Rigor necessário

Lei brasileira falhou ao tentar coibir violência contra mulher

Autor

  • Damásio de Jesus

    é especialista em Direito Penal advogado e professor do Damásio de Jesus autor de mais de 20 obras ex-procurador de Justiça e tem representado o Brasil junto à Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas/ONU.

17 de maio de 2006, 14h10

As nações unidas têm se preocupado com a violência contra a mulher, tema da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Declaração de Beijing, 1995), da Resolução 52/86 da Assembléia Geral (1997) e do 10º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Tratamento dos Delinqüentes (Declaração de Viena, 2000).

No 15º Período de Sessões da Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, realizado em Viena de 24 a 28 de abril, e promovido pela Unodc — Organização das Nações Unidas contra Crime e Drogas, discutiu-se, no painel “Respostas à Violência contra Mulheres: Normas do Sistema da Justiça Criminal”, uma série de questões, todas referentes à extensão da proteção à mulher e às crianças além dos limites domésticos, alcançando suas condições na prisão e no trabalho e chegando ao tráfico internacional. Foi lembrado que a Unodc, em cooperação com o Centro de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo, está elaborando um handbook contendo convenções, informações, recomendações, projetos e documentos sobre o tema.

No conclave, o Brasil apresentou um projeto de resolução recomendando aos Estados–membros a revisão da sua legislação penal e processual penal, no sentido de aperfeiçoar e aplicar leis que contenham reais respostas à violência contra a mulher. E o fez, acreditamos, em face da sua própria legislação.

Ocorre que o Brasil, atendendo à recomendação da Resolução 52/86 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 12 de dezembro de 1997, sobre Prevenção ao Crime e Medidas da Justiça Criminal para Eliminar a Violência contra as Mulheres, tratou de elaborar uma lei penal. Foi assim que a Lei 10.886, de 17 de junho de 2004, acrescentou um parágrafo 9º ao artigo 129 do Código Penal, que descreve o delito de lesão corporal, pretendendo coibir a violência doméstica contra a mulher:

“Artigo 129 — Violência Doméstica;

Parágrafo 9º — Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano”.

Não obstante tenha o legislador, no referido parágrafo 9º, aumentado a pena mínima cominada ao autor da nova conduta típica para seis meses a um ano de detenção, enquanto que na lesão corporal simples, prevista no artigo 129, caput, do CP, comine sanção menor, também de detenção, de três meses a um ano, na verdade não houve alteração legislativa substancial, uma vez que o fato, por exemplo, de o marido agredir a esposa, ferindo-a, continua a ser tratado da mesma maneira. Em face disso, ficou integralmente frustrado o objetivo da lei que, em obediência à Constituição Federal, desejava tornar mais séria a prática de violência contra a mulher.

Assim, como acontece com a lesão corporal leve (artigo 129, caput), a violência doméstica prevista no parágrafo 9º é crime de menor potencial ofensivo. Na fase policial, prescinde-se do flagrante delito se o autor do fato comprometer-se a comparecer ao Juizado Especial Criminal. De modo que, no caso de violência doméstica, cuidando-se de lesões corporais simples, leves, excluídas as graves, gravíssimas e seguidas de morte, a competência, como nas hipóteses comuns do artigo 129, caput, do CP, é também dos Juizados Especiais Criminais (artigo 61 da Lei 9.099/95, alterado pela Lei 10.259/01). Não houve, pois, mudança de relevo.

Com a agravação da pena mínima, de três para seis meses, não ficou afastada a aplicação da transação penal (artigo 76 da Lei 9.099/95); nem do sursis processual (artigo 89 da mesma lei), sendo cabíveis as penas restritivas de direitos (artigo 44 do CP). Quanto à ação penal, tratando-se de lesão corporal leve (parágrafo 9º), o processo público depende de representação da ofendida (artigo 88 da Lei dos Juizados Especiais Criminais). Somente na hipótese de lesão corporal grave, gravíssima ou seguida de morte (parágrafos 1º, 2º e 3º) praticada em qualquer das circunstâncias definidoras da violência doméstica (parágrafo 9º), a ação penal é pública incondicionada.

Daí decorre que a modificação legislativa foi praticamente inócua, tornando-se urgente a atualização da Lei 10.886/04, o que consta de vários projetos que, infelizmente, estão parados no Congresso Nacional. Enquanto isso, nossas mulheres continuam apanhando impunemente de seus maridos. Oxalá a recomendação do projeto de resolução, proposta em Viena pelo Brasil e aprovada por unanimidade pelos Estados-membros das Nações Unidas, tenha melhor sorte em outros países.

Autores

  • é especialista em Direito Penal, advogado e professor do Damásio de Jesus, autor de mais de 20 obras, ex-procurador de Justiça e tem representado o Brasil junto à Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas/ONU.

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