Pena dos pedófilos

Juiz não pode satisfazer ódio do povo e contrariar ideal de justiça

Autor

  • Manoel Leonilson Bezerra Rocha

    é advogado criminalista em Goiânia (GO) presidente do Instituto Bezerra Rocha de Estudos Criminais (IbreCrim) professor de Direito Penal e doutorando em Direito Penal pela Universidade de Burgos Espanha.

26 de maio de 2008, 17h20

Há pouco tempo, uma prestigiada revista cientifica publicou a opinião de cientistas sobre oito idéias perigosas, tendo Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, respondido o seguinte: “Um dia, vamos amadurecer e até rir das punições de hoje. Mas duvido que eu consiga chegar lá”. De fato, apesar de tantos avanços científicos e de nos denominarmos como sociedade tecnológica, muitas decisões judiciais penais de hoje, notadamente quando se referem aos delinqüentes sexuais, longe estão de expressarem a inteligência que corresponda a esses avanços, sendo que muitas levam a crer que ainda vivemos em estágio de primitivismo jurídico, social e intelectual.

Comumente, quando eclode na mídia a notícia de um caso de pedofilia, os agentes responsáveis pela persecução penal, quase sempre, têm em si uma sentença previamente formada. Bem por isso, não raramente, quando o advogado de defesa pugna para que o seu cliente seja submetido à perícia psicológica ou psiquiátrica, tem seus pleitos ridicularizados e até indeferidos por alguns juízes e promotores, sob o argumento de que se trata de meros artifícios para procrastinar o andamento processual ou para pretender fazer do acusado uma vítima.

O perigo que decorre dessa mentalidade torna-se mais grave quando o próprio psicólogo ou psiquiatra forense emite os laudos não como sendo o resultado técnico, emanado do seu saber científico, mas, sim, revestido de suas convicções ideológicas, religiosas, morais. Geralmente como conseqüência do seu sentimento pessoal, influenciado pela repercussão manipulada pela mídia, simpatia ou antipatia pelo acusado periciando ou pela vítima, como ouvi certa vez, estarrecido, de um renomado psicólogo forense, durante aula de psicologia criminal, em curso de pós-graduação.

De certo que o conhecimento é ideologizado, pois a ciência é ideológica, embora uns neguem essa assertiva. Porém, reside aí a grande diferença entre um profissional comum e aquele que é um perito oficial, pois deste há a presunção de que seja isento, imparcial, confiável.

Muitas dificuldades encontramos quando somos chamados a analisar, tecnicamente, sobre a pedofilia. Apesar de encontrarmos registros antigos, ainda hoje o assunto é tratado com grande tabu. Eu mesmo sofri as conseqüências desse preconceito sobre a abordagem desse tema.

Dada à escassez de trabalhos científicos sobre o assunto e de sua grande importância para a vida prática profissional, procurei desenvolver minha dissertação de mestrado, abordando a questão da pedofilia, notadamente a que ocorre no seio das igrejas, como a Igreja Católica. E, justamente na Bélgica, considerada a capital européia da pedofilia, fui severamente criticado pela escolha do tema.

Posteriormente, em meus estudos de doutorado, meu orientador censurou-me arduamente lembrando-me de que eu estava na Espanha, em um país católico, onde a maioria dos docentes era de católico praticante e que muito dificilmente minha tese prosperaria. Elegi outra tese.

A pedofilia gera muitas divergências até mesmo na classe médica quanto à sua natureza ou conceituação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define-a como “a ocorrência de práticas sexuais entre um indivíduo maior de 16 anos com uma criança na pré-puberdade (13 anos ou menos)”, mas não a tem como uma doença. Para a psicanálise, é uma perversão sexual. Não se trata, propriamente, de uma doença, mas de uma parafilia: um distúrbio psíquico que se caracteriza pela obsessão por práticas sexuais não aceitas pela sociedade, como o sadomasoquismo e o exibicionismo.

Entretanto, para muitos cientistas forenses, toda perversão sexual é, genericamente, uma patologia, devendo mensurar-se o grau de reprovabilidade em cada agente, através de perícia técnica. Para Jim Hopper, pesquisador do Trauma Center da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, pedofilia é um conceito de doença que abarca uma variedade de formas de abuso sexual de menores, desde homossexuais que procuram meninos na rua até parentes que mantêm relações sexuais com menores dentro de seus lares. O professor Alex Raffy, da Universidade de Liège, na Bélgica, a define como “o infantilismo das grandes pessoas”.

Na nossa sociedade capitalista, alguns pais, às vezes inconscientemente, incentivam a pedofilia fabricando as vítimas em potenciais através do processo de erotização de crianças, seja por meio de vestimentas, campanhas publicitárias ou danças com insinuações sexuais.

Felizmente, a moderna psicanálise tem avançado muito, embasada em estudos e pesquisas, e já conceitua a pedofilia como uma doença, indicando, inclusive, diversos métodos de avaliação, como a elaboração de questionários e inventários da personalidade, a exemplo do Inventário Multifásico de Personalidade do Minnesota, da sigla em inglês (MMPI), o Millon Clinical Multiaxial Inventory (MCMI) e do método chamado Step (Sex Offender Treatment Evaluation Project), medidas de tratamento e até ações preventivas contra a reincidência, como as terapias de orientação cognitiva e comportamental, a extinção do comportamento sexual desviante por aversão, integração à programas de tratamentos, a exemplo do Sexual Offender Treatment Programme (Sotp).

Sendo ou não conceituada como uma doença, é certo que a prática da pedofilia sofreu e ainda sofre variações quanto à sua censurabilidade, levando-nos a crer que ela, ainda que mereça maior dedicação cientifica e respostas eficazes juridicamente, é relativizada no tempo e no espaço, o que lhe confere relativo status de produto cultural.

Enquanto em muitos países a pedofilia é duramente reprimida, social e legalmente, em alguns ela é estimulada até pelos próprios pais, como em Singapura, Tailândia e, em outros, goza de relativa condescendência, como em muitos países do Leste Europeu e na Rússia. Até mesmo a antiguidade grega nos remete a Sócrates (470-399 a.C) que, com toda a sua moral e o seu método maiêutico, dizia-se guiado pela voz da consciência (daimonion) e o oráculo de Delfos, acreditando ser a sua missão “educar” a juventude.

O escritor russo Vladimir Nabokov, autor do romance Lolita, em 1959, cuja obra alude a um padrasto pedófilo que seduz uma garota de 12 anos, (“Lolita, luz da minha vida, fogo de minha paixão, meu pecado, minha alma”), passou à posteridade como o ícone da sedução e da tentação, ganhando, inclusive, as telas dos cinemas. Este, por sua vez, em muito difere de outro russo, Eugenio Chipkevitch, psicólogo residente no Brasil que sedava e mantinha relações íntimas com seus jovens pacientes. Era celebrado na mídia e visto como uma autoridade no “tratamento de jovens”.

Verifica-se que com a variação de tempo e lugar, a idéia de pedofilia também varia. O seu enfrentamento científico e jurídico também não é pacífico. Por conseguinte, não há por que se encarar o pedófilo como um ser único, de mesma natureza psíquica, para efeitos de aplicação de sanção penal. O magistrado não pode ser um mero agente a instrumentalizar e a satisfazer o ódio insuflado da multidão, produzindo decisões essencialmente contrárias aos ideais de justiça, mas aparentemente simpáticas à opinião pública.

Resguardadas as devidas proporções de um ou outro caso, do menos danoso ao mais repugnante, as sentenças judiciais e as ações de políticas criminais devem ser efetivadas com respaldo científico de modo a poder aferir-se se o acusado pedófilo, por questão de justiça, deva ser recolhido à prisão ou submetido a tratamento médico.

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    é advogado criminalista em Goiânia (GO), presidente do Instituto Bezerra Rocha de Estudos Criminais (IbreCrim), professor de Direito Penal e doutorando em Direito Penal pela Universidade de Burgos, Espanha.

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