Negociação coletiva

Direito do Trabalho se integra ao bem-estar social

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2 de março de 2008, 11h37

A globalização da economia, unindo os mercados consumidores dos diversos países do globo terrestre, gerando entre os empreendedores maior competitividade e conseqüentemente a necessidade de reduzir os custos de produção para se obter êxito na colocação de seu produto no mercado, fez surgir entre os administradores de empresa a idéia da terceirização, ou seja, terceirizar certos serviços ligados à atividade-meio da empresa para baratear os custos do produto final.

A par do fenômeno da terceirização, que transformou as relações de trabalho no sistema de produção capitalista, fragmentando a classe dos trabalhadores e enfraquecendo o movimento sindical em todo o mundo, aliado ao fenômeno do desemprego agravado pelo avanço tecnológico, em que a máquina executa o serviço de vários trabalhadores, as negociações coletivas conduzidas pelos atores sociais, não raro, importam em perda de direitos em troca da manutenção do posto de trabalho.

Nesse cenário de economia globalizada e da doutrina neoliberal, que pugna pela redução do papel do Estado e pela desregulamentação das leis do trabalho, surge, em contrapartida, um movimento de defesa da dignidade da pessoa humana e de valorização do trabalho, a partir da nova teoria dos direitos fundamentais que atribui eficácia normativa e interpretativa aos princípios fundamentais insertos no Texto Constitucional e nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos.

No presente estudo, busca-se demonstrar, a partir do reconhecimento de que a dignidade humana e a valorização do trabalho são princípios fundamentais que irradiam sobre todo o ordenamento jurídico pátrio, que a remuneração mínima constitucionalmente assegurada ao trabalhador integra o conteúdo do trabalho decente e, portanto, as normas coletivas de trabalho, que fixam piso salarial para a respectiva categoria deve estar em conformidade com a política salarial implantada pelo estado, no que diz respeito à fixação da remuneração mínima decorrente do trabalho assalariado, e pautar-se pelo princípio da norma mais favorável ao trabalhador e da vedação do retrocesso.

O trabalho sob a perspectiva da Constituição de 1988

A Constituição Federal de 1988 constituiu a República Federativa do Brasil, sob a forma de um Estado Democrático de Direito, que tem por fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (artigo 1º), em que se assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacifica das controvérsias.

A Constituição traçou também os objetivos fundamentais (artigo 3º) do nosso Estado Democrático de Direito, que são: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A Constituição Federal de 1988 estabelece ainda que o Brasil, em suas relações internacionais, deve reger-se inter alia pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, solução pacífica dos conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (artigo 4º).

Em sintonia com a doutrina do Constitucionalismo contemporâneo, a Constituição brasileira incorporou todos dos direitos da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, nos seus artigos. 5º a 17, que constituem o capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais dos indivíduos e grupos sociais existentes em uma sociedade plural como a nossa. Esse pluralismo, aliado ao caráter histórico dos direitos humanos de que nos fala Bobbio[1], decorre a abertura constitucional a outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, nos termos do §2º do art. 5º da CF/88.


Assim, segundo professa Gisele Cittadino[2], os princípios, direitos e garantias fundamentais constituem o sistema de direitos fundamentais que se converte no núcleo básico do ordenamento constitucional brasileiro. Como os princípios são considerados “mandamentos nucleares de um sistema”[3], ou “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”[4], e neles se expressam os valores constitucionais, os nossos constituintes criaram as chamadas normas-princípios, que constituem os preceitos básicos da organização constitucional.

O núcleo básico de direitos fundamentais previstos em nosso ordenamento constitucional é integrado também por outros direitos e garantias fundamentais expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte.

Desta forma, a dignidade da pessoa humana e também o trabalho humano são valores essenciais que dão unidade de sentido à Constituição Federal.

Com efeito, o trabalho é indissociável do ser humano, “é um bem do homem, porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas se realiza a si mesmo como homem e em certo sentido “se torna mais homem”[5]. “O trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar. É o trabalho que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que o homem obtém normalmente mediante o trabalho.”[6]

Por isso, é que se afirma que o trabalho dignifica o homem; a virtude do trabalho, como aptidão moral, é algo que faculta ao homem tornar-se bom como homem. O trabalho confere dignidade ao homem.

Ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana figura como o fundamento das normas internacionais de proteção dos direitos humanos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), conciliando e reconhecendo os valores da dignidade da pessoa humana e do trabalho humano, consagra como princípio fundamental do direito internacional do trabalho que o trabalho não é mercadoria.

O princípio fundamental de direito internacional laboral de que o trabalho não é mercadoria visa à proteção do trabalho humano contra as vicissitudes do mercado de trabalho. Considerando que o sistema de produção capitalista não é capaz de gerar postos de trabalho para todas as pessoas aptas a laborar, verifica-se nesse sistema que a oferta de mão-de-obra tende a ser maior do que a demanda, o que inexoravelmente levaria à desvalorização do trabalho humano. Assim, visando à proteção da dignidade humana e o valor ético do trabalho nesse contexto de mercado de trabalho, faz-se necessária a intervenção estatal, para estabelecer padrões mínimos de condições de trabalho, como remuneração mínima, saúde e higiene no trabalho.

Além das menções expressamente feitas ao trabalho, nos artigos 1º e 6º da Constituição, deve-se acrescentar que a atividade econômica, nos termos do art. 170 da Constituição Federal, é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observado os princípios da função social da propriedade e da busca do pleno emprego. E a ordem social (artigo 193) tem como base o primado do trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça sociais.

Desta forma, enquanto valores constitucionais, o sistema de direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que se constitui em núcleo básico de todo o ordenamento, também funciona como critério de interpretação. Enquanto direitos positivados, são metas e objetivos a serem alcançados pelo Estado Democrático de Direito.


O comando irradiado da Constituição alcança assim todos os Poderes Públicos, executivo, legislativo e judiciário. Cada um, dentro de sua esfera de atuação, com seu papel na busca da realização dos objetivos constitucionais.

A propósito da efetividade dos direitos sociais, a partir do reconhecimento da eficácia jurídica dos princípios constitucionais, convém trazer à colação doutrina de Ana Paula de Barcellos, in verbis:

“A dificuldade maior surge quando os direitos sociais nascem sob a forma de princípios — como o princípio da dignidade da pessoa humana ou o da valorização do trabalho. Isso porque tais normas não expressam, de forma clara e precisa, o efeito que pretendem produzir ou as condutas que se podem exigir de seu destinatário. Em conseqüência disso, e sem esquecer a tradição altamente positivista que caracteriza a tradição jurídica brasileira, tudo que se lhes reconhece em termos de eficácia jurídica (de acordo com o estágio atual da doutrina) é: i) a eficácia interpretativa e (ii) a eficácia negativa.

A eficácia interpretativa significa que os princípios e as normas programáticas constitucionais vão orientar a interpretação das normas em geral, inclusive das demais normas constitucionais, de modo que o intérprete encontra-se obrigado a optar, dentre as possíveis exegeses, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente. (…)

A eficácia negativa, por sua vez, associa ao princípio ou à norma programática a conseqüência pela qual serão considerados inválidos – ou revogados, caso anteriores à promulgação da Constituição – todas as normas ou atos que o contravenham. Os dois aspectos complementam-se nos casos extremos, uma vez que, se não é possível interpretar o ato ou a norma de forma a compatibilizá-los com o princípio constitucional, passa a operar a eficácia negativa para excluí-los do mundo jurídico.

Um desdobramento da eficácia negativa, que se encontra em desenvolvimento na doutrina hoje, é a chamada vedação do retrocesso. Essa modalidade de eficácia jurídica pressupõe que os princípios constitucionais que cuidam de direitos fundamentais são concretizados através de normas infraconstitucionais, isto é, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária. Além disso, pressupõe também, com base no direito constitucional em vigor, que um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos em questão.

Partindo desses pressupostos, o que a eficácia vedativa do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação das normas que, regulamentando o princípio, concedem ou ampliam direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é, a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando revoga-se uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar.”[7]

Os direitos sociais do trabalho estão insertos no artigo 7º da Constituição reza o artigo 7º, in verbis:

“Artigo 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:”

A leitura do texto constitucional revela não apenas a não taxatividade dos direitos sociais trabalhistas, como deixa nele implícito o princípio da vedação do retrocesso. Ou seja, a Constituição elenca no artig 7º os direitos sociais mínimos dos trabalhadores e possibilita, mediante lei ou acordo ou convenções coletivas de trabalho (inciso XXVI), a instituição de outros direitos sociais, que visem à melhoria de sua condição social. Assim, a complementação do elenco dos direitos previstos na Constituição deve se dar in melius. Isto significa que ao legislador é vedada a instituição de lei, que tenda a eliminar ou diminuir o rol de direitos sociais trabalhistas já garantidos aos trabalhadores.


Com efeito, conforme sábias e sacras palavras do saudoso Papa João Paulo II, na Encíclica “Laborem Exercens”, de 14 de setembro 1981, in verbis:

“Os direitos do trabalhador inserem-se no vasto conjunto dos direitos humanos. Porém, dentro desse conjunto, eles têm um caráter próprio que corresponde à natureza específica do trabalho humano.

O trabalho é um dever do homem quer pelo fato de o Criador o haver ordenado, quer pelo fato de sua própria humanidade, cuja subsistência e desenvolvimento exigem o trabalho.

Quando se fala da obrigação do trabalho e dos direitos do trabalhador, tem-se presente, antes de mais nada, a relação entre o dador — direto ou indireto — do trabalho e o mesmo trabalhador.

Se o trabalho — nos diversos sentidos da palavra — é uma obrigação, isto é, um dever, ele é ao mesmo tempo fonte também de direitos para o trabalhador. Tais direitos hão de ser examinados no vasto contexto do conjunto dos direitos do homem, direitos que lhe são co-naturais, tendo sido muitos deles proclamados pelas várias instituições internacionais e estão cada vez mais garantidos pelos diversos estados para os respectivos cidadãos.

O respeito deste vasto conjunto de direitos do homem constitui a condição fundamental para a paz no mundo contemporâneo: quer para a paz no interior de cada país e sociedade, que para a paz no âmbito das relações internacionais, conforme já muitas vezes foi posto em evidência pelo Magistério da Igreja, especialmente após o aparecimento da Encíclica Pacem in Terris. Os direitos humanos que promanam do trabalho inserem-se, também eles, precisamente no conjunto mais vasto dos direitos fundamentais da pessoa.”[8] (ênfase acrescida)

De fato, em nossa Constituição, os direitos sociais do trabalho estão classificados no quadro dos Direitos e Garantias Fundamentais, havendo doutrinadores que defendem que os direitos e garantias individuais que decorrem do trabalho estão protegidos pela cláusula pétrea inserta no §4º do artigo 60 da Constituição.

Este entendimento vem ao encontro do direito, da doutrina e jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos, que, para garantir maior proteção ao ser humano, aplica aos direitos humanos previstos nos diversos tratados internacionais de direitos o princípio da norma mais favorável e o princípio da vedação do retrocesso.

Assim, os diversos tratados e convenções em matéria de direitos humanos atuam de forma complementar uns aos outros, de forma que o eventual conflito de normas é resolvido pelo critério da norma mais favorável. Pelo princípio da vedação do retrocesso, o Estado membro e signatário de tratado ou convenção internacional em matéria de direitos humanos não é dado o direito de invocar o seu direito interno para deixar de cumprir a norma internacional, nem tampouco atuar, por meio de quaisquer de seus Poderes Públicos, de forma a obstar a efetividade das normas de proteção dos direitos humanos.

A concepção da intangibilidade dos direitos humanos já concretizados também encontra apoio na doutrina constitucional, como exposto por Canotilho e Vital Moreira “… as normas constitucionais que reconhecem direitos econômicos, sociais e culturais de carácter positivo têm pelo menos uma função de garantia da satisfação adquirida por esses direitos, implicando uma ‘proibição de retrocesso’, visto que, uma vez dada satisfação ao direito, este ‘transforma-se’, nessa medida, em ‘direito negativo’ ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele”. [9]


E acrescenta Canotilho: “O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais é realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.[10]

Conclui-se, pois, que os direitos sociais dos trabalhadores inserem-se no âmbito dos direitos humanos do trabalho, gozando assim dos atributos da irrenunciabilidade, indisponibilidade e inderrogabilidade, estando assim infensos, seja à autonomia funcional dos Poderes Públicos, seja à autonomia privada dos particulares ou à autonomia privada coletiva das entidades sindicais, conforme se demonstrará mais adiante.

O capitalismo e a centralidade do trabalho

O problema do trabalho foi posto no clima do grande conflito que na época do desenvolvimento industrial e em ligação com ele, se manifestou entre o mundo do capital e o mundo do trabalho. Este conflito foi originado pelo fato de que os operários, pondo suas forças à disposição do grupo dos patrões, eram, por parte destes, vítimas de toda sorte de explorações. Ele encontrou sua expressão no conflito ideológico entre o liberalismo e o marxismo. Assim, o conflito real existente entre o mundo do trabalho e o mundo do capital transformou-se na luta de classe programada, conduzida não apenas com métodos ideológicos, mas sobretudo políticos[11].

De um lado o Estado Liberal, pugnando pela plena liberdade dos indivíduos para trabalhar e celebrar contratos (autonomia privada) e pela propriedade privada dos meios de produção e pela não intervenção do Estado nos negócios privados, como base do sistema capitalista de produção.

De outro lado, o Estado Comunista, pugnando pela coletivização dos meios de produção, pelo fim da propriedade privada, como forma de preservar o trabalho humano da exploração, detendo o Estado o monopólio do poder, a fim de introduzir no mundo inteiro o socialismo e o sistema comunista.

As injustiças geradas pelo capitalismo fazem eclodir a revolta da classe trabalhadora que se une em sindicatos para reivindicar melhores condições de trabalho, nascendo assim o Direito Social, como hoje é conhecido, ainda no âmbito do Estado Liberal. O confronto ideológico entre o Estado Liberal e o Estado Comunista, no qual disseminaram-se idéias fascistas e nacionalistas, fez eclodir a segunda Guerra Mundial, que, ao final, revelou ao mundo as atrocidades cometidas contra a humanidade, o que levou a criação das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que serviu de base para o nascedouro do Constitucionalismo contemporâneo.

Nessa nova ordem mundial, surge o estado do Bem-Estar Social, constituído sob os auspícios do constitucionalismo contemporâneo surgido na segunda metade do século XX, com a incorporação ao texto Constitucional, além dos direitos civis e políticos, dos direitos econômicos, sociais e culturais, refletindo assim a diversidade de idéias e de diferentes modos de concepção de vida que frutificam numa sociedade pluralista contemporânea.

O novo modelo jurídico, segundo doutrina de Souto Maior[12], diferiu-se, fundamentalmente, do antigo em um aspecto: a solidariedade social que deixou o campo da moral, para se integrar à ordem jurídica. A fixação na Constituição de interesses sociais representou um compromisso do Estado e da sociedade com o implemento e a satisfação de tais interesses, sendo o Estado até mesmo um sujeito passivo obrigado a efetivá-los.


A queda do muro de Berlim em 1989 consagra definitivamente o capitalismo, como modelo hegemônico de produção capitalista de bens e serviços no mundo do trabalho.

Conforme proficiente análise de Souto Maior[13], o Direito Social e o Estado do Bem-Estar Social, que são mecanismos de sobrevivência do capitalismo, regem-se pela necessidade de atribuir um caráter de essencialidade ao trabalho, conferindo-lhe uma compensação de natureza social. Na lógica do modelo capitalista, o trabalho aparece como fonte de toda riqueza e a sociedade se move em torno do trabalho.

Souto Maior afirma ainda que a regulação das relações do trabalho se faz, por óbvio, pelo Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho, de uma só vez, valoriza o trabalho, preserva o ser humano, busca proteger outros valores humanos fora do trabalho e regula o modelo de produção, na perspectiva da construção da justiça social dentro do regime capitalista.

O Direito do Trabalho se integra assim aos valores fundamentais do estado do Bem-Estar Social, obrigando não apenas ao Estado, mas a todos os membros da sociedade, na medida em que o maior problema social é a ausência de trabalho para todos, pois neste modelo de sociedade, como já ressaltado acima, é do trabalho que as pessoas extraem sua sobrevivência.

Não há como negar, pois, o valor do trabalho na sociedade capitalista. Enquanto se mantiver a lógica da engenharia capitalista, o trabalho fará parte da centralidade dos arranjos sociais.

O trabalho decente como parâmetro mínimo fixado pela OIT

A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1988 proclamou os princípios do Direito Internacional do Trabalho: a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; a abolição efetiva do trabalho infantil; e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.

Esses princípios e direitos estão expressos sob a forma de direitos e obrigações previstos em Convenções da OIT que foram e são reconhecidas como fundamentais dentre e fora da Organização. Desta forma, as Convenções 87 e 98 — Liberdade Sindical e Negociação Coletiva, as Convenções 29 e 195 — Abolição do Trabalho Forçado, as Convenções 138 e 182 — Idade Mínima e Abolição das Piores formas de trabalho infantil e as Convenções 100 e 111 — Salário igual para trabalho de igual valor e Discriminação em matéria de emprego e ocupação, formam as core conventions do Direito Internacional do Trabalho, cuja observação e cumprimento decorrem do simples fato de os Estados membros pertencerem e aderirem à Constituição da OIT.

Essas oito convenções da OIT constituem assim o jus cogens no âmbito das relações de trabalho. Tais convenções, ainda que não ratificadas, devem ser observadas pela comunidade internacional. Elas podem atuar também como fundamento material para os Poderes Públicos das Nações quando da elaboração das leis trabalhistas, sua execução e aplicação no direito interno dos Estados.

Por constituírem direitos fundamentais do trabalho, essas oito convenções da OIT têm aplicação direta e imediata, podendo ser invocadas pelos trabalhadores, ou seus entes representativos, para a defesa dos seus direitos perante os órgãos de jurisdição do Estado ou, se persistir o desrespeito, junto aos órgãos de jurisdição internacional (Comitê de Expertos, Comitê de Liberdade Sindical ou a Corte Internacional de Justiça), nos termos dos artigos 29 a 31 da Constituição da OIT.

A definição de trabalho decente, como não poderia deixar de ser, leva em consideração esses princípios e direitos fundamentais, além de outros direitos trabalhistas também objeto de regulamentação pela OIT.


Por trabalho decente se entende aquele cuja remuneração é adequada e é exercido em condições de eqüidade e segurança e capaz de dar uma vida digna à pessoa. Tal exigência contempla o acesso ao emprego em condições de liberdade, o reconhecimento dos direitos básicos do trabalho que garantam que não haja discriminação ou assédio moral; que o trabalhador receba um salário que permita satisfazer suas necessidades e responsabilidades econômicas básicas, sociais e familiares; que se logre um nível de proteção social adequado para o trabalhador e para os membros de sua família; que se garanta o direito de expressão e de participação, direta ou indireta, através de suas organizações representativas ou eleitas.[14]

Numa tentativa de maior precisão, Sachs apresenta o trabalho decente como sendo o “emprego” (ocupação) assalariado e por conta própria, com proteção social básica (i.e. pelo menos a proteção de acidentes e doenças ocupacionais, aposentadoria e auxílio-maternidade), com respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho (i.e. em liberdade e igualdade entre homens e mulheres e raças, sem trabalho infantil, sem trabalho forçado e com direitos de associação e de negociação), e com diálogo social — i.e. com representantes de governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores (e, onde os governos e seus parceiros sociais julgarem adequado, de outras organizações não governamentais da sociedade civil)[15].

Visa assim a OIT estabelecer a fixação de parâmetros mínimos para a avaliação do trabalho oferecido, abaixo do qual não se pode admitir que este implemente condições mínimas de segurança e dignidade compatíveis com o atual estágio civilizatório das relações sociais.

Desse modo, conectam-se os direitos sociais do trabalho aos direitos humanos buscando-se que a relativa efetividade internacional que se logrou alcançar em relação aos chamados “direitos humanos de primeira geração” seja também estendida aos de “segunda geração”, quais sejam, aqueles que configuram os direitos econômicos e sociais.

Com efeito, a indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos restaram confirmadas e ratificadas nas I e II Conferências Mundiais sobre Direitos Humanos, respectivamente na Proclamação de Teerã e na Declaração e Programa de Ação de Viena, a seguir transcritos:

O parágrafo 13 da Proclamação de Teerã afirma, in verbis:

“Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos, sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, resulta impossível. A realização de um progresso duradouro na aplicação dos direitos humanos depende de boas e eficientes políticas internacionais de desenvolvimento econômico e social”.

E os artigos 4º e 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena dispõem, in verbis:

“4. A promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais devem ser consideradas como um objetivo prioritário das Nações Unidas, em conformidade com seus propósitos e princípios, particularmente o propósito da cooperação internacional. No contexto desses propósitos e princípios, a promoção e proteção de todos os direitos humanos constituem uma preocupação legítima da comunidade internacional. Os órgãos e agências especializados relacionados com os direitos humanos devem, portanto, reforçar a coordenação de suas atividades com base na aplicação coerente e objetiva dos instrumentos internacionais de direitos humanos”.


5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase (…)”

Conclui-se assim que a noção de trabalho decente encontra fundamento nos princípios da dignidade humana e da valorização do trabalho, princípios esses que norteiam toda a atividade normativa da ONU e da OIT, com vistas a promover o crescimento econômico com justiça social, como meio essencial para garantir a paz no mundo.

A remuneração mínima: direito humano do trabalhador

Como restou esclarecido no tópico anterior, a remuneração não é o único conteúdo da definição de trabalho decente. No entanto, não há dúvidas de que a remuneração é o elemento principal, na medida em que, sendo o salário a principal contra-prestação decorrente do contrato de trabalho, é dele que o trabalhador depende para sua sobrevivência e de sua família; é a partir dele que o trabalhador poderá adquirir os bens de uso comum necessários a usufruir uma existência digna.

Ao lado do salário, outras subvenções sociais são indispensáveis para assegurar a vida e a saúde dos trabalhadores e das suas famílias, o que nos leva a noção do mínimo existencial, que a sociedade deve garantir aos indivíduos, através da atuação dos Poderes Públicos do Estado, na qualidade de dadores indiretos do trabalho.

De acordo com a doutrina social da Igreja[16], no conceito de dador indireto de trabalho, incluem-se as pessoas, as instituições de diversos tipos, bem como os contratos coletivos de trabalho e os princípios de comportamento que determinam todo o sistema socioeconômico ou dele resultam. A responsabilidade do dador indireto de trabalho é diferente da do dador direto, mas permanece uma verdadeira responsabilidade, porquanto o dador de trabalho indireto determina substancialmente um e outro aspecto da relação de trabalho, e condiciona assim o comportamento do dador de trabalho direto, quando este último determina concretamente o contrato e as relações de trabalho.

O conceito de dador indireto de trabalho aplica-se a toda e a cada uma das sociedades e, principalmente, ao Estado, pois é o Estado que deve conduzir uma justa política de trabalho, que será correta quando forem plenamente respeitados os direitos objetivos do homem do trabalho.

Em qualquer sistema de produção, a relação entre o dador direto de trabalho e o trabalhador resolve-se à base do salário. A justiça e o justo funcionamento de qualquer sistema socioeconômico devem ser apreciados pela maneira como nele é remunerado o trabalho. Em todo e qualquer sistema o salário permanece um meio concreto pelo qual a grande maioria dos homens tem acesso aos bens destinados ao uso comum. Tanto os bens da natureza quanto os bens que são frutos da produção tornam-se acessíveis ao trabalhador graças ao salário que ele recebe como remuneração do seu trabalho.

Assim, a estipulação do justo salário ou a justa remuneração constitui o problema-chave da ética social na relação de trabalho, cabendo pois ao Estado o dever de garantir a todos os trabalhadores uma remuneração mínima que satisfaça as suas necessidades essenciais e de sua família, e lhes possibilite o acesso aos bens de uso comum no atual contexto da sociedade, tendo em conta o princípio da dignidade humana e a valorização do trabalho.

Socorremo-nos novamente da lição de J.J. Gomes Can otilho, que aborda a questão nesses termos:

“Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o ‘rendimento mínimo garantido’, as ‘prestações de assistência social básica’, o ‘subsídio de desemprego’ são verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standard mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito”[17] (grifos e negrito no original)


O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos, que dispõem sobre o direito dos trabalhadores a uma remuneração justa e satisfatória, compatível com a dignidade humana e com o valor do trabalho, assegurando um salário igual para trabalho de igual valor.

Assim, a DUDH dispõe no seu artigo XXIII, in verbis:

“1 – Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego;

2 – Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho;

3 – Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.”

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõe em seu artigo 7º, in verbis:

“Art. 7º — Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente:

Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: i) um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; (…) ii) uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;”

E finalmente o Protocolo Adicional à Convenção Americana (Protocolo de San Salvador) estabelece no seu artigo 1o. “a obrigação de os Estados Partes adotarem as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio de cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo; e no artigo 2o“a obrigação de adotar disposições de direito interno (medidas legislativas ou de outra natureza), de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições deste Protocolo, que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos.

No campo do direito ao trabalho, o Pacto dispõe no seu artigo 7º o seguinte:

“Artigo 7º — Condições justas, eqüitativas e satisfatórias de trabalho — Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem que o direito ao trabalho, a que se refere o artigo anterior, pressupõe que toda pessoa goze do mesmo em condições justas, eqüitativas e satisfatórias, para o que esses Estados garantirão, no mínimo, a todos os trabalhadores condições de subsistência digna e decorosa para eles e para suas famílias e salário eqüitativo e igual, sem nenhuma distinção;”

E, por fim, o artigo 1o da Convenção da OIT 100 dispõe que verbis: “O termo «remuneração» abrange o salário ou o vencimento ordinário, de base ou mínimo, e todas as outras regalias pagas direta ou indiretamente, em dinheiro ou em natureza, pelo patrão ao trabalhador em razão do emprego deste último”.

A fim de dar concreção a esse direito fundamental do trabalhador, o Estado brasileiro, de acordo com sua constituição, previu dois institutos distintos: o salário mínimo nacionalmente unificado e o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho.

Com efeito, nossa Constituição de 1988 inclui dentre os direitos sociais dos trabalhadores, no que diz respeito ao rendimento mínimo, o seguinte:


“IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

V- piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho;”

A doutrina fala em três tipos de salário mínimo: o geral, o profissional e o de categoria. O geral é assegurado a todo empregado. O profissional é garantido por lei específica aos exercentes de uma profissão (e.g. médicos, dentistas, auxiliares laboratoristas e radiologistas — Lei 3.999/61; engenheiros, químicos, arquitetos, agrônomos e veterinários — Lei 4.950-A/66). O de categoria, também denominado “piso salarial”, fixado por convenções coletivas, é o previsto para os trabalhadores de um setor de atividade.

O salário mínimo de que trata o inciso IV do artigo 7o da Constituição constitui, na verdade, a renda mínima que deve ser assegurada não apenas ao trabalhador, mas a qualquer pessoa, independentemente de sua capacidade de trabalho ou de sua qualidade de segurado social, na medida em que tal renda é assegurada também às pessoas necessitadas, que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme se infere do artigo 203 da Constituição. Tal renda mínima integra o chamado mínimo existencial a que o Estado está obrigado a garantir a todo indivíduo e visa suprir as necessidades vitais do indivíduo, de forma a atender ao princípio da dignidade humana, que se irradia por todo ordenamento jurídico constitucional, tendo aqui especial aplicação no campo do direito social de caráter previdenciário e assistencialista.

O piso salarial, ao contrário, está diretamente relacionada à extensão e à complexidade do trabalho, levando em conta, portanto, não apenas as considerações atinentes ao princípio da dignidade humana, mas fundamentalmente à valorização do trabalho humano. Portanto, o piso salarial se constitui na remuneração mínima que deve ser garantida ao trabalhador ativo, no âmbito de uma relação formal de trabalho.

Nesse diapasão, Amauri Mascaro Nascimento[18] define piso salarial com o valor mínimo que pode ser pago em uma categoria profissional ou a determinadas profissões numa categoria profissional. E complementa afirmando que a categoria profissional é formada por empregados de diversas funções num setor comum da atividade econômica. O piso expressa-se como um acréscimo sobre o salário mínimo. É fixado por convenção coletiva. Mas, a constituição desvinculou o salário mínimo do piso salarial e autorizou os Estados (LC n. 103/2000) a instituir pisos salariais diversificados, acima do salário mínimo nacional. O piso salarial é instituto específico do Direito do Trabalho, cuja regulamentação cabe privativamente à União, nos termos do artigo 22, I, da Constituição.

Não obstante, essa competência privativa não é absoluta, na medida em que a própria Constituição, no parágrafo único do art. 22 estabelece que lei complementar pode autorizar os Estados e o Distrito Federal a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo 22.

Nesse sentido, foi editada a Lei Complementar 103, de 14.07.2000, que autoriza os Estados e o Distrito Federal a dispor sobre uma questão específica do direito do trabalho, qual seja, a fixação do piso salarial de que trata o inciso V do artigo 7º da Constituição, aplicável aos empregados da iniciativa privada, inclusive os domésticos, que não tenham piso salarial fixado em lei federal, acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Desta forma, o legislador constituinte, visando o cumprimento das obrigações internacionais e dos objetivos constitucionais do Estado brasileiro, a saber, de construir uma sociedade livre, justa e fraterna, garantir o desenvolvimento nacional e de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, autorizou aos Estados fixarem, mediante lei, o piso salarial, definido segundo o grau de desenvolvimento sócio-econômico existente no referido Estado, que será garantido aos trabalhadores que laboram na iniciativa privada. Portanto, a lei estadual que fixa o piso salarial no Estado trata de matéria afeta aos direitos humanos do trabalho, onde impera o princípio da norma mais favorável e da vedação do retrocesso.


A Lei Complementar descentraliza a política salarial, possibilitando que os Estados fixem outros patamares mínimos de remuneração (piso salarial), acima do salário mínimo nacionalmente unificado, tendo em conta o grau de desenvolvimento sócio-econômico na respectiva região.

Registre-se que, após inúmeras leis de política salarial, que retiravam a autonomia negocial das partes e do poder normativo salarial da justiça do trabalho, com vistas a combater a inflação, que se mostraram infrutíferas, o Programa de Estabilização Econômica implantado pela Lei 8.880/94, que alterou o sistema monetário nacional e mudou a moeda para real, valorizou a negociação coletiva como forma de reajustamento dos salários e reposição na data base de cada categoria, de eventuais perdas salariais, diretriz reafirmada por nova lei (Lei 10.192, de 2001).

Constata-se assim o que o Estado brasileiro logrou obter uma estabilidade econômica que permitiu a livre negociação coletiva na estipulação dos salários sem, contudo, abdicar de sua função de estabelecer uma remuneração mínima prevista em lei e velar pela sua observância. Assim, a política salarial atualmente imposta pelo Estado restringe-se à fixação da remuneração mínima, a partir desse patamar as partes estão livres para negociar.

Essa política salarial implantada pelo Estado, desvinculando o salário mínimo do piso salarial, tem o mérito de possibilitar a melhoria da condição socioeconômica do trabalhador da iniciativa privada, sem aumentar as despesas públicas decorrentes do pagamento dos vencimentos dos servidores públicos e do financiamento dos benefícios previdenciários e assistencialistas, que são vinculados ao salário mínimo.

Conclui-se, assim, que, no âmbito territorial do Estado, cuja lei estadual fixa o piso salarial nas diversas funções das diferentes categorias profissionais nela previstas, o valor do respectivo piso constitui a remuneração mínima devida a todo trabalhador que exerça igual função no âmbito da iniciativa privada.

Inviolabilidade dos direitos humanos por meio da autonomia privada coletiva

A leitura apressada da lei complementar 103/00 pode levar ao equivocado entendimento de que o piso salarial fixado na Lei Estadual somente se aplicaria aos empregados que não tenham piso salarial fixado em lei federal, acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Entendemos que essa não é a melhor e correta exegese a ser extraída da referida lei conforme fundamentos a seguir expendidos.

No tópico anterior restou ressaltado o papel do Estado na definição de uma justa política de trabalho, ao menos no que diz respeito à fixação da remuneração mínima a ser garantida aos trabalhadores, tendo em vista os valores da dignidade humana e a valorização do trabalho humano.

Ao expormos o conceito de dador indireto do trabalho, no tópico anterior, verificamos que também as entidades sindicais inserem-se nesse conceito, na medida em que a elas cabem a celebração dos contratos coletivos de trabalho, que não podem se afastar da referida política salarial, o que aliás está expressamente previsto no artigo 623 da CLT.

A dignidade humana e o valor social do trabalho constituem fundamentos da República Federativa do Brasil, expressos nos incisos III e IV do artigo 1º da Constituição os quais figuram como princípios nucleares para hermenêutica das normas constitucionais, na medida em que o trabalho está no centro de todas as relações sociais, o que se encontra positivado no Texto Constitucional, seja no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, seja no título da Ordem Econômica e da Ordem Social.

O reconhecimento e a consagração universal da dignidade humana e da valorização do trabalho humano contam com a expressa anuência por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível consuetudinário ou mesmo por meio de tratados e convenções internacionais, celebradas no âmbito da ONU e da OIT, conforme acima invocado.


As normas de direitos humanos assumem na maioria dos países status de norma constitucional (§2º do artigo 5º da Constituição) em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, e assim gozam de eficácia plena e imediata, apresentando dentre suas características mais importantes, as que passamos a enumerar; imprescritibilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, inalienabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade.

Alexandre de Moares[19] sintetiza da seguinte forma essas características dos direitos humanos fundamentais:

a) imprescritibilidade: os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo;

b) inviolabilidade: impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal;

c)universalidade: a abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica;

d) efetividade: a atuação do Poder Público deve ser para garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com mecanismos coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato;

e) interdependência: as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, possuem diversas intersecções para atingirem suas finalidades. Assim, por exemplo, a liberdade de locomoção está intimamente ligada à garantia do habeas corpus, bem como prever a prisão somente por flagrante delito ou por ordem da autoridade judicial competente;

f) complementaridade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo legislador constituinte.

Tendo em vista essas características dos direitos humanos, é forçoso concluir que os acordos e convenções coletivas de trabalho, enquanto normas autônomas infraconstitucionais, também se submetem ao princípio da supremacia da Constituição e da prevalência dos direitos humanos.

Registre-se que a questão atualmente muito controvertida relativamente à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, isto é, o cabimento da aplicação /incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, não se coloca com a mesma intensidade no âmbito do direito do trabalho, na medida em que as normas de direitos fundamentais relacionadas com o trabalho ou direitos humanos do trabalho ontologicamente são concebidas para aplicação nas relações privadas de trabalho, mormente no que diz respeito à questão da remuneração mínima.

Com efeito, a respeito dos princípios regentes das relações entre normas coletivas negociadas e normas estatais, que informa o Direito Coletivo do Trabalho, o e. Professor, Juiz e doutrinador Juslaborista, Maurício Godinho Delgado, cita em sua obra Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho, Ed. LTr, 2001, pp. 109/110, dois princípios que informam o processo negocial coletivo, por ele denominados princípio da criatividade jurídica da negociação coletiva e o princípio da adequação setorial negociada.

Segundo o festejado juslaborista, “pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autônomas juscoletivas (…) podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados.”


O autor fixa dois critérios autorizativos: quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável;

quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não se indisponibilidade absoluta).

O primeiro critério não suscita celeumas, na medida em que a norma autônoma promove a melhoria da condição social do trabalhador, mediante a instituição de direitos superiores aos positivados na legislação estatal, vindo ao encontro do princípio de proteção do trabalhador que informa o Direito do Trabalho.

Já o segundo critério estabelece como condição de validade das normas autônomas coletivas a configuração de transação acerca de direitos trabalhistas de indisponibilidade relativa.

“Desse modo, — prossegue o citado doutrinador – ela (a norma autônoma coletiva) não prevalece se concretizada mediante ato estrito de renúncia (e não transação). É que ao processo negocial coletivo falece poderes de renúncia sobre direitos de terceiros (isto é, despojamento unilateral sem contrapartida do agente adverso). Cabe-lhe, essencialmente, promover transação (ou seja, despojamento bilateral ou multilateral, com reciprocidade entre os agentes envolvidos), hábil a gerar normas jurídicas.

Também não prevalece a adequação setorial negociada se concernente a direitos revestidos de indisponibilidade absoluta (e não indisponibilidade relativa), os quais não podem ser transacionados nem mesmo por negociação sindical coletiva. Tais parcelas são aquelas imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontar a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (artigos 1º, III e IV e 170, caput, Constituição de 1988).

E conclui o referido doutrinador justrabalhista: “No caso brasileiro, esse patamar civilizatório mínimo está dado, essencialmente, por três grupos convergentes de normas trabalhistas heterônomas: as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro, as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: artigo 7o, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5o, §2o, CF/88); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, etc.).”

Nesse mesmo diapasão, o douto juiz Aroldo Plínio Gonçalves, do TRT-3a Região, no julgamento do AA-00010/96, professa o seu entendimento sobre a matéria, no excerto do v. acórdão, a seguir transcrito:

“O reconhecimento da livre negociação coletiva e da eficácia das Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho, pela constituição de 1988, invocado pelos Réus, não é incompatível com a exigência de observância dos requisitos mínimos para o reconhecimento da validade das cláusulas convencionadas.

As Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho, embora originem do poder de livre negociação, devem se harmonizar com o sistema jurídico no qual se inserem e que contém limites para a expressão da autonomia da vontade dos convenentes.

Sem o respeito a esses limites, ter-se-ia um sistema normativo paralelo e independente da própria ordem jurídica fundada na Constituição, o que é insustentável, já que o próprio reconhecimento dos instrumentos normativos se ampara em preceito constitucional.”

Em suma, o princípio da autonomia privada individual ou coletiva, esta inerente às entidades sindicais, encontra limite nas normas de ordem pública (cogentes) emanadas do Estado, materializadas na Constituição, nos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte, nas leis e atos normativos, os quais são inderrogáveis pela vontade das partes.


É o que a doutrina chama de Dirigismo Contratual Público, também chamado de intervenção do Estado nos contratos, que se concretiza através de atos dos Poderes Públicos: o Poder Legislativo, através da sua função legislativa na elaboração de normas cogentes, como as Leis Estaduais que fixam o piso salarial de que trata o inciso V do art. 7o da CF/88; o Poder Executivo, através de atos administrativos normativos e utilizando-se de seu poder de polícia, fiscalizando e impondo multas; e o Poder Judiciário, através do trabalho jurisprudencial, no sentido de buscar uma maior justiça contratual.

Desta forma, a despeito de a doutrina admitir de forma pacífica que as entidades sindicais possam fixar o piso salarial aplicável à respectiva categoria profissional, não se pode admitir que essas organizações de trabalhadores juntamente com as de empregadores atuem de forma a anular ou revogar os efeitos desejados pelo Texto Constitucional, que institui o direito fundamental a uma remuneração mínima (piso salarial), fixada pelo Estado na forma dos preceitos do direito internacional dos direitos humanos, incorporados no ordenamento jurídico interno por força do §2º do artigo 5º da Constituição, figurando assim como direito fundamental insuscetível de derrogação seja pela vontade individual das partes no contrato individual de trabalho, seja pela autonomia privada coletiva no âmbito do direito coletivo do trabalho.

A propósito da importância do papel dos sindicatos, convém trazer à colação a visão da doutrina social da Igreja Católica, nas sábias palavras do Papa João Paulo II: in verbis:

“Para a doutrina social católica os sindicatos não são apenas o reflexo de uma estrutura de “classe” da sociedade, nem tampouco o expoente de uma luta de classe que fatalmente governe a vida social. Eles são o expoente da luta pela justiça social, pelos justos direitos dos homens do trabalho. Mas, não se trata de uma luta “contra” os outros, de uma luta pela luta ou com o fim de eliminar o antagonista. O trabalho tem como característica unir os homens entre si para construir uma comunidade. Nesta comunidade devem unir-se tanto os homens que trabalham como aqueles que dispõem dos meios de produção. “Trabalho” e “capital” são dois componentes indispensáveis do processo de produção em qualquer sistema social. A união dos homens para se assegurarem os direitos que lhe cabem, nascidas das exigências do trabalho, permanece um fator construtivo de ordem social e de solidariedade, fator do qual não é possível prescindir”.[20]

Conclui-se, pois, que a finalidade universal do sindicato em todo o mundo é atuar para melhorar a situação da classe trabalhadora, a quem incube a defesa dos seus direitos e interesses individuais e coletivos, nos termos do art. 8o, III, da CF/88. Assim, afigura-se teratológica a ação sindical que contraria essa máxima extraída do próprio Texto Constitucional.

Da mesma forma, as entidades representativas dos empregadores devem ter em conta que a atividade econômica tem por fundamento a valorização do trabalho e por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditamos da justiça social (art. 170 da CF/88).

Com efeito, o entendimento aqui defendido decorre do fato de que, em matéria de direitos humanos e de direito do trabalho, onde impera o princípio da proteção do indivíduo trabalhador, eventual conflito de normas (internacionais, constitucionais ou infraconstitucionais) deve ser resolvido pelo critério da norma mais favorável e da vedação do retrocesso. Assim, por força do princípio da vedação do retrocesso, não podem as entidades sindicais, por meio de norma coletiva de trabalho, fixar um piso salarial em valor inferior ao piso salarial previsto na Lei Estadual. Caso isso venha a ocorrer, por força do princípio da norma mais favorável, deve-se aplicar ao trabalhador o piso salarial estatuído pela Lei Estadual, ante a nulidade do piso salarial fixado in pejus na norma coletiva, fazendo jus o trabalhador às diferenças salariais devidas (artigo 9o da CLT).


No âmbito da jurisprudência trabalhista, verifica-se plena aplicabilidade dos princípios protetivos aos direitos humanos fundamentais dos trabalhadores, tendo em vista a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho humano, conforme se pode inferir dos acórdãos abaixo selecionados:

“EMENTA: PRELIMINARMENTE AUSÊNCIA DE COMUM ACORDO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO. Nova redação dada ao artigo 114 da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional 45/2004, cuja interpretação e aplicação devem manter harmonia com preceitos fundamentais estabelecidos no mesmo texto. Prefacial que se rejeita, na esteira do entendimento predominante nesta Seção. MÉRITO REAJUSTE SALARIAL. Postulação que se indefere, ante a ausência de elementos indispensáveis à concessão da vantagem vindicada.

SALÁRIO NORMATIVO. Pedido deferido, em parte, para fixar o salário normativo dos integrantes da categoria profissional suscitante, a partir 01.11.2005, no valor de R$ 374,67 (trezentos e setenta e quatro reais e sessenta e sete centavos) mensais, conforme estabelecido pela Lei Estadual 12.283/05, observados os reajustes posteriormente estabelecidos na legislação estadual e ressalvados os salários espontaneamente praticados que, eventualmente, sejam mais favoráveis aos trabalhadores. DEMAIS POSTULAÇÕES. Deferimento parcial dos pedidos, pela aplicação de Precedentes deste Tribunal, de entendimentos predominantes nesta Seção, de Precedentes Normativos do E. TST. e/ou pela razoabilidade da pretensão. Indeferimento dos demais, ante a inviabilidade de concessão das vantagens vindicadas em sede de decisão normativa. Acórdão do Processo 03610-2005-000-04-00-6 (DC) Data de Publicação: 23/01/2007 Fonte: Diário Oficial do Estado do RGS – Justiça Juiz Relator: MARIA HELENA MALLMANN” (ênfase acrescida)

“EMENTA:CLÁUSULA DE ACORDO COLETIVO INCOMPATÍVEL COM O ART. 7º, INCISO XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. HORAS EXTRAS. As normas da Constituição devem ser interpretadas de modo a evitar o sacrifício total de umas em relação a outras, não se estabelecendo entre elas nível de hierarquia. Nesse contexto, para se acolher a tese recursal no sentido de que deve ser respeitada a cláusula de compensação de horários estabelecida em Acordo Coletivo, que prevê o não pagamento do saldo de horas extras acima da décima mensal, seria necessário atribuir eficácia absoluta, que não possuem, aos preceitos insculpidos nos incisos XIII e XXVI do art. 7º da Constituição Federal. E, ao mesmo tempo, pôr em nível inferior o inciso XVI do mesmo dispositivo constitucional, que determina a remuneração do serviço extraordinário, mesmo que exceda a limitação legal (CLT, art. 59). O prestígio à negociação coletiva, em um Estado democrático de direito,deve harmonizar-se com os princípios constitucionais que dão estrutura ao sistema, como a dignidade da pessoa humana do trabalhador, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa (CF, art. 1º, III e IV), ficando os atos negociais sujeitos ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário. Agravo de Instrumento a que se nega provimento. PROCESSO: TST – AIRR NÚMERO: 690277 ANO: 2000 PUBLICAÇÃO: DJ – 10/08/2001”.


“EMENTA: AÇÃO ANULATÓRIA — SUPRESSÃO DE INTERVALO INTRAJORNADA — PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO – A atual Constituição Federal consagrou o princípio da flexibilização das condições de trabalho quando, em seu artigo 7º, IV, da Carta Política, autorizou a redução salarial por acordo coletivo. Em face dessa norma constitucional, vem se admitindo o estabelecimento de normas menos favoráveis aos trabalhadores mediante acordos ou convenções coletivas, especialmente se os direitos trabalhistas transacionados apresentem cunho meramente patrimonial. Porém, há de se observar que o princípio da flexibilização não deve ser aplicado de modo indistinto, devendo ser ressalvadas as normas cuja inobservância implicaria a ocorrência de trabalho em condições que afrontariam a dignidade humana. Dentre estas normas, encontram-se aquelas referentes à segurança e à saúde do trabalhador, que devem ser mantidas sob pena de acarretar sérios e irreversíveis danos não apenas em nível individual, mas para toda a sociedade. Recurso Ordinário desprovido. PROCESSO: TST – ROAA NÚMERO: 732191 ANO: 2001 PUBLICAÇÃO: DJ — 21/09/2001”

“TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO (artigo 7º, XIV, Constituição Federal). Negociação coletiva pressupõe uma troca, com melhores condições de trabalho (8º, Constituição Federal). Quando somente o trabalhador cede em seus direitos, não há negociação, afrontando o princípio da dignidade humana (artigo 1º, Constituição Federal), impondo-se a declaração de nulidade da cláusula coletiva, com esteio no artigo 9º da CLT. (TRT- 15ª Região, 3ª T. RO 013476. Relator Luciane Storel da Silva, DOE 22.10.2001).”

“CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO. LIMITES. A ordem constitucional vigente a partir de outubro de 1988 deixou bastante claras as hipóteses em que o ordenamento jurídico admite a flexibilização dos direitos trabalhistas. A almejada introdução da flexibilização absoluta, objeto de atual proposta de alteração do artigo 618 da CLT, encontra óbice em preceito constitucional fundamental da República – o valor social do trabalho (Constituição Federal, artigo 1º, IV), além de impedir a concretização de um de seus objetivos fundamentais – a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em face do notório desequilíbrio entre o capital e o trabalho. Ademais, a garantia constitucional assegurada aos trabalhadores, do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (CF, art. 7º, XXVI), não é absoluta, pois encontra limites no livre acesso ao Poder Judiciário nas hipóteses de lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV) (…) Recurso desprovido. (TRT-10ª Região, RO 00419/2002, 1ª T., DOES 24.5.2002).”

“DIREITO COLETIVO DO TRABALHO – NULIDADES. As nulidades no Direito Coletivo do Trabalho têm uma dogmática, que as separa do Direito Individual do Trabalho, em razão dos objetivos da negociação coletiva. Se os sindicatos são livres para negociar – artigo 8º, I, e 7º, XVI, o ordenamento jurídico e a hermenêutica das normas trabalhistas devem garantir esta liberdade em seu grau maior, interpretando a Constituição e as leis, de forma a preservá-la, salvo quando ferir os direitos humanos e as disposições de ordem pública. Por isso, não é nulo o ACT que não estipula prazo para a sua própria vigência. Aplica-se neste caso o prazo genérico previsto em lei – artigo 614, §3º da CLT (TRT-3ª Região, ED 3771, 2002, Turma Seção Especializada de Dissídios Coletivos. Relator Juiz Antonio Álvares da Silva, DJMG 26.7.2002)”.

“EMENTA: NORMA COLETIVA QUE EXIME O EMPREGADOR DO PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS TRABALHADAS. Os direitos revestidos de indisponibilidade absoluta não podem ser transacionados nem mesmo mediante negociação coletiva. As parcelas imantadas por uma tutela de interesse público e, que representam um patamar civilizatório mínimo, são insuscetíveis de redução, sob pena de atentar contra a dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalhador, previstos nos artigos 1º, III, e 170, caput, da Constituição Federal. Dentre essas parcelas de indisponibilidade absoluta, encontra-se o direito do trabalhador à delimitação de sua jornada de trabalho e à remuneração superior do serviço extraordinário, assegurados constitucionalmente no artigo 7º, incisos XIII e XVI, da CF/88. Recurso de Revista conhecido, mas a que se nega provimento. PROCESSO: TST — RR NÚMERO: 596532 ANO: 1999 PUBLICAÇÃO: DJ — 14/11/2002”


EMENTA: INTERVALO INTRAJORNADA — REDUÇÃO — A despeito de a Constituição Federal de 1988 possibilitar a flexibilização do salário e da jornada (incs. VI, XIII e XIV, artigo 7º, da Constituição), não se afigura razoável lançar-se a conduta hermenêutica irradiante, ou seja, admitir-se transação coletiva acerca de qualquer direito, sob o fundamento de que até mesmo a jornada e o salário podem ser objeto de negociação coletiva. Tratando-se de direitos fundamentais e tendo em vista os princípios regentes desse ramo da enciclopédia jurídica, notadamente o princípio da proteção, cabe ao intérprete reconhecer que existem normas imantadas de indisponibilidade absoluta, imunizadas, pois, até mesmo em face da autonomia privada coletiva. Esse é exatamente o caso de normas que tratam de salário mínimo, anotação de CTPS e saúde, higiene e segurança do trabalhador.

O intervalo intrajornada insere- se nesse último grupo, porquanto o repouso para descanso e alimentação, indiscutivelmente, permite o recobro das energias, além de combater a fadiga do trabalho, de tal maneira que tem por clara conseqüência reduzir acidentes do trabalho. Destarte, a redução da jornada é infensa à negociação coletiva, consoante preconiza a OJSDI-1/TST 342. PROC. 00247-2005-051-03-00-5 RO Relator Des. Wilméia da Costa Benevides, 8ª T. DJMG 18 de março de 2006”.

Como se vê a negociação coletiva, instrumentalizada através de acordos e convenções coletivas de trabalho, encontra limites impostos pelas leis imperativas e de ordem pública, pela Constituição e pelos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte, que dispõem sobre direitos humanos fundamentais no trabalho.

Assim, estão aqui expostos fundamentos de ordem política, social e jurídica, que corroboram a nossa tese de que não se mostra política, social e juridicamente correto que as organizações de trabalhadores e de empregadores atuem em conjunto, no exercício de sua autonomia privada coletiva, para instituir, mediante instrumento normativo de trabalho, um piso salarial inferior àquele estatuído pelo Estado, após democrática deliberação pelos representantes eleitos pelos cidadãos nas Assembléias Legislativas em cada Estado da Federação.

O Papel do Ministério Público do Trabalho e do Poder Judiciário

Essas duas instituições também se inserem no conceito de dador indireto do trabalho. Ao Ministério Publico do Trabalho, instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, incumbe-lhe a defesa ordem jurídica trabalhista e a promoção e defesa dos direitos sociais e fundamentais da classe trabalhadora, ex vi do art. 127, caput e art. 129, III da Constituição.

Nos termos do artigo 83, IV da Lei Complementar 73/93, compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: IV — propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores.

A obrigação de respeitar e promover os direitos humanos decorrentes dos tratados e convenções internacionais de que o Brasil faz parte alcança todos os órgãos do Poder Público. Assim, cabe ao Ministério Público do Trabalho, no legítimo exercício de suas atribuições legais, atuar, de forma preventiva ou repressiva, para que as entidades sindicais respeitem as normas de direitos humanos do trabalho previstas na Constituição e nos tratados e convenções internacionais, cumprindo assim o seu papel de promotor dos direitos fundamentais.

Assim, eventuais convenções ou acordos coletivos de trabalho que fixem piso salarial em valor inferior ao estatuído na Lei Estadual está passível de declaração de nulidade da respectiva cláusula, por violar os princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, constitucionalmente assegurados e que servem de fundamento para o conceito de trabalho decente, nele incluída uma remuneração mínima que assegure existência digna ao trabalhador, conforme preconizado pela OIT e garantido por diversos tratados internacionais de direitos humanos, ratificados pelo Brasil, configurando assim um direito fundamental do trabalho ex vi do §2° do artigo 5o da Constituição.

Da mesma forma, cabe ao Poder Judiciário, sempre que provocado por meio da ação judicial cabível, exercer a sua função jurisdicional, de modo que as suas decisões assegurem a plena efetividade dos direitos humanos fundamentais, sendo-lhe também vedado fixar, no exercício de seu Poder Normativo, salário normativo inferior ao previsto em Lei Estadual.

No exercício de suas atribuições institucionais, o autor do presente estudo, membro do Ministério Público do Trabalho, constata, com não rara freqüência, que muitos acordos e convenções coletivos de trabalho de diversas categorias de trabalhadores estão estabelecendo valor de piso salarial inferior ao respectivo piso salarial em vigor no Estado do Rio de Janeiro, que foi fixado pela Lei Estadual 4.987, de 29 de janeiro de 2007, a título de exemplo, para a categoria de trabalhadores domésticos, serventes e trabalhadores de serviços não especializados, no valor de R$ 424,88[21].

Outros valores de piso são fixados pela Lei Estadual, para outras categorias de trabalhadores, o que deve ser utilizado como parâmetro mínimo para as entidades sindicais, sob pena de negar-se efetividade à lei estadual, que versa sobre matéria atinente aos direitos humanos no trabalho (remuneração mínima – trabalho decente), e de violação de seu dever constitucional, que é a defesa dos direitos e interesses individuais e coletivos da categoria, nos termos do inciso III do art. 8o da CF/88.

A possível reversão dessa situação terá grande impacto para os trabalhadores, na medida em que o melhor método de distribuição de renda e de promover a justiça social, é aumentar o poder aquisitivo da classe trabalhadora, que assim poderá consumir mais, maior consumo gera a necessidade de maior produção de bens e serviços, gerando mais empregos, entrando assim num circulo virtuoso, em que se deve basear o capitalismo humanizado.

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[1] Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Ed. Campus, 1992, p. 18-19.

[2] Cittadino, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1999, p. 12/13

[3] Cf Celso Antônio Bandeira de Mello, apud Cittadino, op. cit. p. 12.

[4]Cf José Afonso da Silva, apud Cittadino, op. cit. p. 12.

[5] Sartori, Luís Maria A.(org). Encíclicas papais do Papa João Paulo II: o profeta do ano 2000. São Paulo, LTr, 1999, p. 116

[6] Op. cit., p. 117

[7] Barcellos, Ana Paula. O Mínimo Existencial e Algumas Fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy, in Legitimação dos Direitos Humanos. Ricardo Lobo Torres (org). Renovar, Rio de Janeiro, 2002, p. 19/21

[8] Sartori, Op. cit. p. 130

[9] Apud Ramos, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 243

[10] Apud Barcellos, Ana Paula. Op. cit. p. 21

[11] Sartori, op. cit. p. 119.

[12] Souto Maior, Jorge Luiz et al. Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho. São Paulo, LTr, 2007, p. 22

[13] Souto Maior, op. cit., p. 26

[14] SEBGEBERGER, Philippe Egger Werner. “Problemas y políticas Del trabajo decente”. Boletin de La Organización Internacional Del Trabajo, n. 151. 2001, apud Vargas, Luiz Alberto de e Fraga, Ricardo Carvalho, in Remuneração e Renda Mínima – Dignidade do Trabalhador e Insuficiência Econômica, publicado na obra Direitos Humanos: essência do direito do trabalho. Souto Maior et al (org), São Paulo, LTr, 2007, p. 128

[15] Apud Vargas, Luiz Alberto de e Fraga, Ricardo Carvalho. Remuneração e renda mínima – dignidade do trabalhador e insuficiência econômica, in Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho, p. 128

[16] Sartori (org), op. cit. p. 131

[17] Canotilho, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, apud Barcellos, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Renovar, Rio de Janeiro, 2002, p. 255/256

[18] Nascimento, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho, São Paulo, LTr, 2003, p. 381.

[19] Apud Santos, Enoque Ribeiro dos. Direitos Humanos na Negociação Coletiva: teoria e prática jurisprudencial. São Paulo, LTr, 2004, p. 42/43

[20] Sartori, op. cit. p. 137/139

[21] A lei estadual nº 5.168, de 20.12.2007 fixou em R$ 470,34 o piso salarial para essa categoria de trabalhadores, a partir de 1o de janeiro de 2008.

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