Estado laico

Local público não pode ser palco de show religioso

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4 de abril de 2008, 15h20

É surpreendente que os temas de caráter constitucional venham a se repetir com tanta constância. Infelizmente, os valores republicanos ainda não estão completamente integrados com o sistema político, isso depois de mais de um século. Infelizmente também, recorrentemente são os mesmos erros, talvez pelo costume que já fez a boca torta. É o caso da promoção da prefeitura de Cuiabá, ao anunciar show religioso gospel como festa de comemoração pelos 289 anos de nossa querida Cidade Verde. Por “Gospel” entendemos: “canto característico dos cultos evangélicos da comunidade negra norte-americana, frequentemente influenciado pelo blues e pelo gênero folclórico daquela comunidade, hoje estendido para toda a comunidade protestante mundial como forma de auxiliar no ofício religioso ou possibilitar a inspiração da fé”.

Após a queda do regime monárquico, a Constituição de 1891 reformou a estrutura estatal para a democracia representativa direta, onde a Igreja foi definitivamente afastada dos assuntos oficiais. O problema é que esse afastamento não pode ser apenas aparente, deve ser efetivo, por mais que as formalidades digam ou aparentem a reclamada distância. Todas as demais Cartas, a de 1934, 1946, 1967/69 e, finalmente, mais arejada, a de 1988, consagram que a União, Estados e Municípios são entes laicos, não ligados à religião de nenhuma forma, preservando a liberdade de culto, incluindo isentando de tributos as congregações das mais diversas naturezas. Essa liberdade é garantida pelo trato equânime que devemos emprestar a todos os credos, onde o Estado não pode ter qualquer preferência.

Historicamente, a inclinação é clara em favor da Igreja Católica e, mais modernamente, temos assistido ao avanço do reformismo populista, bem adequado ao estilo brasileiro, ambas as hipóteses completamente equivocadas. Virou moda o político ou apegar-se à cruz católica ou viver com a Bíblia debaixo do braço. O nenhum pouco saudoso “ensino religioso” tinha cunho catequético católico e não com escopo de esclarecer o aluno das várias tendências professadas. Coisa diversa são as escolas religiosas: se os responsáveis matriculam seus filhos nestas instituições, é porque nitidamente demonstram preferência a ser objeto de doutrina para seus filhos.

De outro giro, assistimos à proliferação de concessões públicas de veículos de comunicação para os evangélicos e católicos, enquanto algumas comunidades tornam-se gigantes empresariais e chegam a formar bancadas parlamentares. Todo cuidado é pouco para o destino dos dízimos, sejam eles de que natureza for. Trata-se de assunto público, eventualmente passível de exploração da crendice popular, promovendo verdadeiros impérios, desviando-se recurso para paraísos fiscais, entre outras possibilidades.

Pois bem. A prefeitura de Cuiabá anuncia à população que o evento “Diante do Trono”, será a grande atração das bodas cuiabanas de 289 anos. O erário não pode patrocinar qualquer manifestação ou tendência religiosa, nem de uma única doutrina, nem sincrética, ainda que seja. O poder público deve se manter afastado de tais laços, sob pena de primar por esta ou aquela convicção e patrocinar publicamente o que não está autorizado pela Constituição, esta sim, égide pela qual todos estão submetidos, incluindo o Prefeito.

Não se trata de agradar ou desagradar a população evangélica ou católica. Nem missa, nem culto, nem reza, nem oração. Local público não se presta a ser benzido ou exorcizado. É ambiente onde prima a lei vigente na nação, de caráter marcadamente laica. Qualquer estima do governante por uma determinada corrente religiosa deve ser expressa nos momentos de intimidade ou quando não está revestido das insígnias do poder. Daí não ser lícito missais, orações ou outras demonstrações de fé em local público.

Parece radicalismo, mas não é. Vejamos. O Brasil é um país essencialmente cristão. Mas a Constituição da República não tem credo algum, ela assiste a todos os brasileiros, seja a maioria, seja a minoria. Ora, se é possível celebrar culto com batismos, exorcismos, preces, louvores em ambiente público, é certo poder parar de trabalhar nos horários recomendados pelo Islã, desenrolar um tapete, voltar-se pra Meca e fazer orações em homenagem a Alá. Noutras palavras, as repartições públicas deveriam, em sinal de respeito, suspender os trabalhos durante os horários determinados.

Se assim pensássemos, pelo critério da isonomia, seria extremamente difícil conviver sob o pálio constitucional da isonomia. Aliás, feriados tipicamente católicos ou a comemoração do “dia do evangélico” que há em Brasília, sinceramente não têm absolutamente nada de legítimo. Apenas reforçam o prestígio de organizações religiosas que se politizaram a ponto de serem vetores políticos respeitáveis e temíveis por políticos. No entanto, quer gostem, quem não gostem, as crenças minoritárias são francamente discriminadas e vistas com extrema reserva.

O tradicional candomblé, mais antigo e enraizado em nossa formação nacional, as pajelanças das mais diversas nações indígenas, tomadas como casos apartados da vivência nacional, revelam o profundo preconceito social, afrontando a diretiva constitucional. Já vi políticos participarem de missas católicas, cultos evangélicos, mas não de sessões espíritas ou umbandistas. Evidente que cada qual tem direito de acreditar no que quer e apresentar-se onde se sinta melhor, mas a figura pública do governante não pode ter preferências. Particularmente, o mandatário poderá freqüentar qual templo achar por bem, mas não ostentando a qualidade de representante do povo. Por isso mesmo, manifestação religiosa em local público, por mais sincrética que seja, torna-se difícil de contornar, na ótica constitucional.

A Prefeitura de Cuiabá não pode consignar nenhum real do orçamento público em benefício de qualquer religião, grupo religioso ou empresa que promova eventos de natureza específica para um único segmento. À guiza de sugestão, quem sabe um show público com o mesmo orçamento, com artistas locais, movimentos cívicos, exposições históricas e geográficas, folclóricas, estudantis, enfim. O único “trono” para o qual o prefeito de Cuiabá deve se curvar é a Constituição da República. Pelo menos, enquanto administrador. Em particular, reza, ora, comunga, louva, medita, recita. O povo brasileiro não pode ser tratado como rebanho.

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