Algemas do autoritarismo

Repressão feita pelo governo é ineficiente e autoritária

Autor

  • José Paulo Cavalcanti Filho

    é advogado pós-graduado pela Universidade Harvard (EUA). Foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e da Empresa Brasileira de Notícias além de secretário-geral do Ministério da Justiça (governo Sarney).

30 de maio de 2007, 17h04

Basta. Democracia exige sobriedade. Comedimento. Respeito à lei. Elementos incompatíveis com a dimensão de espetáculo que vem revelando algumas operações policiais, no triste Brasil de hoje. É evidente que ninguém defende a impunidade. Para ninguém. Especialmente em relação a poderosos que, desde sua formação, tomaram conta do país. Fabio Konder Comparato chega a dizer que o grande problema, por aqui, é que primeiro vieram nossas elites e só depois o povo.

Todos devem responder por seus atos, claro. Se for o caso, devem também ir à prisão. Mas só depois do devido processo legal e de sentença judicial. Prisão, antes do processo, só em casos bem específicos: flagrante delito, risco de violência física, coação de testemunhas. Fora disso, resta só um gesto desnecessário e menor de autoritarismo.

Segundo a Constituição, somos todos inocentes até que se prove o contrário. Mas constituições, com desalentadora freqüência, são só suspiros românticos. A regra, em vigor hoje, é a de que somos todos presuntivamente culpados. Tendo que provar nossa inocência depois, muitas vezes já na cadeia.

Recordar é viver. Na primeira e mais espalhafatosa dessas operações, o presidente da Schincariol foi preso e algemado em seu quarto. De madrugada. Tudo sob as luzes da televisão. A acusação (ou pretexto) era a de fraude fiscal — sem que sequer tivesse sido lavrado o correspondente Auto de Infração, mas isso só se soube mais tarde.

Para os homens simples do povo, foi quase um delírio. Depois de décadas de impunidade, com penitenciárias entulhadas só por negros, pardos e pobres, agora também ricos são presos. A prática, no imaginário coletivo, funcionou como uma revanche dos oprimidos. Mas foi mesmo legal a operação?, eis a questão.

Dos regulamentos da Policia Federal, consta expressamente que não se deve invadir residências na madrugada. E, segundo portaria do Depen (Ministério da Justiça), há só duas situações que autorizam o uso de algemas:

a) quando houver risco de fuga;

b) quando o acusado puder por em risco a integridade física dos agentes policiais.

Sobram perguntas e faltam respostas. Por que a prisão de madrugada? Quando se poderia esperar o amanhecer breve. E qual o risco de um velho em seu quarto, de pijamas, poder ferir alguém? A explicação é estonteantemente simples. Ali, o que houve, foi só uma representação teatral. Sob as luzes gloriosas da televisão. “Bravos policiais”, dirão muitos. “E a lei?”, perguntarão alguns poucos. A lei?, ora a lei, ninguém parece muito preocupado com isso.

Grave, nesse exemplo, é que o aconteceu depois. A Schincariol foi declarada inocente, pela Receita Federal. O velho exibido nas TVs, algemado e de pijamas, morreu em seguida. E os responsáveis pela operação não foram presos — como deveriam, por terem evidentemente praticado o crime de abuso de poder.

Agora, na sexta (25/5), mais uma operação espalhafatosa atinge grupo empresarial pernambucano. Homens sem antecedentes criminais, e com endereço certo, são privados da liberdade — sem que representem qualquer perigo à sociedade. Nenhum deles jamais nos assaltaria, pelas esquinas do Recife. Serão inevitavelmente soltos, em alguns dias. Depois julgados. Assim seja. Caracterizado o Cartel, que cumpram suas penas. Mas, declarados inocentes, e então o mal da prisão de agora estará irremediavelmente feito.

Os do povo, bravo povo eleitor, são expectadores inocentes. Durante décadas viram florescer a impunidade, como realidade objetiva; e a sensação de impunidade, como realidade subjetiva. Anseiam por culpados atrás das grades, sobretudo se for gente importante. E não conseguem perceber o volume de autoritarismo que se exibe em operações policiais assim.

Nem é de hoje, esse autoritarismo. Que esses brasileiros anônimos, por tempo demais, são os mesmos que já sofrem nas cadeias sem mesmo ser condenados. Com nomes anunciados, com estardalhaço, pelas delegacias de polícia. Aviltados, diariamente, em programas policiais de rádio — em que são invariavelmente exibidos como arrombadores e maconheiros, também sem ser antes condenados. Tudo sob o silêncio cúmplice das elites.

Engraçado é que, agora, também os dessas elites são vítimas. Os mesmos que, em seus carros blindados, querem multidões nas prisões. E só quando esse modelo autoritário começa a entrar em seus próprios lares, só então, começam a perceber, atônitos, que ele não serve a ninguém.

Por tudo, é tempo de refletir com mais atenção sobre o estilo que vem sendo empregado pelo Governo, na repressão. Ineficiente e autoritário. Com a esperança de que os compromissos com a democracia, tão presentes na retórica dos ocupantes do poder, se converta em ação real; e que afinal passe, da intenção vazia dos discursos, aos gestos reais de respeito à lei.

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