antes, pela redação do artigo 212 do Código de Processo Penal, as partes faziam perguntas às testemunhas por meio do juiz. Essas perguntas indiretas das partes, feitas pelo juiz, eram chamadas de reperguntas.

Faz-se oportuno citar o texto anterior do dispositivo: “artigo 212. as perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.”

Por força da Lei 11.690/2008, ficou extinto esse rito de reperguntas. No novo regime processual, as partes podem fazer perguntas diretamente às testemunhas. Contudo, apesar de o juiz não fazer mais as reperguntas das partes, ele pode não admitir perguntas diretas que possam induzir a resposta, que não tenham relação com a causa ou que sejam repetições de outras respondidas anteriormente, o que está previsto no artigo 212, caput, do Código de Processo Penal. Por fim, o juiz também pode complementar essa nova inquirição direta das partes sobre os pontos não esclarecidos, o que, de seu turno, está previsto no artigo 212, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

A nova redação do dispositivo é a seguinte: “artigo 212. as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.”

Esse sistema de perguntas diretas pelas partes trouxe para o Processo Penal brasileiro certa dose do adversarial legal system do direito norte-americano. Nesse sistema, cada parte tem o direito de perguntar diretamente para a sua testemunha (direct examination) e para a testemunha arrolada por seu adversário (cross-examination). Tal sistema favoreceria, para seus defensores, uma reconstrução dos fatos mais aproximada da realidade.

Neste ponto, chega-se ao tema central da presente questão: o referido artigo 212, parágrafo único, do Código do Processo Penal vem suscitando discussões na doutrina e na jurisprudência sobre sua melhor interpretação. Alguns processualistas entendem que o dispositivo apenas regra o aspecto de o juiz poder complementar as perguntas diretas das partes (entendimento por nós adotado). Outros entendem que o dispositivo estabelece uma ordem de inquiridores e que, o juiz, diferentemente do regime anterior, somente poderia perguntar depois das partes e em complementação a estas.

1. Divergências sobre a interpretação do artigo 212 do CPP. Esse último entendimento referido — de que o juiz somente poderia perguntar depois das partes — foi acolhido pela colenda 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de maio de 2009. (STJ, HC 121.216-DF, Quinta Turma Rel. Min. Jorge Mussi, Sessão de 19.5.2009, DJ de 1.6.2009.)

Entendemos, respeitosa e diferentemente desse precedente do STJ, que o artigo 212, parágrafo único, do Código de Processo Penal apenas regra o aspecto de o juiz ter o poder de complementar as perguntas diretas das partes, não havendo regramento sobre ordem de inquiridores.

As razões de nosso entendimento, em síntese, são as seguintes:
a) A antiga redação do artigo 212 não regulava ordem de inquiridores, e, sim, apenas a forma de realização das perguntas das partes (por meio de reperguntas feitas pelo juiz). A nova redação — que também não contém ordem de inquiridores — altera de maneira expressa o modo de realização das perguntas das partes, deixando de existir “reperguntas” em favor de “perguntas diretas”.

Em razão disso, em um exame sistemático, parece-nos mais plausível que a expressão “complementar” se refira à nova sistemática de realização das perguntas, definida no caput do mesmo artigo, do que a uma ordem de inquiridores que nunca existiu na esfera da audiência criminal.

b) No Processo Penal brasileiro, que é acusatório, sempre foi acolhido o conceito de que o juiz criminal deve buscar a verdade real. Há anos, Hélio Tornaghi ensina que a prova “penal é uma reconstituição histórica. Pouco importa que o réu, abrindo mão da defesa, admita como procedente uma acusação ou que o acusador acolha uma afirmação do acusado como verdadeira. A transigência das partes, nesta matéria, não autoriza o juiz a concordar com elas. Apesar da convergência delas, deve o juiz pesquisar e descobrir a verdade. Ao contrário do que pode acontecer no cível, aqui os fatos incontrovertidos também são objeto de indagação do juiz. Lá, na esfera civil, se o réu, acionado por cem reais, diz, mentirosamente, que já pagou cinquenta e o autor aceita a afirmação, não cabe ao juiz averiguar se o fato é verdadeiro ou falso. No juízo criminal, acontece exatamente o contrário. Não importa que o réu confesse ou que o Ministério Público aceite a alegação de uma causa de exclusão de crime ou que haja sido argüido um fato extintivo da punibilidade. O juiz procura colher a prova de tudo quanto possa levar a conhecer os fatos reais, verdadeiros.” (TORNAGHI, pp. 270-271).


Atualmente, ilustres Juristas que participaram do movimento intelectual que originou as reformas processuais penais de 2008 manifestam que o juiz “deve estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto; deve suprir as deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par conditio; e não pode se satisfazer com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova; deve assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a analisar os elementos fornecidos pelas partes, determinando sua produção, sempre que necessário.” (Trecho do capítulo de Antonio Magalhães Gomes Filho, no qual é citada Ada Pellegrini Grinover, apud in “As Reformas no Processo Penal: As novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma”) (GOMES FILHO, MOURA e outros, p. 259).

Sendo assim, não se pode admitir que esse juiz ativo na instrução criminal, que é o destinatário da prova, não possa inquirir as testemunhas antes das partes. Se pode, inclusive, suprir eventuais deficiências dos litigantes, certamente pode iniciar a inquirição das testemunhas, passando a palavra às partes para que façam perguntas diretas posteriormente.

c) A nova redação do artigo 473 do Código de Processo Penal, estabelecida por outra norma das reformas processuais penais de 2008 (Lei 11.689/08), estabelece, expressamente, que, no júri, o juiz é primeiro a inquirir o réu e as testemunhas. Se no rito que cuida das ações penais que têm por objeto crimes que ofendem a vida, bem jurídico maior tutelado por nosso ordenamento, o juiz é o primeiro a inquirir, não há razão jurídica para amparar o entendimento de que, nos demais crimes, o juiz deva perguntar por último, especialmente quando a lei não dispõe isso expressamente.

Assim, por integração analógica, o artigo 473 reforça a exegese do artigo 212, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de que o juiz pode ser o primeiro a inquirir as testemunhas.

d) E, finalmente, cumpre referir que o aspecto de o juiz inquirir as testemunhas antes das partes não prejudica a dose de adversarial legal system trazida ao sistema pátrio pelas reformas processuais penais de 2008.

O cerne do novo regime está em as próprias partes (diretamente) poderem fazer as perguntas às testemunhas arroladas por si (direct examination) e pelo adversário (cross-examination).

O aspecto de o juiz fazer perguntas antes de isso acontecer em nada prejudica o novo sistema.

Nesse sentido, entende Oscar Valente Cardoso, juiz federal e mestre em Direito: “Desse modo, não há mais intervenção do juiz sobre as perguntas realizadas pelas partes às testemunhas. Conforme ressaltado no item anterior, o julgador passa a exercer somente uma função de controle, interferindo somente para indeferir a indagação, quando constatar que é direcionada a uma resposta, for estranha aos fatos controversos, ou reiterar questão já esclarecida. Não se exclui a possibilidade de o juiz realizar perguntas às partes e às testemunhas; após os seus questionamentos, os advogados das partes poderão indagá-las diretamente, e não mais por intermédio daquele.” (CARDOSO, p. 87).

Reforçando nosso entendimento, mostra-se oportuno registrar que Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz continua sendo o primeiro a inquirir as testemunhas. Cumpre citar texto de sua lavra:

"69. Reperguntas diretas às testemunhas: a Lei 11.690/2008 eliminou o sistema presidencialista de inquirição das testemunhas, vale dizer, todas as perguntas, formuladas pelas partes, deviam passar pelo juiz, que as dirigia a quem estivesse sendo ouvido. Em outros termos, antes da reforma processual, quando a parte desejasse fazer uma repergunta, dirigiria a sua indagação ao magistrado que a transmitiria à testemunha, com suas próprias palavras. De fato, era um sistema vetusto e lento. Afinal, a testemunha havia entendido perfeitamente o que fora perguntado pela acusação ou pela defesa, bastando-lhe responder. Mesmo assim, era orientada a esperar que o magistrado repetisse a tal pergunta para que, então, pudesse dar sua resposta. Tratava-se de uma precaução para que as partes não induzissem as testemunhas ou não fizessem indagações despropositadas ou ofensivas. De todo modo, o sistema era anacrônico. Imaginemos a modernidade do processo informatizado, com os depoimentos colhidos em fita magnética. Para que ouvir duas vezes a mesma indagação? Desnecessário. Basta que a parte faça a repergunta diretamente à testemunha. Se houver alguma pergunta indevida, deve o juiz indeferi-la. Para isso, está o magistrado presente, controlando os atos ocorridos em audiência, sob sua presidência. Tal inovação, entretanto, não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido. A nova redação dada ao art. 212 manteve o básico. Se, antes, dizia-se que ‘as perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha’, agora se diz que ‘as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha (…)’. Nota-se, pois, que absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição, iniciado sempre pelo magistrado. Porém, quanto às perguntas das partes (denominadas reperguntas na prática forense), em lugar de passarem pela intermediação do juiz, serão dirigidas diretamente às testemunhas. Depois que o magistrado esgota suas indagações, passa a palavra à parte que arrolou a pessoa depoente. Se se trata de testemunha da acusação, começa a elaborar as reperguntas o promotor, diretamente à testemunha. Tratando-se de testemunha da defesa, começa a reinquirição o defensor, diretamente à testemunha. Após, inverte-se. Finalizadas as perguntas do promotor à testemunha de acusação, passa-se a palavra ao defensor (se não houver assistente de acusação, que tem precedência). O mesmo se faz quando o defensor finaliza com a sua inquirição; passa-se a palavra ao promotor e, depois, ao assistente, se houver.” (…) 72. Complemento da inquirição: embora desnecessário o conteúdo do parágrafo único, por ser óbvio, pode o magistrado continuar a perguntar à testemunha, mesmo quando as partes finalizem suas questões, caso não esteja satisfeito com as respostas dadas, em especial no tocante aos pontos não esclarecidos pela pessoa depoente.” (NUCCI, pp. 479-481).


Igualmente adotam esse entendimento os juristas Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, conforme trecho citado a seguir:

“A leitura apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as partes devem, inicialmente, formular as perguntas para que, somente a partir daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a inquirição. Não parece ser exatamente assim. Basta ver, por exemplo, a redação do art. 188 do CPP, a determinar que, no interrogatório, de início as perguntas são formuladas pelo juiz que, depois, consultará às partes se há algo a ser esclarecido. E mesmo a atual redação do art. 473 do CPP, que, no plenário do júri, determina a primazia do juiz de colher o depoimento da vítima e das testemunhas, para depois facultar às partes a formulação de perguntas. Afrontaria mesmo nossa tradição conceder-se, desde logo, a palavra às partes, para que o juiz, por último, pudesse perguntar à testemunha. Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional, arraigada na ‘praxis’ forense, pela qual o juiz dá início às suas indagações para, depois, facultar às partes a possibilidade de, também, inquirirem a testemunha, desta feita diretamente, sem a necessidade de passar, antes pelo filtro judicial”. (GOMES, CUNHA e PINTO, p. 302).

Por fim, Pedro de Araújo Yung-Tay Neto, juiz de direito do Distrito Federal, também entende que o magistrado pode ser o primeiro inquiridor das testemunhas, conforme se depreende dos seguintes trechos doutrinários:

“Além da absoluta ausência de previsão legal para que o Juiz deixe de exercer sua missão constitucional e legal de busca da verdade materialmente possível, para tornar-se um ser praticamente inanimado no curso da ação penal, bem como diante da falácia de que o exercício dos poderes instrutórios do Juiz no curso da ação penal violariam, de qualquer modo, sua imparcialidade ou mesmo causariam qualquer tipo de prejuízo à acusação e à defesa, percebe-se, ainda, que a idéia de se reduzir a atuação instrutória do Juiz encontra-se na contramão da história. (…) Nesse diapasão, não podemos olvidar a moderna doutrina processual civil que prega – com absoluta coerência e acerto a nosso ver – a necessidade de reforçar a atuação instrutória do Juiz como forma de proferir decisões comprometidas com a verdade e, com isso, implementar políticas públicas capazes de transformar a realidade de nosso país. (…) Tolher ou inibir os poderes instrutórios do Juiz seria o mesmo que afirmar que o Estado não tem nenhum interesse na solução das controvérsias dentro da verdade materialmente possível e que a função do magistrado nada mais seria do que a de um mero árbitro-espectador que se contentaria em, ficticiamente (ou formalmente), escolher entre a tese apresentada pela acusação e a tese apresentada pela defesa, as quais poderiam, efetivamente, não espelhar, nenhuma delas, a verdade dos fatos. (…) a) O novel art. 212 do CPP não determina, em nenhum momento, que o Juiz deixe de iniciar a coleta da prova oral para exercer função meramente supletiva no curso da ação penal. (…) b) A nova redação do art. 212, em especial em seu parágrafo, veio apenas reforçar a possibilidade de o Juiz, além de iniciar a tomada dos depoimentos (como, aliás, lhe é expressamente determinado, sistematicamente, pelos artigos 185, 188, 201 e 473 do CPP, dentre outros), também poder, após a inquirição das partes, formular perguntas complementares para o melhor esclarecimento da verdade real. (…) h) No direito processual penal brasileiro, continua em vigor a regra de que nenhum ato pode ser declarado nulo se o prejuízo não for devidamente demonstrado, sendo certo que não há nenhum prejuízo no fato de o Juiz continuar iniciando a inquirição de testemunhas, na forma como determina a lei. (…) o) Ao iniciar a formulação das perguntas endereçadas ao réu, ao ofendido e às testemunhas – como determina a lei (artigos 185, 188, 201, 212 e 473, dentre outros) – está o Juiz no exercício de sua absoluta imparcialidade, eis que procura a isenta narrativa dos fatos, diferentemente do MP, a quem a Constituição atribui o dever de acusar (podendo, obviamente, requerer a absolvição ao final, se o caso) e da Defesa, que procurará, sempre, a melhor situação jurídica para o denunciado. (…) p) Durante o julgamento da ADIN n. 1.570-2, os eminentes Ministros Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, do Excelso Pretório, destacaram que, no processo penal, o Juiz não é passivo, possuindo, efetivamente, poderes instrutórios, devendo usar dessas prerrogativas para buscar a verdade real e formar o seu convencimento. (…) s) A única e definitiva missão do Juiz no curso de qualquer processo – civil ou criminal – é o da descoberta da verdade materialmente possível e o da aplicação da lei ao caso concreto, de acordo com essa descoberta. Nada mais. Nada menos. E o único modo de descobrir a verdade materialmente possível e julgar de acordo com os milenares e universais princípios de sabedoria, justiça, eqüidade, temperança, razoabilidade e proporcionalidade, é lhe permitindo o exercício de seus poderes instrutórios, necessários e suficientes, para que possa se desincumbir da difícil tarefa de pacificação social com Justiça. (…) x) Retirar do Juiz a possibilidade de efetuar suas perguntas no momento em que achar mais oportuno e conveniente para o esclarecimento da verdade constitui-se, efetivamente, no primeiro e decisivo passo para retirar-lhe todos os seus poderes instrutórios e transformá-lo, como já dito, em um ser processual praticamente inanimado, limitado à tentativa de aplicar o direito ao caso concreto sem qualquer segurança, posto que estará tolhido em sua possibilidade de instruir os autos na busca da verdade materialmente possível.” (YUNG-TAY NETO, site Jus Navigandi).


Outrossim, mesmo na conjectura de que o novo art. 212 do CPP tenha estabelecido uma ordem de inquiridores de testemunhas no processo penal (com a qual não concordamos), temos que uma eventual inversão não geraria prejuízo algum às partes, dês que essas, nessa hipótese e em algum momento, pudessem fazer suas perguntas diretas em um sistema pátrio assemelhado de direct examination e de cross-examination.

Como vimos, modernamente, o juiz criminal não deve ser omisso, pelo contrário, deve suprir eventuais dificuldades instrutórias das partes. Nesse contexto, o juiz fazer perguntas antes das partes, invertendo uma hipotética e inexistente ordem, não poderia ser fato gerador de prejuízo às partes que ele mesmo pode, eventualmente, suprir.

Está-se, deveras, fazendo referência ao princípio do prejuízo, que constitui seguramente a viga mestra do sistema das nulidades e decorre da idéia geral de que as formas processuais representam tão-somente um instrumento para a correta aplicação do direito; sendo assim, a desobediência às formalidades estabelecidas pelo legislador só deve conduzir ao reconhecimento da invalidade do ato quando a própria finalidade pela qual a forma foi instituída estiver comprometida pelo vício.” Essa citação foi colhida da clássica obra “As Nulidades no Processo Penal”, edição de 1997, de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, eminentes processualistas que participaram do movimento intelectual que deu origem às reformas processuais penais de 2008 (GRINOVER, p. 26).

A respeito, a 6ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu, por maioria e em maio de 2009, que o aspecto de o juiz ser o primeiro inquiridor da testemunha não gera prejuízos às partes, não devendo, portanto, ser anulada a sentença de primeiro grau. (TJRS, Processo n. 70028983484, Sexta Câmara, Rel. Des. Nereu José Giacomolli (vencido em parte, na preliminar, pelo voto vencedor do Des. Revisor Mário Rocha Lopes Filho, Sessão de 7.5.2009.)

Anote-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal pontificou, já considerando o regime das reformas processuais penais de 2008, que o “Direito Processual Penal, na contemporaneidade, não pode mais se basear em fórmulas arcaicas, despidas de efetividade e distantes da realidade subjacente, o que é revelado pelo recente movimento de reforma do Código de Processo Penal com a edição das Leis 11.689 e 11.690, ambas de 09 de junho de 2008, inclusive com várias alterações no âmbito do procedimento do tribunal do júri. (…) O regime das nulidades processuais no Direito Processual Penal é regido por determinados princípios, entre os quais aquele representado pelo brocardo pas de nullité sans grief.” (STF, HC n. 92819-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, Sessão de 24.6.2008, DJ de 15.8.2008).

a) A Lei 11.690/2008 alterou o artigo 212 do CPP para modificar a forma de as partes fazerem perguntas às testemunhas. Antes, as perguntas eram feitas por meio do juiz e eram chamadas de reperguntas. Agora, as perguntas são feitas diretamente pelas partes.

b) O artigo 212 do CPP, no regime processual novo, não estabelece uma ordem de inquiridores e permite que o juiz inicie a inquirição das testemunhas como no regime processual anterior.

c) O artigo 212, parágrafo único, do CPP apenas regra o aspecto de o juiz ter o poder de complementar as perguntas diretas das partes, não havendo regramento sobre ordem de inquiridores. Em um exame sistemático, parece-nos mais plausível que a expressão “complementar”, contida no aludido parágrafo único, se refira à nova sistemática de realização das perguntas definida no caput do mesmo artigo, do que a uma ordem de inquiridores que nunca existiu na esfera da audiência criminal.

d) Não se pode admitir que o juiz, que deve buscar a verdade real e que é o destinatário da prova, não possa inquirir as testemunhas antes das partes. Se pode, inclusive, suprir eventuais deficiências dos litigantes, certamente pode iniciar a inquirição das testemunhas, passando a palavra às partes para que façam perguntas diretas posteriormente.

e) O artigo 473 — o qual estabelece, no júri, que o juiz é primeiro a inquirir o réu e as testemunhas — reforça a exegese do artigo 212, ambos do CPP, no sentido de que o juiz também pode ser o primeiro a inquirir as testemunhas no procedimento comum.

f) O fato de o juiz inquirir as testemunhas antes das partes não prejudica a dose de adversarial legal system trazida ao sistema pátrio pelas reformas processuais penais de 2008.

g) Mesmo na conjectura de que o novo artigo 212 do CPP tenha estabelecido uma ordem de inquiridores de testemunhas no processo penal (com a qual não concordamos), temos que uma eventual inversão não geraria prejuízo algum às partes, dês que essas, nessa hipótese e em algum momento, pudessem fazer suas perguntas diretas em um sistema pátrio assemelhado de direct examination e de cross-examination. E, sem prejuízo, não haveria nulidade a ser debelada.

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