Terras indígenas

Terra indígena: súmula 650 do STF só incide em ações de usucapião

Autor

  • Roberto Lemos dos Santos Filho

    é juiz federal auxiliar da Corregedoria do TRF da 3ª Região titular da 5ª Vara Federal Criminal de Santos (SP) mestre e doutorando pela Universidade Católica de Santos pós-graduado em antropologia USC (Universidade do Sagrado Coração) de Bauru (SP).

14 de outubro de 2005, 18h49

Há pouco mais de dois anos o Egrégio Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 650 que enuncia: “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto” (Diário da Justiça da União de 09 de outubro de 2003, p. 3).

Essa Súmula foi veiculada em razão de provocações da Suprema Corte para pronunciamento acerca de eventual interesse da União Federal na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946 .

Em diversas ações de usucapião relacionadas a terras situadas em Guarulhos-SP e Santos André-SP, a União sustentava possuir interesse na solução do litígio, ao argumento de que a área usucapienda estava encravada em antigo aldeamento indígena, tratando-se, portanto, de bem da União, a teor do disposto no Decreto-Lei 9.760/1946, e no artigo 20, incisos I e XI, da Constituição.

Ocorre que a jurisprudência predominante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e do Superior Tribunal de Justiça, já estava assentado que o Decreto-Lei 9.760, onde arrolados exaustivamente os bens da União, foi editado sob a égide da Constituição de 1937, e não foi recepcionado pela Constituição de 1988, inexistindo, assim, interesse da União Federal no deslinde da ação de usucapião .

Assim, a Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal teve apenas o condão de cristalizar em definitivo os entendimentos estampados em inúmeros julgados proferidos pelos Colendos Tribunal Regional Federal da 3ª Região e Superior Tribunal de Justiça, especificamente quanto a inexistência de interesse da União em ações de usucapião em terras a que se refere o artigo 1º, alínea h, do Decreto 9.760/1946.

É necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946, não descurando das orientações constantes da Agenda 21 (ONU/Rio-1992), onde firmadas propostas para assegurar o desenvolvimento sustentável , e determinada a necessidade de proteção da terra indígena.

Também é imperiosa a necessidade da análise e da aplicação do entendimento sedimentado na Súmula 650-STF em conformidade com o disciplinado no artigo 231 da Constituição de 1988 , bem como com o preconizado no artigo 14, itens 1, 2 e 3 da Convenção 169 da OIT que versa sobre os direitos dos povos indígenas e tribais.

É preciso ter em mente, ademais, que o próprio Estado estimulou o apossamento de terras indígenas no intuito de expandir as fronteiras agrícolas, muitas vezes conferindo títulos de terras que desde o Alvará de 1º de abril de 1680 estavam destinadas à satisfação de direitos indígenas . Não pode ser olvidado, outrossim, o fato de a Constituição de 1988 ter reafirmado o indigenato, vale consignar, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam ou ocuparam, independente de título ou reconhecimento formal.

Como pondera Paulo de Bessa Antunes :

“A Constituição de 1988 não criou novas áreas indígenas. Ao contrário, limitou-se a reconhecer as já existentes. Tal reconhecimento, contudo, não se cingiu às terras indígenas já demarcadas. As áreas demarcadas, evidentemente, não necessitavam do reconhecimento constitucional pois, ao nível da legislação infraconstitucional, já se encontravam afetadas aos povos indígenas. O que foi feito pela Constituição foi o reconhecimento de situações fáticas, isto é, a Lei Fundamental, independentemente de qualquer norma de menor hierarquia, fixou critérios capazes de possibilitar o reconhecimento jurídico das terras indígenas. Não se criou direito novo.

É preciso estar atento ao fato de que as terras indígenas foram pertencentes aos diversos grupos étnicos, em razão da incidência de direito originário, isto é, direito precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, se possa ter constituído sobre o território dos índios. A demarcação das terras tem única e exclusivamente a função de criar uma delimitação espacial da titularidade indígena e de opô-la a terceiros. A demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre as suas terras é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira.”

Segundo Vicente Greco Filho , a uniformização de jurisprudência por intermédio de súmula visa o ideal de justiça igual para todos os casos que igualmente se subsumem à mesma norma legal, pois à ordem jurídica repugna que casos iguais sejam julgados de maneira diferente. Adverte o citado mestre que “a interpretação prévia, num caso determinado, ou abstraída de um caso determinado, corre o risco de ser irremediavelmente errada, tendo em vista a sua precipitação e falta de visão de todas as peculiaridades do problema”.

O artigo 231 da Constituição assegura aos índios os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo certo que essa expressão não designa ocupação imemorial , terras ocupadas por índios desde tempos remotos. Tal expressão refere-se ao modo tradicionalmente utilizado pelos indígenas para ocupação e relacionamento com as terras. Segundo Marco Antonio Barbosa :

“Visou o legislador constituinte deixar claro que o Estado brasileiro reconhece aos índios direitos territoriais preexistentes ao próprio Estado brasileiro, por isso a utilização das expressões: reconhecidos e direitos originários”.

E isso tem importância jurídica porque a nova Constituição brasileira admitiu que não é ela que veio atribuir esse direito, mas que ela simplesmente reconhece que tal direito já existia e que se trata de um direito originário, isto é, um direito anterior à própria formação do Estado brasileiro.

Nesse ponto também andou muito bem o legislador constituinte por diversas razões, dentre as quais destacaremos algumas que nos parecem as mais significativas:

1. Foi coerente jurídico-historicamente com a tradição do direito indigenista luso-brasileiro, que desde as leis portuguesas consagrou o indigenato, instituto jurídico através do qual se reconhece, no Brasil, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam, independentemente de título aquisitivo, não sujeito a legitimação e fora do sistema romanístico da posse e da propriedade, contemplado na legislação civil.

2. Muito embora, como dissemos, este direito já fosse consagrado aos índios desde as leis portuguesas para o Brasil e estivesse também assegurado na Constituição anterior, nela não vinha explícita a menção ao reconhecimento do direito originário sobre as terras ocupadas.

3. A nova formulação reforça a necessidade da aplicação constitucional e das leis, dentro da idéia de que o objetivo constitucional é o de proteger e garantir o território de um povo, com toda a amplitude que esses termos exigem (…)

5. Definidos nesses limites os preceitos da propriedade da União e do reconhecimento do direito originário dos índios sobre as terras que ocupam e afastada a falsa premissa anteriormente presente na legislação de que os povos indígenas eram transitórios e que deveriam inexoravelmente desaparecer, soa falsa qualquer abordagem do tema sobre a propriedade da União e a posse indígena que, de algum modo, queira associar essas expressões ao sentido a elas empregado em qualquer outro ramo do direito, notadamente em sua clássica utilização civilista.”

Redigida de forma pouco precisa, a Súmula 650-STF deve ser aplicada tão-somente às hipóteses a que ela se refere — usucapião de terras mencionadas no artigo 1º, alínea h, do Decreto 9.760/1946 —, devendo os operadores do direito atentar para as peculiaridades e as circunstâncias constantes dos precedentes que embasaram a edição do enunciado, sob pena de violação ao disposto no artigo 231 da Constituição e ao artigo 14 da Convenção 169-OIT .

A proteção e garantia dos direitos assegurados aos grupos vulneráveis, entre os quais estão inseridos os indígenas, é a meta a ser alcançada por todos os que lutam pela efetividade dos direitos humanos, pelo que a Súmula 650-STF deve ser interpretada e aplicada nos estreitos limites dos precedentes que a orientaram. Importa trazer à reflexão as seguintes ponderações de Ana Valéria Araújo :

“Se é verdade, portanto, que os juízes às vezes desfazem as leis, é também certo que é este mesmo Judiciário quem as consolida. Afinal, os direitos indígenas têm sido postos à prova e, pouco a pouco, vão conseguindo ganhar o respaldo judicial. Assegurar plena efetividade a esses direitos, porém, é ainda um desafio. Trata-se de um processo lento, que passa até mesmo pela educação de juízes quanto às modernas concepções do Direito, a ser vencido dia após dia pelos próprios índios, suas organizações, pelo Ministério Público, advogados e todos os que atuam nessa questão”.

A Súmula 650-STF tem aplicabilidade limitada às ações de usucapião relativas às terras mencionadas no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. A incidência desse enunciado a hipóteses outras acarreta manifesta violação ao artigo 231 da Constituição, ao artigo 14 da Convenção 169-OIT, e às orientações da Agenda 21 (ONU-Rio/1992). O emprego da Súmula 650-STF a espécies não relacionadas a ações de usucapião de terras a que se refere o artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946, resulta inescusável afronta ao direito internacional dos direitos humanos.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Paulo de Bessa. Ação Civil Pública, Meio Ambiente e Terras Indígenas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.

ARAÚJO, Ana Valéria. Judiciário, ISA – INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL, Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/portugues/direito/judic.shtm, acesso em: 13.10.2005.

BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil, São Paulo: Editora Plêiade, 2001.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios. Revista Informação Legislativa, Brasília, a. 28, n. 111, julho/setembro 1991.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, 11ª edição.

SILVA José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, 21ª edição.

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993.

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