Quem mandou estudar?

A opção entre uma Justiça mais barata e uma Justiça pior

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1 de dezembro de 2006, 13h58

Magistrado há quase 25 anos, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, segui a carreira de meu pai e de meu avô materno. Estudei por um ano após concluir a faculdade, com afinco para enfrentar o difícil concurso. A aprovação foi uma vitória inesquecível e emocionante.

Do ponto de vista profissional a magistratura é uma atividade nobre e não há que omitir o orgulho de exercê-la. Contudo, do ponto de vista financeiro, não só fui avisado e orientado, como pude observar no cotidiano de minha família, o quanto se exige de dedicação, empenho e dificuldades para fazer frente às responsabilidades do cargo.

Assim como meus ancestrais que também não puderam construir patrimônio, vivo exclusivamente da parte líquida do salário (35% são revertidos ao imposto de renda e previdência). E porque também optei por viver nesta capital, uma das cidades mais caras do mundo, não escapei a esse padrão médio. No que se refere ao aspecto econômico, pensei muito nesse contexto e na segurança que isto representava, aliás, essencial, o que se completava com a aposentadoria ao final de trinta anos de trabalho, para a qual se contribuiu desde o primeiro dia de exercício do cargo.

No período mais grave da instabilidade econômica do país, a situação era mais delicada, posto que a reposição de perdas não era automática.

Com o passar dos anos, medidas drásticas no serviço público extinguiram benefícios compensatórios que existiam à época do ingresso na carreira.

Agora, constato que serei obrigado a me adaptar à redução do meu salário porque aí, no excesso de aproximadamente R$ 1 mil, é que devem estar todas as causas do rombo da previdência, do déficit público, ou, como já disse nosso presidente, a caixa preta do Judiciário. Aliás, e me aproveitando um pouco de muitas das explicações de Sua Exa. a respeito dos péssimos exemplos surgidos na Capital Federal, nesse caso, foi muito fácil provar. Bastou somar para esse ajuste.

Em outros tempos, uma vez superada alguma indignação, sempre associada à certeza de que faltava preparo ou seriedade para o que se afirmava, acabaria por esquecer, o que de certa forma me habituei, até porque não deixei de ler outras páginas do jornal ou de assistir os demais dos noticiários. Enfim, de seguir o meu caminho, mesmo porque estou absolutamente certo de que não ganho um “supersalário”. Honestamente, acho que até merecia um pouco mais.

Desde que ingressei na carreira já mudaram por mais de uma vez as regras da aposentadoria e pensam em fazê-lo novamente. A contribuição previdenciária aumentou, tal como as alíquotas do imposto de renda. E agora, sou obrigado a conviver com a insegurança de corte do meu salário, a esse ou aquele momento, inclusive com efeito retroativo. Ou seja, trabalhei, mereci, mas devo ganhar menos e ainda ficar devendo.

Também já se especula que a respeito de um veto a qualquer tipo de reposição salarial, ainda que possa representar a mera adequação desse teto em decorrência da inflação.

Portanto, diante dessa hipocrisia política, o que me resta é, mais uma vez, superar o desgaste e me esforçar para não afetar o cotidiano, e, evidentemente, o bom desempenho da minha função. A propósito, tenho visto meus colegas tensos, preocupados, desanimados. Não é para menos. Como já disse, vivem apenas do salário e têm seus gastos já adequados e comprometidos.

Por outro lado, da maneira como as coisas acontecem e do modo como são passadas à opinião pública, ainda é preciso ficar dando explicações, apesar de estar seguro de que não cometi nenhum crime ao decidir por uma profissão que conquistei, exclusivamente, com um esforço intelectual, o que é permitido a qualquer um.

O custo de vida em São Paulo, as necessidades e despesas geradas pela ineficiência do estado (saúde, segurança, educação), ao lado da compatibilidade que se deve preservar entre um determinado padrão e o cargo que se ocupa, e isso sem falar no preço do aprimoramento pessoal, em todos os seus aspectos são fatores cruciantes. A dignidade do cargo a exigir uma boa apresentação, a necessidade de estar atualizado para compreender os conflitos que se arbitra — tudo tem preço. E não é pouco. Diferente de quem desfruta até da moradia grátis, dos imóveis funcionais, em Brasília.

Dias atrás fui ao lançamento de um livro, tão importante quanto atual — uma necessidade para o dia a dia profissional. Seu preço: a metade do salário mínimo. Evidentemente uma imensa maioria da população não poderia comprá-lo. Todavia, penso que o que efetivamente importa é que, esse poucos que o fizeram, devem utilizá-lo em benefício da coletividade.

Existem diferenças. Aliás, em tudo e nisso não se entrevê erro algum. Ao contrário, cinco minutos de leitura são suficientes para saber que o mundo sempre foi desigual e o que se recomenda é diminuir as diferenças, aumentando as oportunidades. Ou seja, nivelar para cima e não para baixo, o que está ocorrendo.

Aliás, na minha atividade, isso pode comprometer a qualidade, conseqüentemente, a eficiência, sem falar no risco de se afetar a integridade. O país pode optar por uma Justiça mais barata, é claro. Mas já não atrairá as melhores cabeças do país para seus quadros. E a opção terminará sendo por uma Justiça pior.

Ora, já temos muitos problemas, a maioria de ordem estrutural e o que surpreende é que isso não é pensado com objetividade, menos ainda com vontade para resolver o que é principal. Preocupa-se, e muito, com o acessório. Mas o que se percebe é que faz mais sucesso na imprensa discutir a diferença entre receber R$ 24 mil e R$ 25 mil do que a qualidade da Justiça. Para um país com tantas injustiças esta é mais uma delas.

Recebemos e convivemos com críticas no tocante à morosidade. Muitas delas reconhecidamente justas. Porém, não é com medidas que afetam aspectos individuais dos magistrados que se vai obter algum progresso. Ao contrário, isso exige uma tendência, o que não pode ser obtido a partir de um fato negativo porque é desagregador.

Vigiem, fiscalizem e, localizando os abusos, vamos acabar com as verdadeiras distorções. Especialmente aquelas efetiva e significativamente importantes. Todavia, com idêntico e necessário respeito, reflitam, ousem.

Ou, pelo menos, reduzam essa ansiedade do aparentemente correto e nos deixem trabalhar em paz.

Isso não é nada de mais. Basta ver o que acontece com outras estruturas da nossa sociedade. Os membros do legislativo que gastam verdadeiras fortunas em suas campanhas, uma vez eleitos, ganham salários, jetons e verbas de gabinete (e que gabinete) que, na soma, são em muito superior à remuneração individual de um magistrado, muito embora na comparação, essa remuneração indireta não seja computada. Muito menos o que vem das doações e suas sobras.

A cúpula do executivo também tem seu teto. Contudo, gozam de toda uma sorte de benesses de ordem pecuniária, desde os denominados cartões corporativos até a colocação, de muitos deles, também dos escalões inferiores, em diretorias ou conselhos de estatais como forma de se obter uma outra renda, escapando do limite salarial, o que, para nós, ressalvada a possibilidade de lecionar em uma matéria, é vedado pela constituição.

No setor privado, por óbvio desprezado o que vem do investimento individual, o que se vê são os “mega-salários” de muitos que, sem o imperativo do constante aprimoramento dos seus conhecimentos, até mesmo com alguma relatividade desses, experimentam o que vem de alguma oportunidade que foi conferida por um talento ou a sorte da extrema beleza física. Isso é legítimo e bem se observa na televisão, na imprensa, no futebol etc. São valores astronômicos e, em grande maioria, contratados com pessoas jurídicas para minimizar os efeitos do Fisco. Alguns deles inclusive com pagamento exterior.

Enfim, existe essa realidade mas, dentro dela, o que se divulga e difunde é a idéia de que, um magistrado com mais de vinte de experiência, ganhar R$ 25 mil (valores brutos) por mês, é um verdadeiro absurdo.

Isso é mesquinho, é pequeno e, ouso afirmar, muito sério. Deveria provocar muito mais inquietação do que conivência.

No meu caso, detestaria ser julgado por magistrado despreparado, mal posicionado socialmente, de conhecimentos gerais e conceitos limitados, e, no momento, desanimado porque lhe cortaram o salário, e, sua moral, apenas isso, o determina a honrar seus compromissos. Afinal, a dúvida é o tipo de juízes que a sociedade deseja, e, conseqüentemente, do nível do Judiciário que, enquanto um serviço público, está e estará à sua disposição.

Daí porque, se rever esse posicionamento não for possível, peço, humilde e indistintamente, que me ensinem a jogar vídeo-game para poder alugar um canal de TV, ou a fundar uma ONG, dessas financiadas pela Petrobrás. Não descarto a apresentação de um mensaleiro, um sanguessuga, ou alguém do Sebrae para pagar minhas contas e dívidas.

Pode ser um daqueles que circulava com milhões para comprar um certo dossiê, ou até mesmo o caseiro, que, assim como eu, não soube aproveitar o momento e algumas oportunidades.

Em último caso, me reservem uma senha do bolsa família pois, com um barraco na praia, um chinelo e uma camiseta vermelha, seguramente e sem remorso, poderei me dedicar ao ócio.

Aliás, se a minha opção profissional e que também foi a de um estudante universitário tivesse sido aquela de alguns contemporâneos que escolheram contestar o sistema político da época, alguns deles associando seu proceder a uma dose de ilegalidade, ainda teria o benefício de uma aposentadoria, o que lhes é concedido em caráter administrativo, não sofre cortes ou mesmo fiscalização.

Evidentemente, sempre preponderando o argumento e não algum juízo de valor ou de natureza ideológica, ainda incomoda não terem contado antes que melhor seria ter-me filiado a algum sindicato para poder me tornar um segurança ou churrasqueiro do palácio, pois, a essa altura, protegido, com certeza estaria bem mais tranqüilo.

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