Rigor da lei

Juiz manda prender patrão que não registrou empregado

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26 de outubro de 2005, 10h31

A História do Brasil não traz registro de que algum advogado tenha assumido o comando do Exército Nacional mas, por outro lado, constam dúzias de normas legais que foram produzidas por marechais. Um bom exemplo do que pode resultar desta combinação entre baioneta e caneta é encontrado na peculiar redação do artigo 49 da CLT. Promulgado mediante decreto-lei editado nas trevas do ano de 1967, aquele texto reporta-se a cinco condutas relativas à malversação da carteira de trabalho e previdência social. Todas já eram caracterizadas como crimes, uma vez que correspondentes a tipos delituosos anteriormente constantes da lei penal (falsidade ideológica, falsidade material e uso de documento falso).

Dentre estas condutas puníveis, a mais interessante (na época) para os estudiosos do Direito do Trabalho, correspondia à seguinte descrição: “anotar dolosamente em Carteira de Trabalho e Previdência Social ou registro de empregado, ou confessar ou declarar em juízo ou fora dele, data de admissão em emprego diversa da verdadeira”. Todos os dias, centenas de trabalhadores instauram processos na Justiça do Trabalho reclamando tempo de serviço subtraído, mas não se conhece nenhum caso de que tal crime tenha resultado em pena ou sequer, em processo contra aqueles que o praticam. A pesquisa de jurisprudência nos repositórios especializados mostra trabalhadores sendo condenados por usar ctps falsificada para obter alguma vantagem mas, não registra nenhum empregador punido penalmente por anotar falsa data de admissão.

Com o advento da Lei 9.983/2000, esta disposição constante do cataléptico artigo 49 da CLT foi transportada do artigo 299 para o 297, ambos do Código Penal, resultando na dobra da pena máxima cominada anteriormente. Como a novidade consistiu somente em mudar o tipo penal de um lugar para outro, nem sequer as empresas que anual e interminavelmente publicam aquelas volumosas edições da CLT, deram-se ao luxo de fazer o registro da modificação.

No entanto, a lei foi bem mais adiante e criou um novo tipo delituoso, no entusiasmo de intimidar o patronato e engordar os cofres da Previdência Social. A pura e simples omissão da anotação do contrato de trabalho na CTPS foi equiparada ao delito de falsificação de documento público tipificada no artigo 297, parágrafo 4º, do Código Penal, sujeito à pena de dois a seis anos de reclusão. A bravata legislativa, todavia, foi recebida com muito sarcasmo e intenso ceticismo.

Afinal de contas, segundo dados oficiais da Fundação Seade, em agosto de 2005, existiam um milhão e cento e dez mil assalariados trabalhando sem carteira assinada, somente na região metropolitana da Grande São Paulo. Computando a média de um patrão delinqüente para cada empregado nestas condições, ficaríamos com o complicado problema de encontrar um local para recolher todos estes agentes delitivos que estão atuando em flagrante delito. Como não há acomodação para prender mais de um milhão de infratores, as autoridades preferem entender que esta parte do Código Penal é “injusta” e não se movem para aplicá-la.

Como se cuida de um crime, na linguagem da lei, qualquer do povo, ao encontrar alguém trabalhando sem registro, pode dar imediata voz de prisão ao empregador surpreendido em flagrante. A autoridade pública por seu lado, deve agir deste modo, porque diante de um crime em flagrante, está obrigada a intervir. A recusa generalizada à implementação desta norma legal é algo próprio deste país atolado em relações injustas entre o andar de cima e o andar de baixo.

Este cenário bucólico para os infratores foi alterado recentemente por um episódio bastante elucidativo ocorrido na Justiça do Trabalho em São Paulo. Num belo dia, certa empresa compareceu à audiência representada por preposto que declarou que era empregado mas não era registrado. O magistrado entendeu que vir alardear a prática do delito na mesa de audiência (processo 01048200401402009) já era uma desfaçatez intolerável. Diante de tamanho atrevimento, o juiz mandou prender em flagrante o sócio da empresa, proferindo o seguinte despacho: “em vista da situação de permanente delito, pois o preposto é empregado e continua sem registro em carteira, o crime é continuado e, portanto, expeça-se mandado de prisão”.

Instado a revogar a ordem, insistiu em que a flagrância continuaria a caracterizar-se até que o empregado fosse registrado, único caso em que revogaria sua decisão. Perdoem-nos os céticos mas, um juiz que afronta todo este cortejo de problemas e destemidamente manda cumprir a lei é uma exibição de quanto um homem só pode fazer pela sua coletividade. Demonstra como é importante e precioso que a comunidade possa contar com magistrados que sem manchetes ou fotografias venham a servir de obstáculo ao desmando. Por mais garantias constitucionais que a ordem jurídica reserve à magistratura, a garantia do jurisdicionado, no fim das contas vai depender de homens ou mulheres investidos nesta autoridade do Estado-Juiz e que a exerçam com coragem na solidão de sua consciência.

O duplo grau de jurisdição, contudo, nem sempre traz recompensas aos magistrados nesta faina árida e discreta. No caso concreto, o tribunal respectivo, em breve espaço de tempo veio a conceder habeas corpus para cassar a ordem de prisão. Prevaleceu a imagem de que tratar como crime esta conduta patronal só porque a lei transformou o ilícito trabalhista em ilícito penal não seria razoável. O acórdão discutiu a matéria em profundidade mas termina por centrar-se na fundamentação por equidade. Ao ver da decisão proferida (votação unânime) a prática adotada pelo magistrado pode levar injustamente ao cárcere, empregadores “muitas vezes oriundos do povo, pessoas de origem humilde, pequenos proprietários, senhoras de prendas do lar que contratam empregadas para o auxílio nos afazeres domésticos” (processo TRT/SP 11.044.200.500.002.007).

O acórdão é redigido com fino lavor e relatado por magistrada sempre festejada por seu brio e competência. No entanto, bem se vê que o coletivo de julgadores, rendeu-se à difusa sensação de que tal norma legal é excessivamente severa, negando aplicação à norma legal sem que declarasse sua inconstitucionalidade. Por detrás do silogismo, está muito claro que a ordem de prisão foi cassada porque os julgadores recusaram-se a aplicar uma lei que consideram injusta.

É inegável que o Judiciário e o Executivo estaduais não têm mostrado semelhante preocupação com a equidade na hora de despejar trabalhadores sem terra ou sem teto. Caso seguissem o exemplo do TRT, talvez estivéssemos mais próximos daquele objetivo anunciado no artigo 3º, I da CF-88, no sentido de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. O episódio, contudo, é bastante instrutivo em relação às atuais relações entre o mundo do trabalho e o mundo das normas. A realidade das relações de trabalho está cada dia mais distante da obediência aos comandos contidos na lei trabalhista. Tal contradição tem produzido todo um difuso discurso na imprensa, tentando convencer a opinião pública de que a prática do mercado deve revogar a lei.

O problema neste caso não se resume em discutir se a falta de registro do empregado constitui bom motivo para prender o patrão. A questão está em estabelecer se alguém deve ser preso se está praticando uma conduta que o legislador definiu como criminosa. A equidade é algo próprio da subjetividade e foi exatamente por esta razão que a ordem jurídica outorgou uma certa lista de direitos aos obreiros ao invés de simplesmente dizer que tais relações devem ser justas. O pacote de direitos que a CF defere ao assalariado não é uma espécie de tabelamento para garantir bom preço para a mercadoria trabalho. É um patamar de cidadania para o trabalhador e instrumento privilegiado para promover a dignidade humana.

A vontade da lei é que o trabalhador tenha um trabalho e que este seja um trabalho decente, ou seja, uma relação na qual o obreiro seja sujeito e não objeto de direitos. A realidade neoliberal, contudo, está construindo um mundo completamente diverso, governado por uma razão perversa e no qual, a produtividade é o único critério de valor. Neste terreno devastado pela flexibilização, a lei trabalhista é uma das poucas linhas de resistência que ainda se antepõem à feudalização das relações de trabalho.

O que é justo, portanto, do ponto de vista da defesa da dignidade humana, é a aplicação e intransigente da norma legal protetiva. Ao nosso ver, o judiciário trabalhista não deveria deixar fenecer silenciosamente esta drástica legislação repressiva aparelhada contra o trabalho sem carteira assinada. Ao contrário, deveria empunhá-la como uma arma que, bem utilizada, poderia fazer com que não tivéssemos tantos obreiros labutando ao desabrigo das garantias da legislação laboral e previdenciária.

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