Trem da alegria

Troca-troca de servidores públicos pode ser regulamentado

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16 de agosto de 2007, 0h00

O troca-troca de servidores entre as instituições do Executivo, Legislativo e Judiciário corre o risco de ser regulamentado e se transformar no chamado trem da alegria. Está na pauta do Plenário da Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que permite a efetivação pelo Senado Federal, por exemplo, de um servidor que passou no concurso para o Ministério Público e que foi emprestado para lá.

Num exagero, um servidor que passou no concurso para faxineiro da Justiça Federal e que foi enviado para prestar serviços de técnico no Ministério do Planejamento e está lá há mais de três anos pode ser efetivado com um salário maior e tendo prestado uma prova mais fácil.

Críticos dizem que a proposta privilegia aqueles que têm conhecidos em cargos mais altos em órgãos diferentes. A PEC 2/03 foi apresentada pelo deputado Gonzaga Patriota (PSB-PE). Ele argumenta que a crescente demanda por funcionários nos órgãos criados pela Constituição Federal de 1988 provoca um contínuo deslocamento de servidores de seu órgão de origem para outro e que é comum ficarem “anos a fio” se especializando nos serviços prestados à segunda instituição.

“Após tantos anos exercendo atividade diversa da que ordinariamente exerceria no órgão cedente, é relevante ao ponto de se observar que, em alguns casos, como se dá, por exemplo, na Justiça Eleitoral e na Justiça do Trabalho, onde muitos servidores já atuam há mais de uma década, e, por isso, já não têm quaisquer afinidades com as suas atividades de origem desempenhadas nos Poderes Executivo e Legislativo”, justifica o deputado.

O ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias (PT-MG), à época deputado federal, foi um dos que apresentou um voto contra o projeto. Ele chama atenção para o dispositivo constitucional, “basilar em um estado democrático”, que é o direito igualitário de acesso aos cargos públicos.

“Ao contrário do que ocorria no passado, não há cargos públicos hereditários. Positivando expressamente o direito individual de acesso aos cargos públicos de forma impessoal e igualitária, já que vivemos em um Estado Democrático de Direito e que tem a cidadania como fundamento, o artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, é expresso no sentido de que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de acordo com a natureza e a complexidade do cargo”, argumenta em seu voto.

O ministro ressalta que os direitos e garantias individuais constituem cláusula pétrea e, portanto, não podem ser modificadas por emenda constitucional. Por isso, defendeu que “é de clareza solar” que a proposta não pode ter seu mérito apreciado. Isso, no entanto, não impediu que a matéria chegasse ao Plenário da Câmara.

A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) também soltou nota contestando a idéia. O argumento é o mesmo: a PEC fere garantias pétreas do cidadão.

“A Constituição Federal de 1988 erigiu como um de seus princípios o concurso público, única forma de ingresso de forma efetiva na administração que democratiza o acesso do cidadão aos cargos e empregos públicos e respeita os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, declarou o presidente da entidade, Cláudio José Montesso.

Para ele, a proposta merece amplo repúdio dos juízes, “na medida em que consagra o clientelismo e a troca de favores, mazelas que devem ser extirpadas da vida política brasileira”.

Leia o texto da proposta e abaixo o voto do deputado Patrus Ananias

PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 2,DE 2003.

(Do Sr. Gonzaga Patriota e outros)

Acrescenta artigos 90 e 91 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, possibilitando que servidores públicos requisitados optem pela alteração de sua lotação funcional do órgão cedente para o órgão cessionário.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60, § 3º, da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 1º — O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido dos seguintes artigos 90 e 91:

Art. 90 — Os servidores da União, Estados, Municípios e do Distrito Federal ocupantes de cargos efetivos que atualmente se encontrem em exercício há mais de três anos consecutivos, em órgão diverso do seu órgão de origem, através de requisição, poderão optar, no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de publicação desta emenda, pela efetivação de sua lotação no órgão cessionário.

Art. 91 — O disposto no artigo precedente aplica-se aos servidores cuja investidura haja observado as correspondentes normas constitucionais e ordinárias anteriores a 5 de outubro de 1988, e, se posterior a esta data, tenha derivado de aprovação em concurso público de provas ou de provas e de títulos na forma do inciso II, art. 37 da Constituição Federal.


Art. 2º — Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICATIVA

A criação de órgãos públicos implementada por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988 e enfatizada nos anos posteriores através de Emendas Constitucionais e leis ordinárias esparsas, nem sempre tem sido acompanhada pela pertinente criação de cargos capazes de suprir as necessidades de material humano – servidores públicos – para que exerçam atividades nos mais diversos órgãos situados nas três esferas de Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Ocorre que a crescente demanda por funcionários nestes órgãos tem ocasionado um contínuo deslocamento de servidores de seu órgão de origem para órgão diverso, por meio de requisição, que lá permanecem exercendo atividades por anos a fio.

A incongruência que se verifica na vida funcional do servidor, após tantos anos exercendo atividade diversa da que ordinariamente exerceria no órgão cedente, é relevante ao ponto de se observar que em alguns casos, como se dá, por exemplo, na Justiça Eleitoral e na Justiça do Trabalho, onde muitos servidores já atuam há mais de uma década, e, por isso, já não têm quaisquer afinidades com as suas atividades de origem desempenhadas nos Poderes Executivo e Legislativo.

Daí a necessidade de uma regra constitucional transitória, que sem afastar a prevalência do “princípio do livre acesso aos cargos públicos via concurso”, inserto no art. 37, inciso II da Constituição Federal, ampare os servidores que se encontrem na situação de requisitados, em face da distorção imposta pelo desvio de função a que estão submetidos.

Ressalte-se por último, que esta regra transitória não só resolveria o problema daqueles servidores, como também obstaria uma virtual paralisação dos serviços públicos essenciais dos órgãos onde eles se encontrem exercendo atividades por requisição.

Sala de Sessões, de de 2003.

Deputado Gonzaga Patriota

PSB/PE

Leia o voto de Patrus Ananias

COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE REDAÇÃO PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 2, DE 2003

Acrescenta artigos 90 e 91 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, possibilitando que os servidores públicos requisitados optem pela alteração de sua lotação funcional do órgão cedente para o órgão cessionário.

Autor: Deputado GONZAGA PATRIOTA e outros.

Relator: Deputada JUÍZA DENISE FROSSARD

VOTO EM SEPARADO

Analisando a admissibilidade da presente proposta de emenda à Constituição, observo, inicialmente, que já está pacificado na doutrina e na jurisprudência que os direitos e garantias individuais não se exaurem no artigo quinto da Constituição Federal, mas sim encontram-se espalhados por toda a carta magna.

Nesse sentido manifesta-se Manoel Gonçalves Ferreira filho: “A atual constituição brasileira, como as anteriores, ao enumerar os direitos fundamentais, não pretende ser exaustiva ao estabelecer os 77 incisos do art. 5º.” (Curso de direito constitucional, 18ª edição, São Paulo: Saraiva, 1990, p.254.).

No mesmo sentido manifesta-se Rodrigo César Rebello Pinho: “A relação extensa de direitos individuais previstas no art. 5º da Constituição Federal não é taxativa, exaustiva. Eles existem em outras normas previstas na própria constituição.” (Teoria geral da constituição e direitos fundamentais, São Paulo: Saraiva, 2002, p.73).

Por fim, Alexandre de Moraes afirma que “Os direitos e garantias expressos na constituição federal não excluem outros de caráter constitucional decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, desde que expressamente previstos no texto constitucional, mesmo que difusamente. Neste sentido, decidiu o STF (ADIn 939-7/DF) ao considerar cláusula pétrea, e conseqüentemente imodificável, a garantia constitucional assegurada ao cidadão no art.150, III, b, da Constituição Federal.” (Direito constitucional, nona edição, São Paulo: Saraiva,2001, p.129).

Um importante direito individual, que inclusive é basilar em um estado democrático, é o direito igualitário de acesso aos cargos públicos. O art. 1º da Constituição Federal é expresso ao estabelecer que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, que tem a cidadania como um dos seus fundamentos.

Ao contrário do que ocorria no passado, não há cargos públicos hereditários. Positivando expressamente o direito individual de acesso aos cargos públicos de forma impessoal e igualitária, já que vivemos em um Estado Democrático de Direito e que tem a cidadania como fundamento, o art.37, inciso II, da Constituição Federal é expresso no sentido de que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de acordo com a natureza e a complexidade do cargo.


É como decide o STF: “O postulado constitucional do concurso publico, enquanto cláusula integralizadora dos princípios da isonomia e da impessoalidade, traduz-se na exigência inafastável de prévia aprovação em concurso público de provas, ou de provas e títulos, para efeito de investidura em cargo publico.”(STF, ADIn nº 637-MC/MA, Relator: Min. CELSO DE MELLO, j. em 19/03/1992)

Como se pode observar, a necessidade de concurso público para o provimento de um cargo público efetivo decorre de ser a cidadania – todos são iguais perante a lei – um fundamento da República Federativa do Brasil, que também se traduz no acesso igualitário aos cargos públicos. Caso se admita que alguém pode ter um acesso privilegiado a um cargo público efetivo, isto é, sem passar por um concurso público de acesso a esse cargo, haverá uma estridente violação à cidadania e ao direito individual de acesso igualitário aos cargos públicos.

Em uma sociedade que se pretende republicana, isto é, que pretende dar à coisa pública (res publica) um tratamento de coisa pública, sem confundir o patrimônio do Estado com o patrimônio do governante, é necessário buscar a efetividade dos princípios constitucionais que realizam os objetivos republicanos. Desse modo, o princípio republicano não se coaduna com privilégios pessoais, mas sim procura efetivar a igualdade entre as pessoas. Na República não há cargos hereditários ou decorrentes de quaisquer privilégios.

Feitas essas breves considerações, resta confrontar a redação que se pretende dar ao dispositivo constitucional por meio da presente proposta de emenda com o núcleo imodificável da Constituição Federal, elencado no art.60, § 4º, da Constituição Federal.

Consta expressamente no inciso IV desse dispositivo que os direitos e garantias individuais constituem cláusula pétrea, não podendo ser modificados por emenda à Constituição. Portanto, é de clareza solar que a presente proposta não pode ter seu mérito sequer apreciado.

Mas não é só. Além das limitações materiais explícitas constantes do mencionado rol do art.60, § 4º, da Constituição Federal, devemos analisar também as limitações materiais implícitas ao poder reformador atribuído ao congresso nacional.

É evidente que o cerne, isto é, que os princípios basilares da Constituição Federal, não podem ser modificados, pois se assim fosse teríamos, na verdade, uma outra Constituição!

A Constituição Federal de 1988 tem a cidadania como um princípio basilar e tanto é assim que está prevista no inciso II do art. 1º como princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Caso alterado esse princípio, que norteia toda interpretação da carta magna, teremos, em essência, uma Constituição totalmente diferente da atual.

É evidente que o poder reformador não pode criar uma nova Constituição, mas apenas reformar a atual, nos limites por ela impostos. Por esse motivo, a tentativa de se permitir que alguém ocupe um cargo público sem ter prestado e sido aprovado em um concurso público para esse cargo configura uma violação ao princípio fundamental da cidadania, que não permite privilégios pessoais.

Em outras palavras, em um Estado Democrático de Direito, que tem a cidadania como princípio fundamental, somente pode ser admitido o ingresso em um cargo público por meio de um sistema que assegure a todos os cidadãos que preencherem os requisitos exigíveis uma isonômica possibilidade de acesso. Esse sistema é o concurso público de provas ou de provas e títulos.

Pretender o acesso a um cargo público com fraude a esse sistema, ou seja, pretender o acesso a um cargo público sem um concurso público para esse específico cargo é algo que somente pode juridicamente ocorrer no território brasileiro caso o Brasil tenha uma outra Constituição, totalmente distinta da atual.

Por esses motivos, voto pela inadmissibilidade da PEC nº 2/2003.

Sala da Comissão, em de de 2003.

Deputado PATRUS ANANIAS

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