De rinocerontes e unicórnios

Sociedade tem mania de ignorar evolução do Direito

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19 de março de 2009, 11h44

Quando li Kant e o Ornitorrinco, de Humberto Eco, fiquei deslumbrado com um exemplo histórico usado por ele para se referir à dificuldade que as pessoas têm em romper os obstáculos epistemológicos: Marco Polo, quando chegou à Índia, deparou-se com um rinoceronte e, nunca antes tendo visto este animal, escreveu em seu diário que “havia visto um unicórnio”, mas que “ele não era tão bonito como nos contos de fadas que conhecia. Ao contrário de ser branco, era cinza. Não era esguio, mas gordo. Ao invés de alto, era baixo”.

Nunca tendo visto um rinoceronte, Marco Polo associou o rinoceronte à única imagem similar que a priori tinha conhecimento. A de um unicórnio. Ainda que esse ser a conhecer nada tivesse com aquele.

Para ele — como é para todos nós de forma geral, em maior ou menor grau — mais fácil foi associar o rinoceronte, até então desconhecido, a um animal já familiar (ainda que mitológico, só imaginado pelos contos de fadas e só visto em desenhos de livros infantis), do que reconhecer sua ignorância e, transpondo os obstáculos de seu conhecimento, reconhecer que estava frente a uma nova realidade que, querendo, poderia apreender.

No Direito, acredito que mais do que em qualquer outra ciência, diversos são os casos em que nos deparamos com rinocerontes e cremos se tratarem de unicórnios, embora não tão bonitos, belos e altivos. Ou nos deparamos com unicórnios e pensamos ser rinocerontes. Tanto faz a ordem. Basta haver a desvirtuação e a cegueira entre o conhecido e o a conhecer.

Na verdade, quanto ao aqui querido externar, melhor seria inverter a ordem mesmo. É que o Direito, inegavelmente, evolui para melhor, de forma que nos deparamos com “belos unicórnios” capazes de nos auxiliar a transformar nossa sociedade num ambiente mais justo e digno, mas ignoramos essa evolução, tendo aqueles “belos e novos instrumentos” como velhos rinocerontes.

Essa desvirtuação do unicórnio em rinoceronte é o que me parece explícito na decisão que ao final prevaleceu no Recurso Especial 1.061.530/RS, onde o Superior Tribunal de Justiça consolidou que descabe ao Juiz ou Tribunal conhecer de ofício a nulidade de cláusulas abusivas nas relações consumeristas atinentes a contratos bancários.

 Malgrado as tentativas dos eminentes ministros Fátima Nancy Andrighi e Luis Felipe Salomão, que de resto já empunhavam essa espada desde o EREsp 702.524/RS — neste, juntamente com o ministro Castro Filho — prevaleceu o entendimento segundo o qual, embora haja a previsão no artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 168 do Código Civil, da possibilidade de conhecimento pelo Juiz ou Tribunal, de ofício, de cláusulas abusivas que contrariem o microssistema consumerista, tais normas devem ceder lugar ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum.

E esse princípio latino, como se pode ver da decisão, embora dirigido ao segundo grau de jurisdição, também “seria aplicável” ao julgador de primeira instância. Ou não, que este princípio não se aplicaria ao juiz de primeiro grau, mas então que “o Princípio Dispositivo aplicável em primeiro grau impediria o conhecimento de matérias de ordem pública”, como o são as cláusulas abusivas, e todas as outras do Código de Defesa do Consumidor, por força do artigo 1º desse diploma.

Veja-se o desforço sobre-humano que foi realizado para se transformar o unicórnio apresentado pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Código Reale (a possibilidade de conhecimento e adequação de ofício pelos juízes de cláusulas abusivas) num rinoceronte cinzento, feio e gordo (destituir referidas normas de toda sua eficácia).

Em síntese, para manterem íntegros seus postulados (quais?), derrogaram dois artigos de dois importantíssimos pilares do Direito, além de desvirtuar um ou outro princípio (Dispositivo ou do Efeito Devolutivo).

Os contos de fadas têm várias virtudes. Todos possuem como pano de fundo ou anseios humanos ou estereótipos queridos por nós, que a bem da verdade remetem a sentimentos necessários para nossa eterna luta pela paz. Tratam de esperança, força, superação, bem versus mal, bandido versus mocinho etc. Acreditar em contos de fadas não me parece ruim. Antes pelo contrário, acho-os importantes para levar a vida mantendo sempre a utopia de que as coisas podem ser mudadas ou vencidas, mas ver rinoceronte num unicórnio?

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