Espetáculo deprimente

"As CPIs têm se transformado em um deprimente espetáculo"

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular de Direito Processual Penal da UFPR chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR representante da Área do Direito junto à Capes e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.

22 de junho de 2004, 12h49

É de Gramsci a assertiva de que “o velho morreu e o novo não nasceu ainda” e ela pode ser usada para explicar o que se está a viver na atualidade. O modelo do Estado Liberal agoniza, pressionado pela nova Ordem Mundial, globalizada e globalizante, onde o mal está, sem dúvida, na aceitação indiscriminada e passiva do pensamento único neoliberal.

Ele, como se pode perceber facilmente, provoca situações de total incompatibilidade com o modelo antigo, onde valiam, sobremaneira, os direitos e garantias individuais, conquistados por um pacto (já na hora de ser renovado, desde outra perspectiva) e expressos pelo contrato social. Hobbes, Rousseau e Locke têm muito a dizer aqui, assim como Hayek, Friedman, Buchanan e seus seguidores, mormente nos países periféricos.

De um lado, competição (um eufemismo para, muitas vezes, dizer “guerra de todos contra todos” ou “estado de natureza”), por conta do modelo neoliberal que tem como base epistêmica a chamada “ação eficiente”; do outro, os “velhos e ultrapassados defensores da Constituição e seus absurdos direitos, conquistados pelos cidadãos após muitas e muitas lutas”. Ser velho e ultrapassado, assim, é, nos nossos domínios, forma de resistência democrática, onde o verbo valere (não esquecer que os romanos se saudavam dizendo vale, ou seja, algo como “fique bem”) fundava Direito e Justiça, aquele pela validez e esta pela ética.

Em suma, o modelo da modernidade ainda não morreu, porque precisamos de modo indeclinável dos valores que permitem a todos tentar dormir em paz, o que não tem sido fácil, não propriamente porque tende a aumentar a criminalidade, mas em função de que se não tem tido mais a esperança que se tinha antes, em face das imensas incertezas reservadas pelo futuro. Há, assim, uma crise pessoal, agora alastrada para toda a sociedade.

Em momentos históricos assim, tende-se – talvez naturalmente – a pensar que a solução esteja no rompimento da ordem estabelecida, justo aquela que foi conquistada e, da qual, não se volta atrás, como bem ensinou Canotilho. É, todavia, nesses momentos que mais se precisa dela, porque com muita freqüência se chega a estados limítrofes de suportabilidade, pelo excesso de abusos.

A tranqüilidade só consegue estar presente — é preciso ter isto em boa conta — porque há órgãos estabelecidos justamente para exercer, antes de tudo, a função de garante. O Poder Judiciário é o maior exemplo; e aí sua importância transcendental, justo para garantir, se for o caso e conforme Direito e a Justiça, o in-divi-duo (não divisível em dois) contra o todo; a minoria contra a maioria; e assim por diante.

Tal missão, por sinal, é também dada legalmente a outros órgãos e, nos últimos tempos, têm ganho grande relevo as chamadas Comissões Parlamentares de Inquérito, ditas CPIs. Seria, como parece óbvio, inegável o seu valor, se funcionassem adequadamente. Não é isso que se tem observado e, com grande risco à sociedade, estão a minar a função de construção do registro do simbólico desempenhado pelo Poder, ou seja, aquilo que, tomado como limite na realidade, funda os sujeitos.

É o avesso do seu dever ser, o que tem provocado as mais diversas reações de desaprovação, a começar pela OAB, símbolo de defesa da cidadania (por favor, não esquecer nunca a história da Ordem!): “Tais autoridades, tanto em Comissões Mistas Parlamentares de Inquérito, como em Comissões Parlamentares de Inquérito, vêm, sistematicamente, impedindo a participação ativa de Advogados que atuam em defesa de seus clientes em tais foros investigativos, violando a Lei nº 8.906/94 e arvorando-se em senhores absolutos da verdade, em flagrante desrespeito aos mais elementares direitos e prerrogativas de Advogados no exercício de suas funções.” (Nota de Repúdio de 03.06.04).

A atitude da OAB/PR se explica: quem deve garantir os direitos vira, sistematicamente, violador deles. Basta ver o que disse um membro de uma CPI que transitou por Curitiba sobre o constitucional direito ao silêncio: “O direito ao silêncio é um dispositivo constitucional que permite ao réu não depor contra si mesmo. Só que eles estavam aqui como testemunhas. Se não quiseram responder a nada, significa que eles têm coisas a esconder e que estão se definindo como réus. O silêncio é revelador.” (Gazeta do Povo, 29.05.04).

Sim, o silêncio, como sabe qualquer jejuno, pode ser revelador, mas só na cabeça do intérprete, que cria suas imagens a partir dos seus fantasmas, justo porque, se for um caso de omissão (um não-ser), não revela nada, absolutamente nada. Afinal, não é preciso saber muito de Filosofia para saber que do nada, nada surge; a não ser quando se quer, quem sabe, manipular o discurso, em verdade sem muito saber como fazê-lo ou, o que é pior, supondo que no interior do país não se consiga detectar ignorâncias. Essa gente não vê que Brasília segue sendo longe demais do Brasil.

A atitude, por outro lado, é sintoma evidente de que se pretende outra coisa, voltada para outra cena, quiçá uma campanha eleitoral como denunciou Luís Guilherme Vieira neste Direito e Justiça de 13.06.04, ao afirmar que “algumas CPIs por vezes são transformadas — e como são! — em palcos circenses, onde parlamentares-show, despindo-se de suas nobilíssimas missões públicas, se aproveitam das sessões, por vezes transmitidas ao vivo e em cores, para obter o seu momento Andy Warhol.”

Há, porém, outro sintoma da qualidade do que se está a fazer; e se pode medir pelo uso da língua pátria: “As transações do Araucária foram seguidamente consideradas irregulares pelo escritório do BC no estado e mesmo assim o Departamento de Câmbio não interviu (sic)”, disse um membro da CPI (entre aspas), na matéria da Gazeta do Povo antes citada. Eis, pelo verbo, os integrantes das CPIs: interviu; pay-per-view, são todos da mesma laia dentro da língua.

O perigo, por fim, é que o povo, em geral, acredita que, por elas, far-se-á Justiça. Pobre povo, alimentado por golpes de retórica. O resultado — vê-se do produzido por todas as CPIs que perambularam pelo noticiário — é nulo; mas eficaz para minar a democracia. Isso, sem embargo, interessa, ideologicamente, a alguém, mas põe em sério risco a paz social. É preciso atenção, muita atenção, porque ainda não se fez no país a nossa Revolução Francesa.

Autores

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da UFPR, chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR, representante da Área do Direito junto a Capes e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.

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