Limites do poder

Entrevista: Ovídio Rocha Barros Sandoval

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1 de maio de 2006, 7h00

Ovídio - por SpaccaSpacca" data-GUID="ovidio.png">Nem mesmo deputados e senadores têm consciência do papel que deve ser desempenhado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito. A opinião é de um estudioso no assunto, o advogado e juiz aposentado Ovídio Rocha Barros Sandoval.

Segundo Sandoval, o artigo 58 da Constituição é claro ao estabelecer que uma CPI deve se ater à investigação do fato determinado que motivou sua criação. Contudo, o que se assiste cotidianamente na Câmara e no Senado não é isso.

“A CPI dos Bingos, eu costumo dizer que é a CPI dos fatos indeterminados. Ela foi criada para apurar problemas atinentes a bingos, práticas ilícitas que o jogo pudesse trazer à vida nacional. E o que isso tem a ver com o assassinato dos prefeitos de Santo André e de Campinas?”, questiona.

Nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, Sandoval discorre sobre limites dos poderes das CPIs e critica o uso deste “importante instrumento democrático” como palanque político. “Eles ficam muito mais preocupados em fazer campanha pessoal e se esquecem que ninguém é obrigado a ouvir desaforo.”

O especialista explica, por exemplo, que CPIs não têm poder para prender quem quer que seja: “isso é uma verdadeira aberração. O ato de prisão é privativo do Poder Judiciário, a CPI só investiga.”

Formado em Direito pelo Mackenzie, em 1962, Ovídio Sandoval foi juiz por 20 anos em cidades do interior de São Paulo e na capital. Aposentado na magistratura desde junho de 1988, o advogado tem hoje 66 anos e milita na área cível e de Direito Público. É autor do livro CPI ao Pé da Letra, publicado pela editora Millennium, em que reuniu seus conhecimentos sobre o assunto.

Participaram da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual o papel de uma CPI?

Ovídio Sandoval — Nem mesmo os deputados e os senadores — ao menos a maioria deles — têm consciência do papel que deve ser desempenhado pelas CPIs. As comissões, de acordo com o que estabelece o artigo 58 da Constituição, têm a função de investigar um fato determinado. E, em seu relatório final, podem apresentar alguma proposta ao Congresso Nacional para melhorar a legislação brasileira a partir do que foi apurado. Mas as CPIs têm de se ater ao fato determinado, trabalhar naquilo que foi descrito no ato de sua criação.

ConJur — Partindo desse princípio, as atuais CPIs foram totalmente desviadas de seu papel?

Ovídio Sandoval — Sim. Essa CPI dos Bingos, por exemplo, eu costumo dizer que é a CPI dos fatos indeterminados. Ela foi criada para apurar problemas atinentes a bingos, práticas ilícitas que o jogo pudesse trazer à vida nacional. E o que isso tem a ver com o assassinato dos prefeitos de Santo André e de Campinas? A quebra do sigilo do Paulo Okamotto, por exemplo, não tem o objetivo de apurar qualquer coisa referente a bingo. É por isso que eu digo que deputados e senadores não conhecem as regras de CPIs, porque eles saem da investigação do fato determinado. Quando o ministro Cezar Peluso [do Supremo Tribunal Federal] deu uma liminar para suspender o depoimento do caseiro Francenildo Costa na CPI, o criticaram dizendo que o Poder Judiciário estava interferindo nos trabalhos do Poder Legislativo. Mas não foi isso que ocorreu. O ministro apenas entendeu que o depoimento saía do objeto de investigação, já que o Francenildo não tinha nada a dizer sobre bingos. O ministro Peluso só fez com que fosse cumprida a Constituição, que determina que as CPIs devem limitar o objeto de sua investigação.

ConJur — Alguma CPI no Brasil já apresentou propostas para o Congresso Nacional?

Ovídio Sandoval — Já. As CPIs que não tiveram tanto apelo da mídia chegaram a resultados excelentes.

ConJur — O apelo da mídia prejudica o trabalho das CPIs?

Ovídio Sandoval — Não é que prejudica o trabalho. É que o apelo da mídia faz com que aquele deputado e aquele senador queiram aparecer. Eles ficam muito mais preocupados em fazer campanha pessoal e se esquecem que ninguém é obrigado a ouvir desaforo. Por exemplo, o depoente tem o direito constitucional de não se incriminar. Mas se a pessoa vai depor na CPI e não responde o que parlamentar pergunta, porque geralmente a questão não tem nada a ver com o fato determinado, o que passa na cabeça do cidadão comum é que os parlamentares são verdadeiramente os defensores da pátria e que aquele cidadão que esta depondo é um mal-feitor. A população faz um pré-julgamento e o cidadão convidado para depor já está com a honra lameada de todo jeito. Por outro lado, o deputado ou senador que o submeteram a toda a humilhação ficam livres de qualquer julgamento.

ConJur — Existe alguma maneira de evitar o abuso de poder nas CPIs?


Ovídio Sandoval — A França é um exemplo muito sugestivo. Lá, os abusos em CPIs foram de tal ordem que, em 1953, o próprio parlamento francês votou uma lei determinando que todos os trabalhos da CPI fossem feitos sob sigilo e que só fosse noticiado o relatório final depois de aprovado pela comissão.

ConJur — O senhor é a favor dessa medida aqui no Brasil?

Ovídio Sandoval — Não sou a favor, porque acredito que não haveria necessidade de chegar ao extremo. O que existe é a necessidade de disciplinar os trabalhos das CPIs no Brasil. Porque a CPI é um grande instrumento democrático. Agora, se essa disciplina não vier, nós podemos chegar a essa contingência de achar que seria melhor que todos os trabalhos das comissões parlamentares fossem acobertados por sigilo e apenas o relatório final viesse à tona.

ConJur — A medida tomada pela França, de conduzir o procedimento da CPI sob sigilo, deu resultado?

Ovídio Sandoval — Sim, os resultados foram extraordinários. Primeiro, diminuiu o número de CPIs. Depois, elas deixaram de ser usadas como palanques políticos. O parlamento francês está lá para trabalhar com tranqüilidade, para conduzir a investigação sem que haja promoção pessoal dos parlamentares.

ConJur — Como a sociedade francesa recebeu a regra do sigilo das CPIs?

Ovídio Sandoval — Em um primeiro momento houve uma reação contrária à regra, mas não foi nada muito forte, porque o povo francês entendeu que estavam ocorrendo muitos abusos nas CPIs e que a medida tomada evitaria isso e traria mais resultados.

ConJur — No Brasil, como o senhor vê a atuação do Supremo Tribunal Federal com relação às CPIs?

Ovídio Sandoval — Os ministros do STF são extraordinários e têm atuado como grandes guardiões da Constituição. O Supremo tem sido mais atuante porque tem sido chamado com mais freqüência a se manifestar. Como essas CPIs foram montadas para investigar uma crise política terrível, seu trabalho passou a ser acompanhado pela mídia e pela população, e os abusos vieram…

ConJur — O senhor pode dar exemplos do que chama de abusos?

Ovídio Sandoval — Em primeiro lugar, CPI não pode quebrar sigilo bancário, fiscal e telefônico de ninguém a não ser que haja um fato muito grave contra determinada pessoa. Em segundo lugar, esse fato grave deve ter relação direta com o fato determinado que originou a CPI para que a decisão da quebra dos sigilos seja fundamentada. O que tem acontecido é que muitas vezes as CPIs pedem a quebra de sigilo sem que exista qualquer fundamentação. O cidadão que tem uma violência desse porte praticada contra ele, tem todo o direito de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Da mesma maneira que uma pessoa que está depondo nas CPIs tem o absoluto direito de não responder a perguntas que não tenham nada a ver com o fato determinado. E a CPI não pode fazer nada, porque ela não tem poder de prender quem quer que seja. O ato de prisão é privativo do Poder Judiciário, a CPI só investiga.

ConJur — Mas já houve depoentes que saíram presos das CPIs…

Ovídio Sandoval — A CPI não tem o poder para prender ninguém, mas pratica esse abuso, como nos casos do ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes e do ex-prefeito [de São Paulo] Celso Pitta, na CPI do Banestado em 2004. Mas isso é uma verdadeira aberração.

ConJur — Então, quais são os poderes de uma CPI?

Ovídio Sandoval — A CPI só tem o poder de investigar. Ela pode colher provas, intimar pessoas para depor. Se essa pessoa resistir, a CPI pode pedir uma ordem judicial que obrigue a pessoa a comparecer, mas não pode fazer papel de Poder Judiciário.

ConJur — O senhor já disse que algumas CPIs trouxeram bons resultados finais. Poderia citar alguma?

Ovídio Sandoval — Uma delas foi a que levou ao impeachment do Collor. O problema é que algumas acabam não apurando como deveriam exatamente por essa dispersão do objeto. Então, a CPI começa a investigar muitos fatos ao mesmo tempo, perde o rumo e não oferece resultado algum.

ConJur — O impeachment do Collor pode ser considerado um resultado de CPI?

Ovídio Sandoval — Pode, porque as irregularidades começaram a ser apuradas por CPI. Esse é um exemplo de CPI que acabou dando resultado, mesmo perdendo o foco. Em um determinado momento, o senador Eduardo Suplicy apareceu no Senado pedindo para ouvir o motorista do presidente da República e a história foi se desenrolando. Mas muitas CPIs também chegaram a resultados práticos respeitando o seu objeto.

ConJur — As CPIs podem pedir a cassação de parlamentares?

Ovídio Sandoval — É uma proposta que a CPI pode encaminhar para a Comissão de Ética da Câmara ou do Senado. Aliás, é bom esclarecer que o problema da cassação de um deputado é de exclusiva competência do Poder Legislativo. Ninguém pode entrar com recurso no Supremo Tribunal Federal para dizer que as provas que o Poder Legislativo colheu não poderiam levá-lo a cassação. O Supremo não pode rever essa decisão, que é exclusiva do Legislativo. O Supremo só pode rever se na condução do processo que levou aquele deputado à cassação houve alguma ilegalidade.


ConJur — Isso porque as CPIs também devem seguir o processo legal…

Ovídio Sandoval — O devido processo legal não é apenas para o processo judicial. É uma cláusula pétrea da Constituição que se aplica ao processo judiciário, administrativo e legislativo. Ninguém pode ser punido se não houver respeito ao devido processo legal.

ConJur — Como a comissão deve seguir o processo legal, qualquer depoente tem o direito de levar seu advogado à CPI para orientá-lo. Então, qual o motivo de tamanha resistência ao trabalho dos advogados nas CPIs?

Ovídio Sandoval — Existe um acórdão e dois despachos monocráticos do ministro Celso de Mello [do Supremo Tribunal Federal] nos quais ele mostra com uma fundamentação magnífica qual o papel do advogado em uma CPI. O advogado, pelo próprio estatuto da Ordem, pode acompanhar seu cliente em qualquer esfera de poder, seja em repartição pública, delegacia de polícia, vara judicial, Tribunal de Justiça, e também nas CPIs. O advogado tem todo o direito de orientar seu cliente nos depoimentos às comissões. Se um deputado ou um senador está praticando na sua pergunta uma violência moral, o advogado deve dizer para seu cliente não responder.

ConJur — Mas, na prática, isso não funciona bem assim. Quais seriam as medidas que poderiam ser tomadas para regulamentar melhor as CPIs?

Ovídio Sandoval — Eu estou estudando isso, tentando formular quais seriam os melhores caminhos para regulamentar as CPIs. Mas ainda não sei se isso seria feito através de uma lei que complementasse a lei já existente sobre CPIs ou se nós teríamos que fazer um aprimoramento na lei que já existe e nos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado.

ConJur — Os senadores e deputados, mesmo com imunidade parlamentar, podem ser responsabilizados civilmente por eventuais ofensas sofridas pelo depoente?

Ovídio Sandoval — Entendo que sim. Porque existe um dano gratuito contra a pessoa que está depondo e a honra dela está sendo enxovalhada. O deputado ou senador não pode jamais usar da imunidade parlamentar para se livrar de um processo civil, porque a imunidade só o protege de uma possível reprimenda criminal. Se a pessoa entender que não deve processar aquele parlamentar diretamente pode entrar com uma ação contra a mesa da Câmara dos Deputados ou a mesa do Senado.

ConJur — Essa situação já aconteceu alguma vez?

Ovídio Sandoval — Eu acho que não.

ConJur — O senhor acredita que as atuais CPIs trarão algum resultado prático para a população?

Ovídio Sandoval — Eu não conheço o relatório da CPI dos Correios, mas até agora não se falou nada sobre trazer algum aprimoramento do ordenamento jurídico.

ConJur — Mudando um pouco de assunto, o senhor é um crítico do Conselho Nacional de Justiça. Qual sua avaliação sobre as resoluções editadas até agora pelo Conselho?

Ovídio Sandoval — O CNJ está extrapolando totalmente as suas funções. A função de regulamentar lei é privativa do presidente da República, de ninguém mais. Duas recentes resoluções decretaram que os juízes não poderão receber mais o adicional por tempo de serviço [Resoluções 13 e 14, que definiram a aplicação do teto salarial do Judiciário], mas essa matéria só pode ser regulamentada por lei. O Conselho revogou dispositivos de uma lei complementar por meio de resoluções. O problema é que se criou a falsa idéia de que juiz ganha muito. Sei que existem abusos em alguns estados, mas nós temos que seguir o ordenamento jurídico. O Brasil é uma República Federativa e um Estado Democrático de Direito. E foi dito pelo constituinte originário que o Brasil através dos seus poderes, das suas instituições, dos seus órgãos e autoridades, deve respeito ao império da lei e não ao arbítrio. A aposentadoria de um servidor, por exemplo, é regida pela lei da época em que ele completou os requisitos para se aposentar. É um direito adquirido que nem mesmo uma emenda constitucional pode tirar.

ConJur — Mas se o CNJ não pode regulamentar essas questões, qual é sua função?

Ovídio Sandoval — O CNJ tem a função de cumprir o que a Constituição estabelece: zelar pela autonomia do Poder Judiciário e verificar o respeito ao estatuto da magistratura. O que aconteceu é que o CNJ passou a ser o super-poder acima de todos os poderes, até pouco tempo sob a batuta do então ministro Nelson Jobim. Aliás, eu gosto muito de uma observação que é muito antiga: o juiz não pode ser político, mas o político também não pode ser juiz. Mas eu acredito que a ministra Ellen Gracie, que já assumiu a presidência do Supremo e do CNJ, tem todas as qualidades para fazer com que o Conselho tome o rumo que a Constituição lhe deu.

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