Vassalo e suserano

Efeitos monárquicos da Justiça brasileira

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5 de julho de 2009, 10h16

Em uma sociedade impregnada pela omissão social e a excessiva tolerância com as irresponsabilidades e desmandos dos detentores do poder, onde as funções do Estado se rivalizam não se pode deixar de notar, em nosso Estado modelo, a transformação das instituições e a consolidação de um novo modo de loteamento do exercício do poder.

Especificamente no caso do Poder Judiciário, o que a observação nos tem propiciado concluir é a progressiva sedimentação de um “totalitarismo” monárquico paralelo aos outros poderes temporais republicanos.

Com efeito, embora desde o nascimento da República fosse ele imaginado, construído e adequado ao sistema romano-germânico do direito legislado, também conhecido como sistema do civil law, em que o operador do direito deveria ser eminentemente técnico, sem ingerência política na construção das regras abstratas de comportamento, com o passar dos anos, descortinou-se, paulatinamente, no judiciário, uma mudança de opção para o sistema conhecido como sistema do direito do caso, conhecido também pela denominação de common law, onde os juristas não são necessariamente juristas, mas podem e devem ser políticos, pois são, na sua origem, geralmente eleitos.

Sucede que, em nosso país, os juízes não são eleitos, pelo contrário, à exemplo da monarquia, são vitalícios. Vale dizer, aqui, vive-se o melhor dos mundos, o juiz legisla sem qualquer compromisso ou responsabilidade para com a sociedade.

Para sustentar essa evidente incompatibilidade, os representantes do judiciário tem se valido, sem qualquer dificuldade, de um discurso absolutamente conveniente, a par de  hipócrita.

De fato, com a conivência de uma parcela da mídia e a omissão da sociedade, os juízes fazem discursos técnicos, adequados ao sistema romano-germânico, mas atuam cotidianamente com base no sistema do common law. Esta postura revelou-se absolutamente necessária após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Realmente, até então era livre a designação de quaisquer pessoas para ocupar quaisquer cargos ou funções na administração pública do Poder Judiciário, conforme fosse o prestígio que os nomeados dispunham junto aos juízes, o que propiciava a formação de um verdadeiro feudo cercado de sua vassalagem.

Com a Constituição Cidadã (1988), revelou-se necessária a construção de meios que contornassem os obstáculos constitucionais à manutenção desse baronato.

A partir de então, se aproveitando do vácuo legal, agigantou-se, no judiciário, a prática do nepotismo e do instituto da cedência -, que se constitui na prática de requisitar servidores de municípios e estados-membros para ocupar cargos no estado ou na União, sem o respectivo concurso público -.

Geralmente esses “cedidos” eram nomeados ou contratados pelos municípios e estados de origem sem se submeterem ao certame público, ou, quando esse existia, era apenas para legitimar o acesso, já que seu objetivo não era selecionar o “servidor”.

Apesar da tímida irresignação social, essa prática perdura ainda hoje, instrumentado pelo nepotismo cruzado, como meio de manutenção dos privilégios dos herdeiros do baronato.

A força e o prestígio da “corte” é de tamanha magnitude que conseguiu transformar o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, criado originariamente com objetivos de fiscalização do Judiciário em instrumento de sua promoção pessoal e social e ultimamente, principalmente, como meio de legitimação do seu estilo de vida.

Com efeito, por meio do CNJ, recentemente, conseguiu a “corte” reverter inclusive o espinho do nepotismo em seu favor. Explico. Em virtude da pressão social viu-se a “corte”, inicialmente, obrigada a estabelecer preceito que impedisse o nepotismo. Todavia, por meio de construção legislativa do próprio CNJ (resolução n. 7), permitiu-se que os parentes “efetivos”, ocupassem cargos comissionados vinculados a juízes não parentes, ainda que pertencentes ao mesmo tribunal e à mesma jurisdição.

Em outras palavras, estabeleceu-se a convicção de que é perfeitamente permitido o nepotismo cruzado dos parentes dos magistrados que sejam titulares de cargos “efetivos”, em evidente desvirtuamento da Lei, legitimando, por via transversa, o que era moralmente insustentável, já que a essência da regra moralizadora foi banir o favorecimento de parentes em cargos públicos, fossem efetivos ou não. Atualmente, encaminha-se nos gabinetes da “corte” pretensão muito mais ambiciosa.

Refiro-me a proposta para transformar os cargos daqueles servidores que ingressaram na administração por meio de certame público de escolaridade elementar e secundário em cargos de nível superior, a fim de legalizar a manutenção dos herdeiros e vassalos em cargos comissionados incompatíveis com os cargos de acesso (elementar e secundário), enfim, legitimar o assistencialismo nepótico.

Esta última manobra foi denunciada pela Associação Nacional dos Analistas do Poder Judiciário – Anajus (www.anajus.org), por meio de Procedimento de Controle Administrativo protocolado no CNJ.

Segundo disponibilizado no sítio da referida associação, nesse procedimento, foi denunciado inclusive o autoritarismo próprio da “corte”, em impedir o acesso, a crítica, a opinião e a fiscalização dos seus atos, que, ironicamente, retrata exatamente a postura ferozmente criticada nos votos dos ministros Menezes de Direito e Celso de Melo por ocasião da ADPF da Lei de Imprensa em 30.4.2009.

Aqui vale aquela afirmação acima exposta sobre o discurso romano-germânico (técnico) e a atuação do commom law (faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço).

Entretanto, segundo informações extraídas também naquele sítio eletrônico, após protocolado, o aludido procedimento desapareceu nas instâncias administrativas do STF!

Mas até aí tudo bem, já que a proposta, embora seja de iniciativa do judiciário, teria que passar ainda pelo poder legislativo.

Sucede que, paralelamente à proposta, em 4.5.2009, foi publicada a aprovação, pelo STJ, da inacreditável súmula n. 378 onde segundo o verbete: reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.

Vale dizer, desimportando o que vier a ser aprovado ou não na proposta a ser eventualmente encaminhada, a questão já está decidida. O descalabro dessa circunstância ganha importância na medida em que existe norma legal vigente e recente a propósito do tema (art. 606 do CC/2002):

Art. 606. Se o serviço for prestado por quem não possua título de habilitação, ou não satisfaça requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou cobrar a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado. Mas se deste resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá a quem o prestou uma compensação razoável, desde que tenha agido de boa-fé.

Parágrafo Único. Não se aplica a segunda parte deste artigo, quando a proibição da prestação de serviço resultar de lei de ordem pública.

Se entendermos que a obrigatoriedade do concurso público é lei de ordem pública, temos que concluir que estamos diante de um caso clássico de jurisprudência contra legem.

Aqui novamente se evidencia a atuação da “corte” com base no sistema da commom law que, sem freios, vai arrebatando perigosamente o exercício do poder das outras funções clássicas do poder.

Note-se que a Lei pode ser submetida ao crivo do controle constitucional, as súmulas, nem sempre. Os efeitos danosos desse absolutismo já começam a eclodir no meio social; exemplo disso são as denúncias que pululam na imprensa nacional acerca da prática da sinomia, venda de favores judiciários, e da incontinência dos magistrados em exigirem tais favores, – sem qualquer consequência social -, ao contrário do que hoje vemos no Legislativo, que, mesmo timidamente, se viu compelido a providenciar auditorias internas para esclarecimento público dos abusos e ilegalidades denunciados.

Outra evidência é o surgimento de um conveniente e conivente discurso sobre a causa disso tudo ser a ausência do Legislativo. Não queremos isentar o legislativo de suas falhas, mas, à evidência, não se pode culpá-lo pelos resultados de atos comissivos, senão dos omissivos. A distinção é absolutamente relevante, sob pena de isentar a “corte” de suas irresponsabilidades.

De fato, como soberanos, embora preguem a Lei, eles próprios não a praticam. O Estado tem por finalidade mínima garantir aos seus cidadãos segurança, paz e justiça. Em uma sociedade organizada, isso só acontece se cada um bem realizar aquilo que lhe foi atribuído.

O desvirtuamento das funções do Estado degenera a organização social e sem organização, sem governo, caminha-se para a instalação do caos, cujos efeitos já começam a eclodir.

Seu principal efeito é a quebra do único pacto republicano fundamental, – o Estado Constitucional -, e, por conseqüência, a institucionalização da injustiça, da insegurança e da violência. É premente que a sociedade precisa se reorganizar, resgatar a justiça e a sua finalidade última, a felicidade.

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