Análise da crise

Advogados, juízes e jornalistas: afinidades e divergências

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20 de outubro de 2007, 19h49

1. Introdução

A indignação da sociedade com a seqüência de escândalos que atingem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário tem dificultado uma análise serena sobre a atuação da mídia e os limites de seu ofício. A frustração e a perplexidade diante da impunidade geram a expectativa de que a imprensa cumpra um papel que não é seu.

São preocupantes as pesquisas revelando que considerável parcela da população acredita que a imprensa é a instituição que mais contribui para a realização da justiça. Trata-se de uma distorção. Costumo dizer que repórter não é policial, redator não é promotor e editor não é juiz.

As operações da Polícia Federal, o desmantelamento de quadrilhas com ramificações no Judiciário, as revelações quase diárias de atos de corrupção, além da impunidade estimulada pelo foro privilegiado e pela morosidade da Justiça, impedem distinguir falhas por decisões tomadas no calor da hora e erros estruturais que se perpetuam.

2. Mitos e preconceitos

Em apertada síntese, como gostam de resumir os advogados, muitos jornalistas acreditam na busca da informação objetiva, quase um mito. Já os advogados, sempre do lado de uma das partes nos conflitos, cobram o respeito a valores inalienáveis quando sua atividade é limitada por abusos de autoridades ou pelo uso de instrumentos indispensáveis para o combate ao crime organizado, como a interceptação telefônica (que não é a única prova colhida nas investigações), a quebra de sigilos e a delação premiada.

Foi por pressão internacional, diante do avanço do terrorismo e do narcotráfico, que o Brasil se comprometeu, antes do governo Lula, a criar varas para julgar crimes de lavagem de dinheiro e a adotar práticas de investigação mais invasivas. A delação premiada não é formalizada sem a anuência do defensor de quem escolhe essa opção.

Incomoda aos advogados a percepção equivocada que confunde a defesa de criminosos de colarinho branco com uma suposta conivência com ilícitos financeiros. Esse preconceito não é fruto de incompreensão da imprensa.

É comum policiais e representantes do Ministério Público afirmarem que os criminalistas “estão no outro lado do balcão”. Recorde-se a resistência da Polícia Federal à nomeação do advogado Márcio Thomaz Bastos como ministro da Justiça no governo Lula, e à de José Carlos Dias, no governo Fernando Henrique Cardoso.

Magistrados têm reservas a advogados especialistas em planejamento tributário que atuam numa espécie de consultoria muito próxima de ilícitos fiscais. Percebi, certa vez, o interesse com que um diretor da inteligência da Receita Federal anotou o endereço do escritório de advocacia que defendia um doleiro. Não surpreende que advogados insuspeitos tenham o receio de vir a ser alvos dos chamados “arapongas” do fisco.

3. Vazamentos e omissões

A grita da advocacia contra as operações de busca e apreensão aparenta esquecer que essas diligências requerem autorização judicial. Quanto mais longa a apuração sigilosa que precedeu a busca, mais indícios de prova devem ter sido oferecidos ao magistrado para determinar as prisões preventivas. Se o sigilo foi mantido rigorosamente na fase de investigação, é natural que os acusados aleguem desconhecer por que são alvos das ações policiais. Em geral, os advogados só são constituídos depois de concluídas as operações. Essas circunstâncias não justificam a demora no acesso aos autos para que eles tomem conhecimento dos fatos imputados a seus clientes.

Sobra razão aos advogados quando se queixam de que a imprensa recebe, em primeira mão, denúncias envolvendo seus clientes. Os vazamentos sempre são distorções. Mas é simplista a idéia de que procuradores ou policiais buscam holofotes. Pode haver interesses políticos, mas o vazamento é um recurso diante da certeza de que determinados processos serão engavetados se não chegarem ao conhecimento do público. Há vazamentos feitos por advogados e até por membros do Judiciário.

A presença tão criticada da imprensa nas operações de busca e apreensão pode estimular a pirotecnia policial e a exposição indevida de pessoas, constrangendo-as. Mas é uma garantia para inibir (ou documentar) excessos. Em 2005, o ministro Thomaz Bastos editou portaria determinando que essas diligências deveriam ser realizadas “de maneira discreta”. São ostensivas e intimidam. É justo admitir, porém, que, até agora, nenhum tiro foi deflagrado nas operações da Polícia Federal, instituição que não está acima de críticas.

Se todos são iguais perante a lei e se a busca de provas em gabinetes e residências de magistrados é autorizada por uma Corte Superior, são indevidas as manifestações de associações de juízes pedindo discrição, ausência de sirenes e de armamento quando as diligências alcançam magistrados.

Em vez de pretender tratamento diferenciado a juízes sob suspeição, a magistratura deveria liderar o debate sobre a necessidade de mecanismos legais para afastá-los provisoriamente até o final das investigações. Trata-se de medida prudente, para evitar que continuem a julgar e a constranger os pares nos julgamentos colegiados.

O que surpreende, mesmo, é o silêncio de um tribunal depois que gabinetes de desembargadores foram vasculhados em busca de provas. Sob a alegação de preservar a “imagem da instituição”, muitos juízes desestimularam, lá atrás, procedimentos administrativos preliminares para apurar antigas suspeitas sobre a atuação de colegas.

As operações policiais envolvendo membros do Judiciário são o fato novo que expõe antigas distorções, corporativismos e omissões. A grande maioria dos juízes é honesta e deve considerar saudável o saneamento da instituição, afastando suas maçãs podres.

4. Falhas da imprensa

São conhecidas as deficiências da imprensa no trato das questões do Judiciário. Há o despreparo e a arrogância dos jornalistas, a incapacidade de admitir erros e a falta do mesmo destaque para desfechos que não confirmam denúncias reveladas anteriormente.

Deve-se registrar, contudo, os cuidados dos órgãos de comunicação para evitar a repetição de episódios como o da Escola Base que, aliás, se tornou um “carimbo” de suspeitos para tentar desqualificar investigações jornalísticas. A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), iniciativa de jornalistas, estimula a troca de experiências e o aprimoramento profissional. É saudável a atuação do ombudsman, o advogado dos leitores. Mas a imprensa tem muito a aprender com a Justiça, como o respeito ao contraditório e a busca de várias versões para um mesmo fato.

Demorou muito para a mídia tratar com naturalidade as mazelas do Judiciário. Infelizmente, esse Poder não tem uma cobertura sistemática. É preciso acompanhar a tramitação dos processos, rastrear os sucessivos recursos que prolongam litígios e beneficiam acusados de maior poder econômico.

A imprensa ainda não se conscientizou de que os juízes são servidores públicos, sujeitos a prestar contas de seus atos. A sociedade não sabe das disputas de poder nos tribunais. É menos arriscado tratar dos escândalos do Executivo e do Legislativo. As condenações em ações de indenização movidas por magistrados contra a imprensa têm sido mais pesadas e chegam a ser justificadas como forma de inibir “novas ousadias”.

O excesso de reverências e mesuras entre advogados e magistrados realimenta a fogueira de vaidades. As apressadas manifestações de advogados em apoio a juízes eventualmente em incômoda evidência na imprensa têm sabor de advocacia interesseira.

5. Interesse público

Quando a sociedade se vê acuada diante do avanço da criminalidade, a ponto de juízes serem aconselhados a não portar a identificação de magistrados fora dos tribunais, cabe perguntar se todos nós temos respondido à altura a esse novo e alarmante cenário.

A infiltração do crime organizado no Judiciário exige cumplicidade de juízes, cobertura de policiais corruptos, intermediação entre advogados e quadrilhas e a prevaricação de membros do Ministério Público. A atuação durante muitos anos de vários juízes federais muito suspeitos, em São Paulo, já era de conhecimento de procuradores e advogados.

Os bons advogados são o melhor fiscal dos maus juízes. É conhecido o episódio em que uma grande firma de advocacia contratou empresa privada de investigação e obteve provas de corrupção de um juiz.

Essas provas foram destruídas pela presidência da Corte e o juiz corrupto foi premiado com a aposentadoria. A firma de advocacia prestou relevante contribuição, mas o serviço ficou pela metade. Caberia representação ao Ministério Público ou a divulgação dessa alta prevaricação do tribunal. Mas os advogados preferem que as disputas judiciais sejam resolvidas longe dos jornais.

Há muito sigilo em processos envolvendo juízes suspeitos. O conflito entre o interesse público e o direito à privacidade é um desafio para jornalistas e julgadores. Chamada a decidir nesses, casos, a Justiça não tem prazos para sentenciar. Jornalistas são premidos a tomar decisões em minutos, numa concorrência cada vez mais acirrada pela internet.

Quando o interesse público fala mais alto, a publicidade deve ser a regra. O livre acesso aos autos é a forma mais democrática de garantir a informação imparcial.

Este texto foi originariamente publicado na Revista do Advogado da Aasp

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