Pulseira constritora

Para haver igualdade, todo preso deveria ser algemado

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16 de junho de 2007, 0h00

Encontra-se pronto para entrada em pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o Projeto de Lei 185/04, de autoria do senador Demóstenes Torres, que regulamenta o emprego de algemas em todo o território nacional.

O assunto é altamente polêmico e, certamente, gravaram-se nas memórias de muitos brasileiros as prisões de políticos famosos e seus familiares, de ricos empresários, de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. A atitude de algemá-los gerou manifestações efusivas de apoio por boa parte da população, mas também, em larga medida, de repúdio, por outra banda.

Necessidade, desnecessidade, execração pública e preservação da imagem dos presos são questões atinentes ao tema. Segundo o Dicionário de Termos Árabes da Língua Portuguesa, de Júlio Doin Vieira (Editora da UFSC), origina-se a expressão algema de al-ligâma, admitindo a variável aljama, tendo como significado bracelete ou pulseira.

Fato é que, há muito, reclama o ordenamento jurídico a regulamentação do tema, para que se balize sua utilização, para orientação do povo, para a própria segurança jurídica e também para segurança corporal dos presos e dos policiais que as utilizam.

No âmbito federal, o artigo 199, da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210), prevê, há mais de vinte anos, que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”, decreto este, até hoje, não editado. O Código de Processo Penal Militar, em seu artigo 234, parágrafo 1º, prevê que o “emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242”. Este faz referência às autoridades, portadores de diploma universitário, etc.

Nenhuma outra lei federal relevante refere-se expressamente às algemas, embora o artigo 292, do Código de Processo Penal, refira-se à autorização para o executor de uma prisão empregar os “meios necessários” para opor-se à resistência à prisão, fato que caracterizaria a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal por parte ao autor da prisão (artigo 23, do Código Penal).

No âmbito do estado de São Paulo, regulamenta o tema o Decreto Estadual 19.903/1950. Nele, fica estabelecido que o uso restringe-se aos presos que ofereçam resistência, tentem a fuga e para a condução de “ébrios, viciosos e turbulentos” à presença da autoridade. Também nos casos de transporte de presos para outra dependência, remoção de presídio, ou daqueles que “por sua conhecida periculosidade possam tentar a fuga” ou que a tenham tentado e resistido à prisão, anteriormente.

Como se vê, a tônica disciplinar da matéria – não regulamentada devidamente – excepcionaliza o emprego do instrumento constritor. Todavia, é fato notório: quase todo preso sem estudo, dinheiro ou fama, tenha ou não oferecido resistência, seja ou não primário, é algemado para ser conduzido à prisão.

Alguns juristas radicais defendem que tais hipóteses podem caracterizar abuso de autoridade, mas muito raramente os casos são apurados e, quase nunca, são levados a julgamento. Embora juridicamente discutível a lisura do ato de se algemar o preso que não tenta a fuga nem resiste (ao qual podemos chamar de “preso conformado”), a licitude da conduta policial não é sequer questionada pela massa leiga. É como um direito solidificado dos agentes públicos (desde que não arbitrária à prisão).

Todavia, se urgente a regulamentação da matéria, a possibilidade de futura aprovação do projeto de lei inicialmente referido, nos moldes em que se encontra, preocupa-me sobremaneira, como imagino deva preocupar a todos os operadores do Direito, cidadãos e, especialmente, aos policiais.

Lá se estabelece, seguindo-se a tendência da escassa previsão normativa já citada, que as algemas devam ser usadas excepcionalmente, apenas. Até mesmo nos casos de execução do ato de prender (em flagrante ou no cumprimento de mandado judicial), somente quando existir resistência ou tentativa de fuga.

Nas audiências, perante autoridades judiciais ou administrativas, o uso se dará só “se houver fundado receio, com base em elementos concretos demonstrativos da periculosidade do preso, de que possa perturbar a ordem dos trabalhos, tentar fugir ou ameaçar a segurança e a integridade física dos presentes”. Pode ser usada, também, em “circunstâncias excepcionais, quando julgado indispensável pela autoridade competente” ou “quando não houver outros meios idôneos para atingir o fim a que se destinam”.

Ora, embora possa parecer de bom tom que se regulamente a matéria nestes termos, ocultam-se, em verdade, situações de altíssimo risco de vida aos policiais ou pessoas incumbidas de executar as ordens de prisão, risco às autoridades que presidem ou demais pessoas que participam de audiências (advogados, funcionários, jurados, vítimas e testemunhas), perigo de vida aos agentes públicos incumbidos dos deslocamentos de presos e também para toda a população, exposta às “balas perdidas” decorrentes de uma perseguição em via pública.

Aos que não sabem, no tenso momento de uma prisão, na maioria das vezes, com uma arma apontada contra si, por um instinto de preservação da vida, o preso não reage, nem mesmo tenta a fuga, motivo pelo qual se mantém imóvel e permite, repita-se, normalmente sob a mira de uma arma, que seja algemado.

Pode-se, assim, conduzi-lo ao distrito policial ou a alguma unidade prisional, num primeiro momento, com enorme diminuição de riscos aos agentes públicos da polícia e do sistema penitenciário. Sendo aprovado o Projeto de Lei 184/2004, que dá a entender que caracterizará crime o emprego de algemas fora das situações nele autorizadas, os policiais e a população estarão em constante risco.

Isso porque, depois do impactante momento da primeira abordagem policial, não sendo algemado o “preso conformado”, seguir-se-á a seguinte indagação: como levar aquele preso até o distrito policial? E se fossem dois presos por um ou dois policiais? Se estiverem a pé os agentes da lei, deverão segurá-los pelos cós das calças, pelos braços ou pelas golas das camisas? Ou os policiais irão acompanhá-los com as armas apontadas contra suas cabeças, caminhando assim entre a população? Caso fossem conduzidos no banco traseiro de uma viatura, sem as algemas, como seria possível evitar uma fuga diante da parada em um semáforo?

Na hipótese de serem transportados no compartimento para presos das viaturas maiores, como evitar uma desabalada carreira, ou uma agressão, no momento da abertura da porta, já que a visão é prejudicada para quem está de fora da viatura?

Não nos esqueçamos que após o primeiro instante, quando o preso pensa na preservação de sua vida e, muitas vezes, rende-se, sobrevém um segundo instante, no qual se sobrepõe a instintiva busca pela liberdade, mais acentuada no momento em que surge a ordem para entrar em um distrito policial, em uma cela ou para adentrar pelos portões de um presídio.

Com certeza serão infindáveis os casos de fuga ou tentativa de fuga. E qual alternativa está sendo dada aos policiais? Atirar nos presos pelas costas e responder criminalmente por homicídio? Passar a ter mais exercícios físicos para aprimorar o preparo para que possam correr atrás dos presos? Chamar reforços a toda prisão banal e, assim, comprometer a falta de pessoal em prejuízo da população? E nos fóruns, como circulariam entre as testemunhas, vítimas, advogados, juízes, promotores de justiça, advogados e funcionários?

Não se olvide que os criminosos com um mínimo de inteligência, ao saberem da entrada em vigor da nova lei, certamente não mais reagirão nem tentarão fugir no instante da abordagem, mas esperarão comportadamente, sem as algemas, para se insuflar com violência ou para tentar a fuga em ocasião mais propícia. Sem contar a possibilidade de outros marginais passarem a agir para resgatar seus “colegas” que, sem as algemas, também poderão efetivamente agir, atrapalhando a ação dos policiais que ali se encontrarão para evitar a fuga.

Os críticos ao uso das algemas, normalmente, argumentam ser o uso do instrumento constritor do movimento dos braços aviltante, atentatório contra a dignidade da pessoa humana. Entretanto, nessa linha de raciocínio, deveriam entender ser inconstitucional qualquer lei que, a qualquer pretexto, a autorizasse.

Parece-nos, tal posição, marcada por uma dramaticidade exacerbada e de pouco senso prático. Em primeiro lugar, porque o uso das algemas é tão atentatório à dignidade humana quanto deixar alguém atrás das grades de uma cela. Concordo plenamente que não é agradável ver alguém algemado, tanto quanto não é prazeroso ver alguém em uma cela.

Todavia, ao menos atualmente, solução outra não há para isso e não se chocam as leis que autorizam a prisão com normas constitucionais. Aqui aproveito para lançar uma idéia à reflexão geral: que se regulamente o emprego de algemas estabelecendo que toda pessoa presa deva ser algemada, sendo tal condição mantida quando conduzida ou transportada, tanto em deslocamentos longos quanto ao ser apresentada para audiências ou no plenário do júri. Falo em prisão, evidentemente, legal, ou seja, prisão em flagrante ou por ordem judicial, hipótese última, ainda mais evidente, aos se tratar de recaptura de pessoas já condenadas definitivamente.

Quando se diz “toda pessoa”, significa independentemente de classe social, posição intelectual, exercício de cargo público, vinculação profissional, artística ou, muito menos, condição racial – ressalvadas algumas hipóteses de saúde extremamente debilitada ou idade muito avançada, a ser definida de modo pormenorizado.

Pela impossibilidade de adivinhar, em absoluto, se uma pessoa pretende ou não fugir e, como os agentes públicos não podem antever se um “preso conformado”, ao se deparar com uma testemunha ou a vítima, em uma audiência, não vai investir contra ela, o melhor é que todo preso seja algemado. É o único método não discriminatório existente, apto a garantir o princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º, da Constituição Federal.

Por que o detentor de um cargo público relevante, se cometesse um crime, não deveria ser algemado? Por que o detentor de tal ou qual título universitário deveria ser tratado de modo distinto do cidadão sem estudo? Por que o político eleito deveria ser tratado de modo diferente de seu eleitor, se ambos cometerem crimes?

E aqui, uma importante observação: não se deve confundir o ato de algemar, o uso das algemas, com a execração pública da imagem. Não estou, em nenhum momento, defendendo que um preso provisório seja exposto propositalmente às filmagens ou à fotografação, com ou sem algemas. Assim como não se confundem o ato de se encarcerar alguém com a divulgação de suas imagens na cela.

Parece-me claro que o constrangimento, a vergonha, não são – ou não deveriam ser – decorrentes do fato da pessoa estar algemada, mas sim atribuíveis ao fato de o indivíduo ter sido preso. Vergonhoso, via de regra, é o ato de praticar um determinado crime, muito mais do que ser preso. A prisão só desnuda publicamente a autoria do ilícito, motivo da reprovação social.

Neste contexto, a algema é um mero símbolo, um signo da prisão. Não é contra o uso dela que se devem voltar os detratores da idéia, instrumento fundamental para a manutenção da segurança dos policiais que a executam e da população que outorga poder ao Estado para conferir-lhe a tranqüilidade.

Certo é que surgirão situações dúbias. Mas parece que, sendo estabelecido por lei federal o emprego das algemas como premissa para toda prisão legal, a punição para o emprego ilícito da “pulseira constritora” estará diretamente vinculada à prisão fora da ordem jurídica reinante, situação já passível hoje de punição.

Em um momento em que a segurança pública é preocupação da maior parte da população brasileira, em um contexto em que todos exigimos maior dignidade e melhores condições de trabalho aos agentes públicos incumbidos da preservação da segurança de todos, aprovar-se uma lei que limita demasiadamente o emprego de algemas, significará indesejável retrocesso.

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