Drogas da tropa

Colocar Rio e Amsterdã na mesma panela é viajar na maionese

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17 de outubro de 2007, 0h00

Como tantos espectadores movidos pela curiosidade de ver o mais comentado filme nacional dos últimos anos, assisti a Tropa de Elite. Se tivesse que usar uma única palavra para definir esta excelente produção, usaria o termo perturbador. Tal como V de Vingança, o filme traz a revelação de como a realidade transforma conceitos ideais, a ponto de nos surpreendermos na torcida para que um terrorista destrua o parlamento britânico, ou um policial obtenha informações sobre criminosos hediondos por meio de tortura descarada. A atitude inicialmente inaceitável se torna a solução, de uma forma assustadoramente natural. Mas claro que estamos falando de filmes. Saindo do cinema, voltamos ao domínio de nossos sentidos e pensamentos.

Como bom interessado pelo tema (até por força do ofício), procurei resenhas e entrevistas sobre o filme, deparando-me com uma curiosa coincidência de opiniões. Tanto o Capitão Nascimento “original”, o ex-policial Rodrigo Pimentel, quanto o ator que o encarna nas telas, Wagner Moura, declaram-se favoráveis à legalização do comércio de drogas. Acreditam que se tornou uma luta inglória combater o tráfico nas favelas, de modo que seria preciso um novo enfoque legal. Como de costume de 11 entre 10 defensores desta tese, citam a Holanda como modelo.

Embora atraente em sua embalagem, a idéia de descriminalização geral traz (ou deveria trazer) inúmeras pendências a serem debatidas. Não pode ser defendida com tanta simplicidade, como se fosse questão de apertar um interruptor para a luz da solução agraciar a todos. Gostaria de usar uma frase que utilizo para comentar futebol, especialmente quando ouço um torcedor instituindo coisas como “pra armar o time, é só colocar Ciclano na direita, Fulano no meio, fechando com duas linhas de quatro, etc.”. Nessas horas, respondo o seguinte: seria tão simples, se fosse tão simples! Na prática, nem sempre — ou quase nunca — o esquema “simples e genial” funciona.

O primeiro ponto que rebate a falsa simplicidade é lembrar que, antes da droga, existe o criminoso — não o contrário. A “alta roda” da bandidagem trabalha com o tráfico por se tratar da “atividade” mais rentável. Se fossem engolidos pelas empresas no comércio legalizado (vem aí a Starbucks da cocaína?), acabariam seguindo atrás de outro “ramo”. Seqüestros, por exemplo. E continuariam com sua Sherwood da favela intacta, como esconderijo. Mas, como se verá mais adiante, é mais provável que permaneçam exatamente como estão hoje, mantendo a “atividade” e mudando apenas o tipo penal.

Segunda questão: partindo da concepção que a liberação legal traria empresas para assumir a confecção e o comércio, quem pode assegurar que estas se interessariam pela produção em massa de entorpecentes e afins? Será que uma empresa de cigarros, em meio a tantas dores de cabeça (literalmente) com seu produto, aceitaria mais essa? Os lucros justificariam os processos que, fatalmente, seriam movidos por consumidores lesados pela maconha? Ou talvez se proponha que o anúncio de cigarros de maconha deva conter todas as advertências que, por obrigatoriedade imposta pela atual Lei de Tóxicos, os juízes têm que ler aos portadores de drogas para uso próprio — um dos momentos mais patéticos do dia-a-dia judicial, como se o pobre usuário não conhecesse os efeitos muito melhor que os julgadores.

Ainda neste tópico, supondo que surjam empresas interessadas, também temos que supor que os antigos “comerciantes”, para combater a concorrência empresaria, farão o óbvio — sonegar (vai incidir ICMS ou ISS pelo fornecimento?) para que o produto fique mais barato. Aí fica assim: os mais abastados compram cocaína no shopping, enquanto o resto continua subindo o velho e bom morro da Tropa de Elite. E tome Capitão Nascimento para combater os inimigos — armados, naturalmente — da receita.

Comentemos, agora, o consagrado exemplo da Holanda. Um país desenvolvido, com desigualdade social mínima, em que a criminalidade é reduzida — ao contrário da observação acima sobre o Brasil. Além da menor “migração criminosa” para outros delitos, isso também denota que, por lá, menos pessoas poderão usar pedra ou pó para “tomar coragem” antes de suas condutas. Assim como, por força do maior poder aquisitivo da população, haverá número bem inferior de usuários compelidos a furtar e roubar para poderem comprar mais drogas. De saída, já encontramos estas diferenças. Com uma visão mais profunda, outras serão reveladas, certamente.

Para encerrar esta mostra preliminar, temos que recordar o seguinte: somente a lei penal benéfica ao réu retroage. Portanto, a liberação não é algo a se “testar”. Precisa ser aplicada com absoluta convicção, ou teremos milhares de presos libertados de imediato, sendo que, em caso de nova tipificação, não poderão ser processados de novo pelos crimes anteriores. E quem, na hipótese de um fracasso retumbante, responderá pelos danos sociais? O Capitão Nascimento outra vez?

Enfim, a pretensão deste artigo não é apontar uma solução, mas alertar sobre possíveis ilusões causadas pelo pensamento segundo o qual “basta” legalizar para resolver. Para adotar uma medida que deu certo em outro lugar, é preciso analisar se o cenário daqui é o mesmo de lá. Vivemos num país em que o consumo de drogas provoca danos muito além do próprio usuário, colocando em risco a integridade de inúmeras pessoas à sua volta — seja por crimes, seja por acidentes de trânsito, seja por degeneração familiar. Não é só fazer isso ou aquilo. Boas intenções nunca bastaram.

Com todo o respeito aos valorosos Rodrigo e Wagner, colocar Rio de Janeiro e Amsterdã na mesma panela, sem examinar os ingredientes disponíveis, pode acabar encarnando uma famosa gíria carioca: viajando na maionese.

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