Leia a íntegra do voto de Sepúlveda Pertence no MS de Dirceu
30 de novembro de 2005, 15h54
O Supremo Tribunal Federal decidiu manter a votação do processo de cassação do deputado José Dirceu, que deve ser feita ainda nesta quarta-feira (30/11) na Câmara dos Deputados. Os trechos do depoimento da testemunha de acusação Kátia Rabello, no entanto, terão de ser suprimidos do relatório final.
O julgamento terminou empatado na quarta-feira passada (23/11) em cinco a cinco. Quem desempatou foi o ministro Sepúlveda Pertence, que votou nesta quarta-feira (30/11).
Assim como Cezar Peluso, Sepúlveda Pertence entendeu que houve cerceamento de defesa uma vez que houve inversão na ordem dos depoimentos das testemunhas. Pela lei, a última palavra é sempre da defesa, e nunca da acusação.
O ministro descartou os argumentos do Conselho de Ética de que as testemunhas de defesa nada poderiam dizer sobre as declarações da testemunha de acusação, Kátia Rabello. Para ele, o argumento é inaceitável porque “pressupõe, no juiz da instrução, um poder que não tem, de censura prévia sobre o que possa ou não dizer de útil a testemunha regularmente indicada pela parte”.
No entanto, o ministro não acompanhou o voto de Cezar Peluso, que havia opinado apenas por retirar o depoimento de Kátia do processo (entendimento depois mantido pelo Plenário do Supremo). Para Pertence, o processo inteiro deveria ser retornado ao Conselho de Ética, tese defendida também pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Eros Grau e Nelson Jobim.
“Sobre um tal julgamento, creio mais eficaz viabilizar a contraprova ao depoimento viciado pela inversão da ordem de sua tomada do que a inócua determinação de que dele façam abstração mental os nobres Senhores Deputados.”
No final da sessão, contudo, prevaleceu o entendimento de Peluso, os trechos do depoimento de Kátia Rabello serão suprimidos do relatório e a votação da cassação do mandato de Dirceu deve ser feita ainda nesta quarta.
Leia a íntegra do voto do Sepúlveda Pertence
Senhor Presidente, alguns minutos de paciência para uma nota pessoal.
Meu inferno astral, este ano, correu às avessas: começou na terça-feira da semana passada, 22 de novembro, quando, doente, já não pude comparecer à sessão da Primeira Turma; nem à do Plenário, na quarta-feira, quando se iniciou o julgamento deste caso.
Hoje, aqui estou para proferir o meu voto, que, embora ausente à sessão, a divisão de votos no Tribunal tornou imperativo e provavelmente decisivo.
Tanto bastou para que, desde então, se sucedessem os insultos e as provocações.
I
Para hoje, estar aqui, desejava tomar de empréstimo a V. Exa. a capacidade de manter-se incólume às agressões. A rigor, nem deveria precisar do empréstimo.
Uma década mais velho, Sr. Presidente, com dezesseis anos e meio do assento neste tribunal — de cuja bancada já começo a sentir ser a hora de levantar-me —, estou às vésperas de completar quarenta e cinco anos de vivência nesta Casa — do jovem advogado, recém-formado, ao assessor de Ministro, do advogado mais experiente ao Procurador-Geral da República, até ser feito juiz da Corte.
Essa longa experiência, da juventude à maturidade, somada aos prenúncios da senectude — suponho sejam os primeiros —, e a uma convicta pregação da tolerância, que a vida sedimentou, tudo isso me obrigaria a já ser insensível às ofensas dos interesses contrariados e, o que é pior, das paixões desaçaimadas.
Desde há muito, é certo, não mais me molestam as críticas aos meus votos, por mais acerbas que sejam: é o preço que se há de pagar — e prazerosamente — não à ilusória vaidade de ser Ministro, mas ao relevo das decisões, de que temos de participar, num Tribunal cuja importância social e política é o penhor da tentativa de construir e consolidar um Estado Democrático de Direito no Brasil.
Pelo Supremo Tribunal é que me preocupa a semana que vimos de viver, todos nós, porque membros da instituição, e, de modo particular, V.Exa. — seu Presidente — e eu mesmo, dado que, ausente na semana passada, me tornei o foco das expectativas — melhor diria, das exigências raivosas deste final de julgamento, que certa mídia se vem acostumando a instilar com presunção crescente.
Por isso, nesses dias, sequer me pouparam da dúvida de que, de fato, estivesse doente, porque — chegou-se a sugerir — a hora de minha doença anunciada teria sido conveniente ao amigo de um amigo meu…
Poupo, é claro, o Tribunal da resposta comprovada à mentira dissimulada em tão velhacas insinuações, que não ousam afirmar-se para não ter sequer a coragem da calúnia.
Mas não posso deixar a respeitabilidade deste Tribunal — instituição que tenho venerado e à qual dediquei, com honradez e sem nenhum pesar, décadas irrecuperáveis da minha vida —, sem o repúdio veemente e indignado a certo modo de fazer imprensa que, para fugir à responsabilidade do que não se pode sustentar, se esconde sob o manto protetor da insinuação que não se ousa assumir.
Sei que não é do estilo de V. Exa., Sr. Presidente, dar-se por atingido por acutiladas semelhantes.
Permita-me, porém, duas palavras sobre por que tenho, sim, de intervir neste caso.
Afinal de contas, tivessem razão alguns foliculários de leviana presunção e seria indevido o voto que, hoje, me cabe proferir, como se tem assoalhado, por vezes, com a insolência da ignorância.
Sucede que, cuidando-se de matéria constitucional, a V.Exa., Presidente, incumbe o dever de votar, haja ou não empate, estejam ou não presentes todos os seus juízes: é elementar.
Risível, portanto, a objeção de que não lhe caberia votar para empatar a votação: basta considerar que, fosse o voto de V.Exa. no mesmo sentido dos cinco votos já manifestados pelo indeferimento total da liminar, e a maioria absoluta estaria formada nesse sentido, aí sim, dispensando a espera da minha manifestação.
Finalmente, só aos néscios ocorreria cogitar que, no caso, ao voto do em. Ministro Cezar Peluso — pelo deferimento parcial da liminar — fosse possível somarem-se, em qualquer sentido, os cinco votos do ems. Ministros que integralmente a indeferiam.
De tudo, não apenas, foi correto que V. Exa. manifestasse, de logo, o seu voto, mas também que — dado o conteúdo dele — fosse o julgamento suspenso, à espera do meu, que passo, assim, a proferir.
O meu voto, Senhores Ministros, pretende ser direto e breve, que as três linhas de raciocínio já expendidas dispensam digressões.
De logo, quanto aos demais fundamentos da impetração, acompanho a uniformidade dos votos colhidos até aqui, por sua inconsistência, nas circunstâncias do caso concreto.
Apenas me reservo, se e quando necessário, para considerações mais detidas, acerca de dois tópicos aventados.
O primeiro, o da utilização das provas ilicitamente obtidas, que não me pareceu caracterizar-se na espécie.
O segundo diz com a prorrogação do prazo para a conclusão do processo, que, admissível em princípio, pode, em outro caso, vir a sujeitar-se à censura do abuso do poder.
No mais — na questão que vem dividindo o Plenário — a mim me parece de evidência solar, a princípio, que, dadas a natureza e o objeto do processo de cassação de mandatos legislativos por irrogada quebra do decoro parlamentar, ao seu desenvolvimento se hão de aplicar não só a dicção literal, mas também os corolários de três ditames constitucionais:
a) o mais genérico, o da garantia do devido processo legal, sem o qual, garante-se, “ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens” (CF, art. 5º, LIV), estes, compreendidos na mais ampla significação.
b) o segundo, que é derivação do primeiro, a teor do qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”;
c) o terceiro, somente expletivo dos anteriores, de que ao parlamentar sujeito à decretação (CF, art. 55, § 2º) — ou à mera declaração — de perda do mandato, se há de propiciar a ampla defesa.
Com todas as vênias, o contraditório e a ampla defesa assegurados ao mandatário — independentemente de norma regimental expressa do Código de Ética e Decoro — são bastantes a impor o transplante ao processo parlamentar, sempre que nele se haja de admitir a prova oral, da regra que a audiência das testemunhas da acusação haja de preceder à inquirição daquelas arroladas pela defesa.
Essa precedência não é regra de mera ordenação procedimental, mas imperativo da “relação dialógica” — usando a expressão do Ministro Celso de Mello — em que se há de desenvolver todo e qualquer processo regido pela garantia da contraditoriedade, que, acentuou S.Exa, há de “ser efetiva e real, não meramente simbólica ou retórica, ensejando-se ao que sofre uma acusação” — seja qual for a sua índole, penal, administrativa ou política — “a possibilidade de contestar, de opor a qualquer prova que lhe seja prejudicial”, o que — enfatizo — envolve a de produzir contraprova da anteriormente oferecida pela acusação.
“É formalidade essencial do processo” — já o proclamara o Tribunal, em acórdão da lavra autorizada do mestre Evandro Lins (RHC 43.941, 21.2.67) —, “que as testemunhas arroladas pela acusação sejam ouvidas com anterioridade às da defesa. Para criticar o que foi argüido pelo órgão da acusação não é possível que essa contestação seja feita antes do conhecimento pleno dos elementos trazidos aos autos pelo Ministério Público. A inversão das inquirições traz, por si mesma, prejuízo, que se presume de modo absoluto, à defesa do acusado”.
O raciocínio vem de ser desenvolvido com maestria, na discussão deste caso, pelo Ministro Cezar Peluso.
“O fundamento relevante é o da inversão da ordem legal da inquirição das testemunhas. O princípio do contraditório, isso é elementar, significa, por definição, a possibilidade de contradição dentro do processo. Ele é uma realidade jurídica que não se compõe apenas de ações lingüísticas, isso é, a cada afirmação, segundo o princípio do contraditório, deve corresponder, sempre, à possibilidade de o adversário promover uma reação lingüística correspondente ou homóloga àquela a que responde. O processo também se compõe de ações reais, de outro tipo, de ação de outra natureza, por exemplo, colheita de prova. Nela não há ação lingüística, há uma ação que a doutrina processual denomina de ação real, porque consiste em fatos. Ora, o princípio do contraditório implica, exatamente, na possibilidade de produção de prova, corresponder a uma reação real, isto é, a produção de outra prova tendente a infirmar a prova anterior. Isto é elementar, isto é o cerne do princípio do contraditório. A cada prova produzida deve corresponder ao réu em geral, na área penal, a possibilidade de uma ação real tendente a aniquilar, enfim, atenuar a força retórica desta prova”.
Na espécie, é incontroverso que a única pessoa ouvida na instrução do processo e arrolada pelo Partido representante — assim, dita “testemunha de acusação” para todos os efeitos —, só a banqueira Kátia Rabelo foi inquirida em 22.09.05 (vol. 3/f.520), após a audiência de todas as testemunhas arroladas pelo representado, hoje impetrante, encerradas com a de Fernando de Moraes, em 14 de setembro (vol. 2/f. 394).
Objetou-se com veemência, no processo e fora dele, que a carência de poder do órgão instrutor, o Conselho de Ética e de Disciplina, para convocar testemunhas e compeli-las, quando necessário, ao comparecimento, seria bastante a elidir o vício da inversão da ordem legal das inquirições daquelas que, simplesmente convidadas, anuíram.
O voto do Ministro Cezar Peluso também derrui a meu ver a barreira assim oposta ao reconhecimento da nulidade: “O problema” — aduziu — “não é de poder de convocação, mas de direção e ordenação do procedimento. Nada impedia ao Conselho que expedisse as convocações para as testemunhas de defesa uma vez exaurida a prova da acusação. Não há nada que impedisse a acusação de fazê-lo ou ao Conselho, nem o poder convocatório, era um problema de simplesmente aguardar, à exaustão, a prova de acusação, que não foi feita”.
Há no caso ademais uma circunstância de fato, que reduz a quizília a um retumbante bizantismo: a inversão da tomada dos depoimentos deveu-se exclusiva e propositadamente ao eg. Conselho de Ética e Decoro.
Com efeito, os convites a todas as testemunhas indicadas pela representação e pelo representado portam a mesma data — 31.08.05 (vol. 2/f. 265-271 v.).
E — o que é mais expressivo: cada um dos convites sugeria uma ou mais datas para o comparecimento do convidado, mas, na seqüência das sugestões, as endereçadas às testemunhas da defesa precediam as dirigidas às da acusação.
A conseqüente inversão se deveu, pois, por inteiro, ao órgão dirigente do processo, sem que nela tivesse influído o caráter de convite ou convocação dos chamamentos.
A nulidade, pois, é chapada.
E, ainda quando se queira questionar o seu caráter sanável ou insanável, não haveria como cogitar da preclusão, ou seja, do convalescimento do vício processual pela falta da argüição oportuna pelo prejudicado.
Ao contrário, no caso, a nulidade foi denunciada pela defesa antes mesmo que ocorresse: aberta, em 13.9.05, a audiência de inquirição das testemunhas de defesa, o defensor do impetrante questionou de imediato contra que fossem elas inquiridas antes das arroladas pela representação (vol. 2/f. 308v.).
Não atendida, a defesa, naquela oportunidade, só ao cabo da instrução lhe foi aberta a oportunidade para insistir no seu inconformismo com a inversão, ocasião em que requereu, para saná-la, a contraprova da reinquirição de suas próprias testemunhas, o que lhe foi indeferido.
Surge, a partir daí, na chamada inicial do caso e à guisa de demonstração da ausência de prejuízo para a defesa, o argumento de que as testemunhas arroladas pela defesa e cuja reinquirição se postulara, nada teriam de útil a dizer a propósito das declarações da banqueira que, depois delas, fora inquirida.
O argumento, com todas as vênias, é inaceitável, pois pressupõe, no juiz da instrução, um poder que não tem, de censura prévia sobre o que possa ou não dizer de útil a testemunha regularmente indicada pela parte.
Para não alongar demais da conta o voto que planejara fazer breve, recolho dos anais do Tribunal um voto de V.Exa., Sr. Presidente, vitorioso na Segunda Turma (HC 76062, 9.12.97, RTJ 179/297), do qual extrato:
“A defesa, sob a égide do princípio do amplo direito de defesa, arrola as testemunhas que bem entender. Quem irá avaliar os depoimentos — se a testemunha sabia ou não, se ela poderia falar sobre determinada situação ou não — é o corpo de jurados. São os jurados que irão avaliar o conteúdo do depoimento das testemunhas. Não cabe ao juiz, arrolada as testemunhas no tempo processual oportuno,inquirir à defesa sobre o que sabem essas testemunhas e sobre o que vão depor. Caso contrário, a defesa teria que enunciar, quando do oferecimento do rol, o conteúdo dos depoimentos: a testemunha “a” irá depor sobre tal assunto, a “b”, sobre tal fato. Não faz sentido.”
E adiante, em meio à discussão com o autor do único voto vencido, o em. Ministro Maurício Correa:
“Entendo possível à defesa arrolar, como testemunhas, pessoas que não saibam sobre o fato, mas que possam colaborar eventualmente, para as teses da defesa
A defesa não tem obrigação nenhuma de arrolar personagens as quais irão contrariar as suas teses.
A defesa, no caso, entendia que, ouvindo esse cidadão no plenário do Júri, inquirindo-o sob determinados aspectos técnicos eventualmente condenatórios, poderia produzir, nos jurados, um juízo contrário. Entendia que poderia abalar a linha condenatória. É legítimo que se ouça essa testemunha.
Em acidente de trânsito, inclusive, tive casos no qual ouvimos testemunhas sobre problemas de frenagem, de defeitos eventuais em tipos de veículos, de marcas de veículos, para exatamente demonstrar determinadas circunstâncias que pudessem elucidar o fato e, evidentemente, favorecer a defesa.
O juiz não é um fiscal das ações da defesa, nem mesmo da acusação. Cabe ao juiz, nos estritos termos da legislação, evitar que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais sobre o fato.”
A pertinência à espécie do precedente é manifesta e alui, data vênia, todo o raciocínio aqui desenvolvido em contrário.
Alinho-me, pois, decididamente, data vênia, com os que divisam, no caso, inequívoco cerceamento de defesa que induz à declaração de nulidade parcial do processo.
Resta indagar da conseqüência a extrair da nulidade assim reconhecida.
Em meu voto, me tenho valido com freqüência até aqui daquele do Ministro Cezar Peluso, que sintetizou com rara precisão os pontos cruciais da controvérsia.
Estou, porém, com as escusas de S.Exa., em que a sua conclusão ficou aquém das premissas irretocáveis do seu raciocínio, que, ao contrário, me parecem afinar-se melhor com a conclusão dos votos dos ems. Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Eros Grau e Nelson Jobim.
A certo ponto da discussão, chegou-se é certo a pôr em dúvida se a solução do Ministro Peluso — que manda fazer abstração, no relatório refeito e no plenário, do depoimento da Sra. Kátia Rabello, como se não tivesse existido, quiçá não fosse mais radical que a dos quatro outros votos referidos — que deferem a reinquirição, a título de contraprova, das testemunhas de defesa.
Muito provavelmente assim me parecesse se se cuidasse de um processo a ser decidido por sentença motivada, no contexto da qual fosse possível controlar a verdadeira desconsideração da prova cuja exclusão se houvesse determinado.
Não é o caso, porém.
Cuida-se, ao contrário, da instrução de um processo a ser julgado pelo voto secreto, imotivado e insusceptível de controle do plenário de um órgão político de várias centenas de integrantes: sobre um tal julgamento, creio mais eficaz viabilizar a contraprova ao depoimento viciado pela inversão da ordem de sua tomada do que a inócua determinação de que dele façam abstração mental os nobres Senhores Deputados.
Esse o quadro, acompanho o voto do Ministro Marcos Aurélio e dos que o seguiram, reservando-me para discutir, se for o caso, a apuração do voto médio a proclamar: é o meu voto.
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