Terra de cegos

Mundo assiste passivo ao desrespeito da propriedade intelectual

Autor

  • Napoleão Casado Filho

    é consultor do projeto das Nações Unidas para o Desenvolvimento pós-doutor em Direito Comparado pela Société de Législation Comparée de Paris mestre e doutor em Direito Internacional pela PUC-SP fellow e membro da Faculty List do Chartered Institute of Arbitrators de Londres.

12 de junho de 2006, 7h00

Um dos maiores sucessos do grande escritor português José Saramago é o seu Ensaio sobre a Cegueira, passado em um lugar imaginário em que um surto inexplicável de cegueira ataca toda a população mundial, levando as pessoas a uma luta descontrolada pela sobrevivência.

O mundo ocidental parece padecer de uma cegueira semelhante com relação à China. Há anos, tem-se ciência de que o governo chinês não é dado a respeitar boa parte das regras do Direito Internacional. Rompimento unilateral de contratos em momentos de difícil negociação (crise da soja brasileira) e desrespeito aos direitos humanos são atos corriqueiros na política chinesa. O Ocidente, cego pela avidez em utilizar a mão-de-obra semi-escrava local e vender para o gigante mercado consumidor interno, nada tem feito para impedir tais práticas.

A ausência de reação mais vigorosa a esse tipo de desrespeito às leis internacionais é até esperada. Contudo, é de se estranhar que o mundo assista passivo ao crescimento de algo que pode significar a ruína do próprio sistema sócio-econômico em que vivemos: o desrespeito à propriedade intelectual.

Não constitui qualquer novidade enfatizar que produtos chineses falsos inundam nosso mercado e são vendidos livremente em todo país, perante os olhos complacentes de quem deveria proibir e punir a atividade ilegal. O que impressiona é um fato, divulgado na semana passada pelo Herald Tribune, que demonstra a ausência de limites da pirataria chinesa: a NEC, gigante japonesa do setor de eletrônicos, descobriu que a empresa inteira havia sido pirateada.

Em vez de simples cópias de baixa qualidade dos seus produtos, os japoneses descobriram toda uma empresa voltada para a pirataria, com cerca de 50 fábricas, executivos, treinamentos, P&D e cartões de visita. Tudo falsamente NEC. E a ousadia dos falsários chegava ao absurdo de licenciar e cobrar royalties dos produtos piratas.

O fato é grave. Os grandes avanços ocorridos nos últimos séculos são devidos, em grande parte, à proteção do autor. A idéia de direitos do autor tem por objetivo estimular a criatividade e a invenção que trazem por conseqüência o desenvolvimento econômico. Nada mais é que um privilégio concedido a indivíduos em benefício da sociedade. Sem tal proteção, a humanidade evoluiria a passos bem mais lentos.

O “sistema chinês”, supostamente baseado na propriedade coletiva, fecha os olhos aos criminosos da propriedade intelectual que atuam em seu território. E vai mais além. Provavelmente se associa aos piratas digitais, tornando-os verdadeiros corsários do mundo moderno, com autorização oficial. É que não se concebe que um Estado com economia tão centralizada não tenha conhecimento da existência de um conglomerado deste porte atuando em seu território.

A forma de agir chinesa com relação a um dos pilares do capitalismo demonstra que o gigante oriental ou está a se fingir de cego ou está com os olhos bem abertos. E não é necessário lembrar que, em terra de cegos, sequer são necessários dois olhos para reinar.

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