Tragédia da Gol

Acidente de causa desconhecida impõe ônus ao transportador

Autor

  • Marco Fábio Morsello

    é juiz de Direito em São Paulo. Professor e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor da obra “Responsabilidade civil no transporte aéreo” Ed. Atlas 2006.

25 de outubro de 2006, 7h00

A maior tragédia da aviação brasileira implicará, em nível mundial, na adoção de mecanismos de segurança visando elidir ulteriores abalroamentos aéreos, uma vez que, na seara da responsabilidade civil moderna, o princípio da prevenção ocupa papel de destaque.

Não se pode olvidar, outrossim, a importância fundamental do princípio da ampla reparação do dano, atrelado à objetivação da responsabilidade civil, que deslocou o papel central outrora desempenhado pela culpa.

Por ora, diante do amplo leque de hipóteses ensejadoras da tragédia, serão apreciados os efeitos correlatos no âmbito da responsabilidade civil.

Em sede de abalroamento aéreo, via de regra, há diversas concausas que contribuem para a eclosão do resultado, aplicando-se, em nosso sistema, a teoria da causalidade adequada.

Sucede que, por vezes, diante do intrincado emaranhado de concausas, não se logra aferir a causa determinante do evento, o que provocou no passado, o ônus correlato ao usuário do transporte, com fundamento na teoria da causa desconhecida.

Discordamos desse entendimento, fulcrados na doutrina germânica, pois, nos acidentes aéreos, o dano derivado de causa desconhecida impõe ao transportador os ônus conseqüentes.

Isto posto, ainda que sob terreno meramente hipotético, analisaremos o regime de responsabilidade civil de eventuais causadores do dano, em relação às vítimas:

1) Na hipótese de aferição do fato dos pilotos da aeronave Legacy, pertencente à companhia norte-americana Excel Air Services, a pessoa jurídica responderia pelo ato de seus prepostos, denotando perante as vítimas responsabilidade extracontratual objetiva, com aplicação do sistema de defesa do consumidor, tendo em vista a equiparação a consumidores das vítimas do evento, nos termos do artigo 17 da Lei 8.078/90. Anote-se, por oportuno, que referido sistema preponderaria diante do Código Brasileiro de Aeronáutica, nas hipóteses de fixação prévia de patamar-limite indenizável.

2) Em relação à companhia Gol, uma vez delineado o fato do transportador, haveria aplicação da denominada responsabilidade contratual objetiva, com aplicação do sistema de defesa do consumidor, nos termos dos artigos. 6º, VI, e 22, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, preponderantes in casu, vedando-se, portanto, a fixação prévia de patamar-limite indenizável, consubstanciado no Código Brasileiro de Aeronáutica. Por outro lado, cumpre anotar que a responsabilidade objetiva é inconfundível com a teoria do risco integral, de modo que, caso delineado o fato exclusivo de terceiro estranho ao empreendimento exercido, haveria eximente do dever de indenizar, já que o nexo causal seria rompido como pressuposto essencial da responsabilidade civil, tornando, destarte, inaplicável a Súmula 187, do Supremo Tribunal Federal, que cinge-se às hipóteses do denominado fortuito interno (e. g., subcontratações de terceiros).

3) No tocante aos serviços de controle de tráfego aéreo, se delineada sua participação causal na eclosão do evento, haveria aplicação de regime de responsabilidade extracontratual objetiva, com fundamento na atividade de risco exercida, conjuntamente com os ditames elencados no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, sem que houvesse qualquer discussão no que concerne à existência de prévio patamar-limite indenizável. Apenas cumpre acrescentar que, na hipótese de sua inserção no pólo passivo de eventual demanda, haveria necessário deslocamento da medida de jurisdição para a Justiça Federal.

4) Caso verificada concausa eficiente do fornecedor-fabricante Embraer, por exemplo, com fundamento em defeito do equipamento transponder, restaria delineada perante o usuário do transporte, responsabilidade extracontratual objetiva, sem prévio patamar-limite indenizável, tendo como fundamento a teoria do risco do empreendimento, preponderando, inclusive, diante dos ditames do artigo 280, I, do Código Brasileiro de Aeronáutica. Outrossim, diante da segmentação de sua atividade, a contratação de terceiros (e. g., Honeywell, fabricante do transponder) não elidiria sua responsabilidade direta perante o usuário do transporte, ressalvada eventual ação regressiva posterior.

5) O mesmo raciocínio exposto no item anterior, concernente à responsabilidade do fabricante-construtor de aeronave Boeing 737-8EH, se aplicaria mutatis mutandis à empresa Boeing, caso verificada, e. g., a remota hipótese de defeito estrutural após o mencionado abalroamento.

6) Por derradeiro, em sede conclusiva, o alcance da obrigação de proteção ao usuário do transporte, conjuntamente com o princípio de justa compensação às vítimas, permite inferir inclusão da figura do dano moral, com fulcro em força normativa advinda da Constituição Federal, nos termos do artigo 5º, V e X, razão pela qual restrições em contrário não se afigurariam vinculantes.

Autores

  • é juiz de Direito em São Paulo. Professor e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor da obra “Responsabilidade civil no transporte aéreo”, Ed. Atlas, 2006.

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