Células-tronco

Brasil ganhou porque o STF se afastou de debate maniqueísta

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30 de maio de 2008, 11h13

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal não seguiu a esteira do debate maniqueísta da opinião pública sobre pesquisas a partir de embriões humanos. São três as mensagens claras para a sociedade: a primeira, que o maior tribunal brasileiro não julga munido por pressões externas, uma garantia essencial para a credibilidade judiciária nacional; a segunda, que vivemos num estado laico, ou seja, divorciado de qualquer conteúdo de cunho religioso, um avanço para o Estado Democrático de Direito; o terceiro e sintomático aviso é que os juízes não podem se arrogar nos poderes dos legisladores, muito embora houvesse uma enviesada tentativa, nos últimos minutos de julgamento.

O membro do Poder Judiciário não pode se acocorar pela força da mídia, da opinião pública ou publicada. Também não se guiará jamais pelo contexto religioso, mesmo aquele no qual está inserido. E, finalmente, não sucumbirá à tentação de legislar, avançando sobre poderes republicanos que não são próprios. O julgamento arejado, numa palavra, foi brilhante. Brilhante para os operadores do Direito, para o meio científico, para a comunidade religiosa, para a imprensa. Enfim, para todos. Resta-nos volver ao tema já superado pelo STF, prenúncio de outro mais polêmico — o aborto.

Embrião não pode ser comparado no mesmo patamar que a vida humana. Os estados de pré-vida, se é que podemos assim afirmar, são muitos — concepção, divisão celular, fixação na parede do útero, formação do encéfalo, conformação de membros internos, viabilidade autônoma. Legalmente, no entanto, é o nascimento com vida o marco inequívoco capaz de surtir efeitos práticos. Qualquer estado anterior ao nascimento é também protegido, mas não com a intensidade que o texto constitucional assenta para a vida humana. É que a prática civil recomenda evitar as probabilidades de vida ou morte, demarcando no momento do nascimento a real baliza para repercussões de toda ordem.

Não se quer aqui deixar consignado que o meio jurídico é insensível à vida, muito ao contrário. Os magistrados julgaram a lei que regulamenta as pesquisas e manipulações com embriões, atentos que estavam no princípio da proporcionalidade, isto é, no maior benefício com o menor prejuízo. Sopesados estavam a proteção à vida humana (se esta fosse regredida ao estado embrionário) e os benefícios na saúde de milhares de pessoas que necessitam das pesquisas para continuar esperançosos na cura ou recomposição de membros e funções inativas ou depauperadas. Daí que não podemos simplificar o debate, sob pena de equacionar a polêmica no binômio “vida versus vida”, o que seria um absurdo. Em favor da vida, foi proclamado o julgamento.

É interessante o conceito de vida, uma vez analisado sob o prisma da morte. E mais pitoresco ainda a posição das diversas correntes religiosas que não se opõem ao conceito médico de morte encefálica. Pois que, no Brasil, a morte não é a falência dos órgãos vitais, a parada cardíaca ou de qualquer órgão que não o cérebro. Morre-se e declara-se a morte quando não há mais atividade cerebral e esse estado é irreversível. A partir de então, permite-se a doação de órgão humano, sem maiores problemas de consciência religiosa. Malgrado dessa contradição, evidente que a concepção (fertilização do óvulo) não seria coerente enquanto marco científico do conceito vida e sim, no mínimo, o parâmetro encefálico como idôneo. Folgo em saber superados definitivamente conceitos baseados na plataforma da fé.

O fato é que o Brasil ganhou. Ganhou a comunidade científica que via na visão do então procurador-geral da República uma tentativa de catequizar a ciência brasileira, à moda de outros tantos países. Foi preciso uma longa discussão para se demonstrar que o credo individual de quem quer que seja não é suficiente para reverter as conquistas da ciência, da pesquisa e do sistema republicano nacional. Num grotão onde se engatinha na pesquisa de ponta, admiramo-nos com a bizantina discussão inaugurada pelo Ministério Público. O supremo fiscal da lei não só abriu um debate, mas fomentou insegurança jurídica durante todo esse calvário judicial, sucumbindo à lógica moderna de Galileu e não impondo uma ultrapassada escolástica medieval.

É certo que o julgador não é uma máquina e também se move por impulsos de caráter pessoal, mergulhado na realidade cultural, social, filosófica pelas quais foi forjado como humano. Contudo, ainda assim, enfrentando crenças e crendices, argumentos moralistas ou demagógicos, confrontando até mesmo a criação no seio cristão brasileiro, os ministros galgaram um passo a mais em favor da ciência jurídica que espargirá luzes para as demais ciências. Essa irradiação luminosa de critérios objetivos é paradigmática para outras nações americanas e certamente será anotada pelas demais nações do mundo.

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