Entrevista: Alexandre Lazzarini, juiz de Direito em São Paulo
7 de outubro de 2007, 0h00
A proposta da nova lei é chamar o credor para a sua responsabilidade junto ao devedor e ensinar ambos a negociar. Para o juiz especializado em falências Alexandre Lazzarini, o empresário brasileiro ainda engatinha nessa nova cultura.
Lazzarini é titular da 1ª Vara de Falências da Capital de São Paulo e tem em suas mãos nada menos do que casos como o da Vasp e da Parmalat, filhotes da recém-nascida figura da recuperação judicial, que surgiu com a lei de 2005. A nova figura veio para substituir a antiga concordata. Para Lazzarini, representa uma grande mudança de mentalidade.
Na concordata, explica Lazzarini, prevalecia o comodismo do credor e a ausência de negociação. Na recuperação judicial, o credor ganhou papel mais ativo. A ele cabe analisar se vale mesmo à pena ver a empresa quebrar ou se não é melhor apostar na sua recuperação e negociar para isso.
É essa mudança de mentalidade que Lazzarini acredita que poderá desafogar um pouco o Judiciário. “Quanto mais a empresa dá credito para pessoas sem condição de pagar, mais joga o problema para frente. E, lá na frente, quem vai ter de resolver? O Judiciário.” Se ambos resolverem olhar o problema quando ele surge e aprenderem a negociar, menos processos chegarão à Justiça.
Com seus recém-completados 44 anos, o juiz Alexandre Lazzarini está há pouco tempo no ramo de falências. Até então sua especialidade foi Direito de Família. Neto e filho de desembargador, gosta de ressaltar no seu currículo um fato que, para muitos, poderia ser depreciativo. Mas, para ele, é motivo de orgulho e mostra a isenção familiar na sua carreira na Justiça paulista: foi reprovado no primeiro concurso para juiz. Só entrou para a magistratura na sua segunda investida.
Alexandre Lazzarini falou à revista Consultor Jurídico sobre as mudanças trazidas pela nova lei de falências e recuperação judicial. Também participaram da entrevista os jornalistas Fernando Porfírio e Maurício Cardoso.
Leia a entrevista
ConJur — A nova lei de falências representa uma mudança de mentalidade na forma de tratar empresas em dificuldades?
Alexandre Lazzarini — Sem dúvida. Mas o número de falências ainda é absolutamente maior do que o número de empresas em recuperação judicial. Na 1ª Vara de Falências de São Paulo, onde sou titular, 90% dos processos são de falências e apenas 10% de recuperação judicial.
ConJur — Então onde pode ser vista essa mudança de mentalidade?
Alexandre Lazzarini — Pode ser notada principalmente no surgimento do processo de recuperação judicial. Na época da concordata, o credor era uma figura sem maior expressividade no sistema, embora pudesse pedir a falência da empresa. Hoje, na recuperação judicial, na assembléia de credores, eles têm o poder de decidir o destino da empresa. Embora possa haver motivos jurídicos para pedir a falência da empresa, o credor com visão de mercado pode ver que essa não é a melhor saída, mas sim apostar na empresa. Para os trabalhadores, a empresa é a fonte de renda e, muitas vezes, vale mantê-la.
ConJur — O empresário já se encaixou nessa nova cultura dos negócios?
Alexandre Lazzarini — Ainda está engatinhando. Ainda existe aquela idéia do “você me deve, não me paga e, por isso, não quero nem negociar mais”. E existe também o comodismo do credor, acostumado com a concordata.
ConJur — Qual é o papel do juiz nessa nova cultura?
Alexandre Lazzarini — O juiz tem de analisar os requisitos previstos em lei, não adentrar no mérito da viabilidade econômica da empresa. Ao juiz cabe verificar se as informações prestadas pela empresa estão em ordem ou não. O mérito dessas informações tem de ser analisado pelos credores.
ConJur — Qual a participação do fisco na recuperação judicial?
Alexandre Lazzarini — Os créditos fiscais não estão sujeitos à recuperação judicial. O credor fiscal pode continuar com a execução fiscal, pedindo penhora de bens, ainda que a empresa esteja em processo de recuperação. Por isso é tão importante deixar claro a situação fiscal da empresa antes de começar a recuperação. Muitas vezes, o fisco pode inviabilizar o plano de recuperação.
ConJur — Isso não contraria o objetivo da lei?
Alexandre Lazzarini — Essa é uma das grandes discussões de hoje. A terceira decisão no Brasil dispensando a exigência da Certidão Negativa de Débito para a empresa recuperanda foi minha, mas isso não significa que a empresa esteja dispensada de pagar os tributos atrasados.
ConJur — Se o juiz está à frente de um processo de recuperação judicial e vê que tudo vai bem, mas um credor pede a falência e há motivos jurídicos para decretá-la, ele pode negar?
Alexandre Lazzarini — O artigo 47 da lei de falências fala da função social da empresa. Aí, há argumentos para justificar a rejeição do pedido de falência. É algo complexo que não dá para fixar uma regra. Os casos têm de ser analisados individualmente.
ConJur — O senhor disse que 90% dos processos que tramitam na sua vara são pedidos de falência. Isso é uma opção dos credores ou há dificuldade de aceitar a recuperação judicial?
Alexandre Lazzarini — É incapacidade de entrar em uma recuperação. O processo de recuperação é multidisciplinar. Costumo dizer que é um processo negocial e empresarial. Tem muito pouco de jurídico nisso. A lei dá as diretrizes apenas. Quando o faturamento da empresa começa a cair, em geral, o empresário põe a culpa no excesso de tributação, nos juros bancários, mas não olha, por exemplo, que o produto que fabrica está deixando de ser útil no mercado. Ele só vai notar isso e começar a repensar a empresa quando já estiver com os títulos protestados. Nesta altura, já está sem credibilidade junto aos credores. Por isso eu digo que a visão do próprio empresário tem de mudar.
ConJur — E os credores?
Alexandre Lazzarini — O credor, ao invés de segurar as pontas quando vê que o devedor não vai conseguir pagar, continua dando crédito. Ele vai dando mais corda.
ConJur — Como essa cultura, que ainda prevalece, afeta o Judiciário?
Alexandre Lazzarini — Tem uma pesquisa da professora Maria Tereza Sadek em que ela fala: “os juízes trabalham muito, mas é o mesmo que enxugar gelo”. Quanto mais a empresa dá credito para pessoas sem condição de pagar, mais joga o problema para frente. E, lá na frente, quem vai ter de resolver? O Judiciário. O acúmulo de processos leva à demora nos julgamentos. Com essa demora, acaba virando um negócio válido entrar com uma contestação de cobranças, sejam cobranças devidas ou indevidas. Ou seja, essa briga entre credor e devedor sobrecarrega o Judiciário. Quem se aproveita disso é o mau pagador.
ConJur — A nova lei de falências estimula a negociação e tende a aliviar um pouco o Judiciário?
Alexandre Lazzarini — A lei trouxe o estímulo à negociação, mas precisamos aprender a negociar. Pela antiga lei de falências, o simples fato de o devedor procurar o credor para tentar negociar a dívida já era motivo para pedir a falência. Isso não existe mais hoje. O devedor, hoje, tem liberdade para procurar o credor para negociar. Outro ponto da nova lei importante para reduzir o número de pedidos de falências é a fixação de valor mínimo da dívida. Antes, tínhamos pedidos por dívidas de R$ 700. Hoje, tem de ser, pelo menos, 40 salários mínimos. Essa foi a principal causa da redução brutal na quantidade de pedidos de falências. Reduziu em 90%, mais ou menos, mas a proporção entre processos de falência e recuperação judicial permanece a mesma: 90% e 10%, como eu disse antes.
ConJur — Por que 40 salários mínimos?
Alexandre Lazzarini — Foi uma opção legislativa. Mostra que se começa a discutir a utilidade do processo. Às vezes, por exemplo, pode-se gastar um valor mais alto movendo a máquina judiciária do que o valor da dívida protestada. Esse valor mínimo fixado não impede, evidentemente, que credores formem um consórcio e atinjam os 40 salários mínimos para pedir a falência da empresa pela impontualidade, que é o não pagamento da dívida no dia previsto.
ConJur — Quais são os motivos mais comuns para se pedir a falência de uma empresa?
Alexandre Lazzarini — 98% dos pedidos são feitos por causa da impontualidade, que é motivo suficiente para a falência ser decretada. Outra causa de falência é o que chamamos de execução frustrada. É quando, em uma execução de título judicial, o devedor não paga e não nomeia bens a penhora. Há outros casos previstos na lei, como abandonar o estabelecimento de maneira injustificada, começar a se desfazer do patrimônio também sem justificativa ou ainda a alienação do estabelecimento de maneira fraudulenta. Muitas vezes, essas razões para se pedir a falência da empresa são concomitantes, mas pede-se apenas pela impontualidade porque é mais fácil de provar e faz com que todo o processo de falência seja mais rápido.
ConJur — O que é determinante para decidir entre a decretação da falência e a recuperação judicial?
Alexandre Lazzarini — Primeiro, a vontade do devedor. Muitas vezes, o processo começa na recuperação judicial e termina na falência. Um caso que pode ser considerado paradigma disso é o do Grupo Pires, que foi um dos maiores grupos de segurança privada do país. São cinco empresas no grupo. O pedido de recuperação estava em ordem, o plano era factível, mas outras causas começaram a interferir no desenvolvimento das empresas do grupo, que não teve condições de seguir com a recuperação. Então, ele optou por pedir a auto-falência. E foi deferia a continuidade de negócios de três das empresas, que continuam funcionando e, desde a decretação da falência, passaram a ter condição de arcar com todos os encargos trabalhistas e fiscais, e com seus fornecedores. Evidentemente, há um passivo anterior. Mas dali em diante, pelos relatórios que são apresentados, não houve mais atraso de pagamento de salários ou de impostos e as empresas estão fazendo caixa para poder pagar todos os credores.
ConJur — E aí pode ser feito novo pedido de recuperação?
Alexandre Lazzarini — Não. A lei não prevê isso. A falência decretada significa liquidar a empresa. Ela pode ser vendida como uma unidade produtiva em funcionamento, como é o caso das empresas do Grupo Pires, que ainda não foram vendidas. Estamos em processo de avaliação. Se tudo der certo, estarão liquidadas em um ano.
ConJur — Ou seja, nem sempre a falência é a pior saída.
Alexandre Lazzarini — Nem sempre, como no caso do Grupo Pires. Muitas vezes a empresa é viável desde que não tenha passivo.
ConJur — Mas o que é feito com o passivo, nestes casos?
Alexandre Lazzarini — A finalidade é vender a empresa e, com o dinheiro apurado, pagar o passivo.
ConJur — Há, nos processos de falência, uma briga de competência entre a Justiça Cível, a Criminal e a Trabalhista. Como resolver isso?
Alexandre Lazzarini — É preciso entender que o patrimônio do devedor é a garantia de que a dívida contraída será paga. O processo de falência não tem por finalidade dar tratamento diferenciado entre os credores. A idéia é liquidar e pagar os credores de acordo com a ordem de preferência definida em lei. Ou seja, dividir em partes iguais, e não pagar toda a dívida de um e deixar o outro sem nada. Isso não ocorre, por exemplo, num processo individual de um credor. Ele ajuíza a ação e a Justiça manda pagar sem se preocupar com os outros credores. A falência não pode ser assim. Tem de ser mais global. O processo de falência e recuperação judicial tem natureza coletiva.
ConJur — O senhor diz que o patrimônio é justamente a garantia da dívida. No caso, por exemplo, do Banco Santos, o que se questiona criminalmente é justamente a origem desse patrimônio.
Alexandre Lazzarini — Eu não conheço esse processo. Ainda que o patrimônio tenha sido adquirido de maneira fraudulenta, os credores foram lesados. Se houve superfaturamento ou não, isso é outro problema. O patrimônio dever ser usado para pagar os credores.
ConJur — A especialização do Judiciário está tornando mais célere a efetiva aplicação da Justiça na área de falências?
Alexandre Lazzarini — Por enquanto, sim. Pelo menos aqui na capital de São Paulo. Isso assusta um pouco os devedores, porque as decretações de falência estão vindo muito mais rápido do que antigamente. Antes, credor e devedor usavam a demora da Justiça para tentar negociar. Hoje, quando vão ver, a falência já foi decretada.
ConJur — Quer dizer, não é mais possível usar o Judiciário como meio de pressão.
Alexandre Lazzarini — Aqui na capital, não. Pelo menos, por enquanto. Mas é preciso cuidar com o aumento do movimento nas únicas duas varas especializadas de São Paulo.
ConJur — Por quantos processos o senhor é responsável hoje?
Alexandre Lazzarini — São 800 processos. Só que, por exemplo, só no processo da Vasp há cerca de 2,5 mil atos. Imagine só! E isso não é contabilizado nas estatísticas. As varas de falências de São Paulo não têm juiz auxiliar e estamos pedindo para que tenham.
ConJur — O senhor disse que o processo de falência ou recuperação da empresa é multidisciplinar. Na sua vara, há técnicos para auxiliá-lo?
Alexandre Lazzarini — Não, apenas escreventes. Quando preciso de um serviço especializado, eu tenho que pedir um perito.
ConJur — Seria útil ter uma equipe de consultores para auxiliá-lo?
Alexandre Lazzarini — Eu acho que sim. Em vez de eu ter que nomear um contador para me dizer se as informações que constam da petição inicial estão contabilmente em ordem, eu poderia pedir para um funcionário meu.
ConJur — Vamos falar de casos concretos. O caso da Varig e da Vasp são tão diferentes para as duas terem tratamentos tão diversos?
Alexandre Lazzarini — Não. O tratamento das duas é quase igual. A única diferença é que a Varig continua operando na sua atividade mais vistosa que é voar. A Vasp continua operando, mas só na parte de manutenção. Nos dois casos, buscou-se preservar a unidade produtiva. Duas empresas já manifestaram interesse pela Vasp. Lá, há ainda aproximadamente 300 trabalhadores.
ConJur — Existe possibilidade de a Vasp voltar a voar?
Alexandre Lazzarini — Eu acredito que sim, desde que seja vendida. É preciso que entre um investidor para ela voltar a voar.
ConJur — O caso da Parmalat é um bom exemplo de recuperação?
Alexandre Lazzarini — Da Parmalat Alimentos Operacional, eu acredito que sim. Já a Parmalat Holding está com problemas. Já teve dois planos de recuperação rejeitados. Eu também acho a Varig exemplo de sucesso, aos trancos e barrancos.
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