Ilustre desconhecido

Entrevista: Walter Ceneviva, advogado e jornalista

Autor

30 de março de 2008, 0h02

Walter Ceneviva - por SpaccaSpacca" data-GUID="walter_ceneviva.jpeg">Advogado e jornalista com décadas de vivência, Walter Ceneviva é um profissional que consegue ser um expert em cada atividade que exerce: ele é tão bom no jornal quanto o é na banca de advocacia. E se tornou um ser raro por compreender e entender como ninguém as peculiaridades e idiossincrasias tanto da imprensa como do Judiciário.

A convivência de uma vida inteira com a informação e com o Direito deram a Ceneviva uma capacidade de entender coisas que todo mundo vê, mas não consegue explicar. A Constituição brasileira, por exemplo, com seus 200 artigos e infinitos incisos, é assim tão extensa por uma necessidade histórica. Com o país saindo de mais de 20 anos de ditadura, diz ele, “era preciso criar barragens úteis para consolidar um governo democrático. Esse resultado foi atingido”.

A situação mudou, a democracia se consolidou e hoje, ele acredita, só mesmo uma constituinte seria capaz de dar à Carta a unicidade que meia centena de emendas lhe roubaram nestes 20 anos de existência. Com perspicácia, Ceneviva sustenta também que os três poderes da democracia não chegaram ao Brasil com o equilíbrio pensado um dia por Montesquieu. “Porque o poder que pode é o Executivo. Ele tem mecanismos de decisão imediata e de interferência direta.”

Para Ceneviva, o legislativo deveria se chamar “legispassivo”, porque ele é subserviente ao poder que tem a chave do cofre. Já o Judiciário, simplesmente não existe como poder, porque lhe falta harmonia interna e hierarquia. “Poder é um grupo harmônico que age sob uma ordem única. Não é assim no Judiciário. Não há um todo homogêneo, nem piramidal em cujo topo haja alguém ditando as regras, não só jurisdicionalmente, mas administrativamente também.”

Com essa visão, Ceneviva rebate as acusações do presidente da República — a quem se refere respeitosamente como “doutor Lula” — de que o Judiciário estaria invadindo a competência dos outros poderes. “A intervenção do Judiciário é boa e, ao contrário do que disse o doutor Lula, não é uma intromissão. Ao interferir, o Judiciário cumpre a sua função.” Para ele, os juízes falam nos autos e, como atores com papel político bem definido na sociedade, têm todo o direito e obrigação de se manifestarem sempre que forem solicitados.

Autor da coluna Letras Jurídicas da Folha de S. Paulo desde 1977, Ceneviva acabou se tornando um especialista consumado em literatura jurídica. Como jornalista do antigo jornal A Gazeta, recebeu um convite de Otávio Frias, de quem era amigo, para escrever na Folha. A sua coluna é publicada aos sábados pelo jornal. Como advogado, com diploma da USP, foi procurador-geral de Justiça do Distrito Federal e diretor jurídico da Faculdade Cásper Líbero. Durante todo o tempo, advogou também em seu próprio escritório. Hoje, aos 80 anos, continua dividindo seu tempo entre a advocacia e o jornalismo.

Participaram da entrevista também os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Veja a entrevista.

ConJur — Nos últimos dois anos, houve mudanças significativas nos quadros do STF, STJ e TST. Isso muda o perfil da cúpula da Justiça brasileira?

Walter Ceneviva — Não há cúpula na Justiça brasileira. Não há hierarquia. Não há Poder Judiciário, por mais estranho que seja dizer isso. Poder é um grupo harmônico que age sob uma ordem única. Não é assim no Judiciário. O Supremo Tribunal Federal não dá palpite no Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo. Não há um todo homogêneo, nem piramidal em cujo topo haja alguém ditando as regras administrativas.

ConJur — Essa falta de cúpula é uma característica positiva da Justiça?

Walter Ceneviva — É uma característica preocupante. O Poder Judiciário tem que funcionar, tem que cumprir sua função. Pergunte para qualquer pessoa se o Judiciário funciona bem e ela vai dizer que não. É preciso mudar.

ConJur — O fato de um tribunal não interferir no outro não prejudica a comunicação entre eles, por exemplo, quando se fala em informatização?

Walter Ceneviva —A falta de comunicação é muito severa, mas há um esforço para melhorar isso. É lento, é muito lento, mas está andando.

ConJur —O CNJ serve para dar uma uniformidade administrativa a esse conjunto?

Walter Ceneviva —O Conselho Nacional de Justiça foi criado para ser uma espécie de administrador geral da Justiça. Deveria ser um unificador de valores. O problema é que, daqui um ano, o pessoal do CNJ vai reclamar do excesso de trabalho. Aliás, o conselho já começou a ter pauta excessiva. Eu tenho uma idéia, mas que não é acolhida: criar conselhos estaduais e deixar o CNJ apenas como foro recursal. O CNJ tem componentes heterogêneos, oriundos de diversos estados e cujas vivências não valem para todos os lugares do Brasil.


ConJur — Mas aí seria criado um segundo Judiciário, só que administrativo.

Walter Ceneviva —Se isso não for feito, não vai dar para ultrapassar a barreira do excesso de clientela. Vai acontecer o mesmo que está acontecendo nos juizados especiais. Alguns já estão sobrecarregados.

ConJur — Aumentar o número de órgãos e de juízes é a única solução?

Walter Ceneviva — Não. Uma das alternativas é tirar algumas questões do Judiciário. Outra possibilidade é tentar fazer com que as partes cheguem a acordos. O Tribunal de Justiça de São Paulo está tentando fazer audiências de convocação. A idéia é deixar com o Judiciário só as questões que precisam mesmo ficar com ele.

ConJur — O que acha da nova geração de juízes que está chegando nos tribunais?

Walter Ceneviva — Sangue novo é bom. O quinto constitucional também é muito bom. Digo isso com tranqüilidade porque nunca quis ser juiz. A mudança está acontecendo, mas é lenta. O grande salto dado até agora é a discussão se só os juízes mais antigos têm direito a participar das eleições para a presidência do tribunal. Permitir isso é bom. Por outro lado, não é bom politizar completamente os tribunais e permitir que todo o grupo de juízes vote. Ainda que a democracia permita isso, não é bom dentro do Judiciário. O Judiciário tem passado por uma transformação. É preciso que não haja Órgãos Especiais. Costumo brincar com meus amigos nos tribunais: “os componentes dos Órgãos Especiais não são só os muito velhos? Como podem ser especiais, então?”.

ConJur — Qual a sua opinião sobre a Constituição Federal do Brasil?

Water Ceneviva — Vou gabar o meu toco, como se diz lá em Tietê. Em linguagem jornalística, a expressão quer dizer: me auto-elogiar. Durante o trabalho da Constituinte em 1986 e 1987, eu disse para o meu amigo Geraldo Ataliba que era uma loucura fazer uma Constituição tão pormenorizada. Argumentei que a Constituição sofreria uma emenda a cada esquina, mas ele me disse que, naquele momento do país, precisava ser assim. Do ponto de vista técnico, talvez fosse melhor ter uma Constituição igual à dos Estados Unidos. Lá, quem cria emendas é a Suprema Corte, que altera seu entendimento e faz, uma hora, a lei dizer uma coisa e, outra hora, outra coisa. Aqui no Brasil não podia ser assim. Era preciso criar barragens úteis para consolidar um governo democrático. Esse resultado foi atingido.

ConJur — A nossa Constituição precisava ser emendada, então?

Water Ceneviva — Precisava, mas agora estamos chegando no momento de dar estrutura orgânica para a Constituição. Ela perdeu sua estrutura devido à quantidade de emendas que sofreu. O documento constitucional deve ter unicidade temática. Não precisa de unidade, mas de um todo destinado para um fim. Tem de ser um norte, e não uma rosa dos ventos. As normas programáticas e as inutilidades devem ser extirpadas da Constituição. Ela defende belezas como a afirmação democrática do Direito e, ao mesmo tempo, fixa taxa para venda de cigarro. Continuo achando que ela não precisava ser tão extensa.

ConJur — É preciso chamar uma Constituinte?

Water Ceneviva — Era preciso esperar um tempo depois do fim da ditadura, mas a hora já chegou.

ConJur — O senhor citou o caso dos Estados Unidos, onde o próprio Judiciário emenda a Constituição ao mudar a sua interpretação. Isso também acontece aqui no Brasil?

Water Ceneviva — A intervenção do Judiciário é boa e, ao contrário do que disse o nosso eminente presidente da República, doutor Lula, não é uma intromissão. Ao interferir, o Judiciário cumpre a sua função. Convém que o Judiciário interfira para sustar aqueles que supõem que podem fazer tudo. Quando o Judiciário exagera demais, está na hora de mudar a Constituição. A ela, o Judiciário sempre mostrou respeito, mesmo quando foi editada pelo governo da ditadura. A experiência brasileira pós 1985 mostrou interferências extremamente positivas do Judiciário, mesmo quando pode-se dizer que ele errou.

ConJur — Qual é o grande problema do Judiciário?

Water Ceneviva — O problema é o excesso de carga de trabalho. O Supremo Tribunal Federal tem a função de guardião da Constituição, que também inclui incisos próprios do Direito geral. Por isso, o STF não é uma corte exclusivamente constitucional como a corte alemã, por exemplo, que o ministro Gilmar Mendes tanto fala (aliás, ele raciocina em alemão). O STJ, criado para tratar do Direito comum, não consegue cumprir seu trabalho porque as regras do Direito comum são muito extensas e a interpretação se renova a cada dia. Os 33 ministros não dão conta e esse número não aumenta porque os ministros não querem. Eles acham que isso iria omitir a personalidade do tribunal, o que é um argumento bonito, mas que não resolve o problema. Há cortes européias com 400 juízes. A corte norte-americana tem só nove porque é estritamente constitucional. Aqui, não é assim. Há milhares de processos.


ConJur — Ao julgar a prisão civil para depositário infiel, que goza de permissão constitucional, os ministros do STF estão caminhando para entender que o Pacto de São José da Costa Rica tem o mesmo valor que emenda constitucional e, por não permitir a prisão, ele revoga o dispositivo constitucional que permite. Aceitar que um tratado internacional revogue trecho constitucional não enfraquece a Constituição brasileira?

Water Ceneviva — Há uma norma constitucional que equipara tratado a emenda. Não gosto disso porque os tratados, muitas vezes, são influenciáveis por interesses que podem não ser compreendidos no momento em que os tratados são assinados. A maioria dos nossos parlamentares, ao discutir a aprovação de um tratado [desde a Emenda Constitucional 45/04, a votação é necessária para que ele seja adicionado às normas brasileiras], não tem a menor idéia do que está discutindo. E não é porque são ignorantes. Eles são tão bons quanto os dos outros países, mas não entendem de todos os assuntos. Deixar a aprovação de um tratado nas mãos do Congresso Nacional e do presidente da República pode resultar na aprovação de interesses que não são do Brasil. Não pode ser assim. Tratado é tratado e Constituição é Constituição.

ConJur — Na hierarquia das leis, então, qual seria o lugar dos tratados internacionais?

Water Ceneviva — Fazemos do conteúdo deles emendas à Constituição. A idéia é emendar naquele campo que possa convir ao tratado, mantendo o todo harmônico que a Constituição deve ser. Vão me dizer que esse sistema não é eficaz. Mas, então, qual é? Permitir que tratado seja emendado à Constituição, certamente, não é.

ConJur — O Brasil precisa ter uma lei de imprensa?

Water Ceneviva — A lei de imprensa é necessária porque há realidades próprias da comunicação social que não são compatíveis com o Direito comum. A imprensa, às vezes, injuria, difama ou até calunia alguém. Os efeitos disso em um jornal de bairro e em outro de rede nacional são muito diferentes e assim devem ser tratados. O Direito comum não tem soluções compatíveis com a necessidade penal e civil das responsabilidades da imprensa. A lei de imprensa também protege a liberdade da qual tem de desfrutar o jornalismo, que tem de ter até a liberdade de errar.

ConJur — O senhor acha que falta autocrítica à imprensa?

Walter Ceneviva —Certas coisas não se transformam abruptamente, mas nós estamos evoluindo. Na década de 1980, os jornais eram submetidos à censura. Depois, nos anos de 1990, passaram a esculhambar Deus e o mundo. Hoje, os jornais passaram a publicar mais o famoso Erramos. É claro que o jornalista não gosta de fazer isso. Muitos têm arrogância de achar que a crítica feita a ele é mais injusta e menos válida do que a que ele fez a outra pessoa. Por outro lado, não podemos ignorar que muitas pessoas que se queixam de injustiça são as mesmas que, em outras ocasiões, delataram outros à imprensa. Exemplo clássico disso é a princesa Diana e o príncipe Charles. Um acusava o outro de usar da mídia para atingir o cônjuge. A imprensa se divertia com isso. Como o governador de Nova York foi apanhado pulando a cerca? Alguém delatou, lógico. No Brasil, também acontece isso.

ConJur — Como o senhor vê a relação entre a imprensa e o Judiciário?

Walter Ceneviva —A relação entre os dois parte de um erro fundamental. O Judiciário não entende nada de imprensa e a imprensa não entende nada de Judiciário. Jornalista entende é de Poder Executivo. Eu costumo dizer que não há tripartição dos Poderes no Brasil. O único poder que existe é o Executivo. Ele tem mecanismos de decisão imediata e de interferência direta. O Legislativo apenas cede à pressão do Executivo. Por isso, chamo-o de legispassivo. O Judiciário é um poder ignorado pelo povo, que não sabe como ele funciona. O jornalista também não compreende que o Direito é uma massa disforme que permite vários ajustes. Tem dificuldade de entrevistar os juízes porque não sabe como formular uma pergunta. O juiz não entende a pergunta e responde aquilo que quer.

ConJur — Os juízes costumam dizer que só falam no processo.

Walter Ceneviva —O ministro Marco Aurélio é capaz de honrar qualquer tribunal de qualquer país. Ele é notável. Não tem medo de falar. Se todos entenderem que o juiz só fala no processo, como um ministro do STF poderá falar de questões políticas? Como a Associação dos Magistrados Brasileiros vai poder se pronunciar? É uma bobagem dizer que juiz só pode falar nos processos. Ele fala no processo sobre a questão que está em discussão, mas não é um extraterrestre que não pode falar fora isso.

ConJur — Judiciário e imprensa, então, não falam a mesma língua. É isso?


Walter Ceneviva —Uma das minhas palavras mais freqüentes é o juridiquês. Lembro da história do advogado que levou o cliente na audiência e, na saída, o cliente perguntou ao defensor: “e aí? Ganhamos ou perdemos?”. Juiz, promotor, advogado falam a linguagem comum. Isso é muito ruim. Mas, além disso, o Direito é tão complicado e cheio de nuances que, às vezes, é difícil explicar na linguagem comum. Eu sofro muito para não escrever em juridiquês, porque isso mata o Direito.

ConJur — O senhor não acha que a comunicação entre Judiciário e jornalista está melhorando?

Walter Ceneviva —O processo é lento, mas há um esforço. Há coisas difíceis de entender, por exemplo, por que o Judiciário dá R$ 1 milhão de indenização para um juiz ofendido e só R$ 50 mil para a mãe de uma criança que morreu atropelada. É difícil de entender, mas há um raciocínio lógico. O juiz tem uma função nobre — de dar o Direito — e deve ser ofendido menos vezes e menos gravemente.

ConJur — O senhor é um grande conhecedor da literatura jurídica. Quais são os critérios para o advogado escolher o que vai ler?

Water Ceneviva — A escolha depende do enfoque que o interessado quer dar. Se o objetivo é ser apenas um profissional técnico no manuseio do processo em favor do seu cliente, não é preciso ler um estudo profundo de comentários dos códigos como o que foi feito por Pontes de Miranda. Basta breves anotações, com enfoque na jurisprudência dos tribunais e menos doutrina. Se o objetivo é seguir carreira acadêmica, é preciso ler os preceitos fundamentais e procurar os grandes autores. É preciso saber as alterações fundamentais pelas quais o processo passou em duas etapas fundamentais para o Direito Processual brasileiro, que é a da influência dos grandes juristas italianos e alemães no século XIX e depois no século XX e o resultado que estas transformações doutrinárias provocaram na nossa legislação. Se o interesse for o Direito Administrativo, é preciso buscar o Direito Francês, que influenciou o Direito Brasileiro. O importante é que o advogado decida se ele quer ser um doutrinador ou um árduo profissional que encosta a barriga no balcão.

ConJur — Quais grandes autores jurídicos brasileiros o senhor citaria?

Water Ceneviva — O Brasil teve, durante o século XX, um grupo de autores de Direito Civil absolutamente extraordinário: Orlando Gomes, Washington de Barros Monteiro, Silvio Rodrigues, Rubens Limongi França e Pontes de Miranda, por exemplo. Corro o risco de ser injusto e deixar alguém de lado. No Direito Administrativo, posso citar Celso Antonio Bandeira de Mello, José Cretella Júnior e Hely Lopes Meirelles, que deixou uma marca extraordinária. No Direito Constitucional, temos excelentes autores, como José Afonso, Michel Temer, Celso Bastos e Ives Gandra. Na área do Processo Civil, há um grupo importante da PUC, formado por Arruda Alvim e sua mulher, Tereza Alvim. Há o grupo da PUC também na área de Direito Civil — João Batista Lopes, Silvio de Salvo Venosa, entre outros. Tem o pessoal da USP e da Fundação Getúlio Vargas. Enfim, eu ficaria aqui horas citando mais de duzentos nomes.

ConJur — O senhor escreve na Folha de S. Paulo a coluna Letras Jurídicas há mais de 30 anos. Não pensa em transformar o material em livro?

Walter Ceneviva — Meus amigos insistem para eu reunir os textos em um livro. Eu não tenho paciência para isso. Precisaria de alguém para fazer. Além disso, a coluna é transeunte, embora seus assuntos sejam perenes. Publiquei um texto em 1979 com o perfil do Judiciário. Esse texto ainda vale para hoje. Talvez um dia eu me anime. São mais de 1,5 mil colunas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!