Quebra de sigilo

Interesse público deve ser privilegiado nos casos de quebra de sigilo

Autor

  • Renato Bernardi

    é bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino doutor em Direito do Estado (sub-área Direito Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e procurador do estado de São Paulo desde 1994

20 de junho de 2004, 15h20

Dentre os elementos constantes da Constituição Federal, há aqueles denominados pela doutrina de elementos limitativos, assim denominados porque o seu objetivo regulamentar consiste na restrição da atividade do estado, traçando linhas divisórias entre o seu âmbito de atuação e a esfera do indivíduo. O mais significativo exemplo de tal categoria de elementos constitucionais é o rol dos direitos fundamentais, previstos, em sua maioria, no artigo 5º do Texto Constitucional.

Em meio aos direitos e às garantias fundamentais, encontra-se o direito conferido aos brasileiros e aos estrangeiros presentes no país, expresso no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, de inviolabilidade da intimidade, espécie de direito da personalidade. Como corolário do direito à intimidade, o inciso XII do mesmo artigo da Carta Magna prevê a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

A questão referente à inviolabilidade do sigilo de dados carece de compreensão quanto à sua estrutura e quanto à sua extensão, sempre se levando em consideração que, conforme pacífica doutrina, embasada em remansosa jurisprudência, o direito brasileiro não contempla direitos absolutos.

Argumentam aqueles que pretendem incutir caráter absoluto à inviolabilidade do sigilo de dados que os meios eletrônicos de armazenamento de dados encontram-se sob o manto de proteção inabalável do artigo 5º, incisos X e XII da Constituição Federal, que garantem, respectivamente, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, rotulando de inconstitucional e ilegal a realização de qualquer procedimento de avaliação do conteúdo dos computadores e demais meios de armazenamento eletrônico e magnético de dados.

Os adeptos dessa corrente fundamentam seu entendimento no acórdão proferido pelo Colendo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 307-3, do Distrito Federal, cujos réus foram, entre outros, o ex-presidente da República Fernando Collor de Mello e seu assessor Paulo César Farias. Nessa ação penal, foi considerada ilícita a prova produzida a partir do laudo de degravação do conteúdo de um computador, que havia sido apreendido pela Polícia Federal sem as devidas formalidades legais.

Todavia, o julgamento da referida ação penal teve por fundamento a ofensa à inviolabilidade da intimidade do possuidor do computador apreendido, ante a invasão de domicílio para a sua apreensão e a ausência de prévia autorização judicial para tal procedimento, considerada a possibilidade de nele estarem armazenados dados de caráter pessoal.

É fato público e notório que as pessoas físicas e jurídicas atualmente se utilizam dos meios eletrônicos e magnéticos para a administração e o armazenamento dos dados relativos a suas atividades comerciais e fiscais, o que significa dizer que as eventuais provas de qualquer conduta delitiva sonegatória praticada, em tese, por qualquer contribuinte, estarão arquivadas em meio eletrônico ou magnético.

A questão põe, frente a frente, a compatibilização entre o respeito aos direitos e garantias individuais e a preservação do interesse público ou do bem comum, consignando-se que a supremacia do interesse público sobre o privado é prevista de forma implícita nos ditames de nossa Constituição Federal, assim como em grande parte dos países que se organizam sob a égide de um Estado Democrático de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais não podem ser utilizados como escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para o afastamento ou a redução da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de consagração do desrespeito ao Estado de Direito.

Considerando-se um exemplo de direito penal, uma agenda eletrônica – acervo de informações (dados) registrados até o momento da apreensão e parte integrante do conjunto de objetos utilizados para o empreendimento criminoso – que contivesse o nome de fornecedores e adquirentes de substância entorpecente não poderia ser considerada prova ilícita para a condenação do criminoso pelo tráfico ilícito de entorpecentes, ainda que se considerasse o direito à intimidade e ao sigilo dos dados do traficante.

Mutatio mutandis, não se justifica a pretensão eventual do contribuinte de acobertar-se nas garantias da intimidade e da privacidade documental e de dados, considerando-se que os computadores e meios magnéticos que venham a ser apreendidos no curso de qualquer investigação da prática de crimes contra a ordem tributária ostentam potencial e inequívoca condição de prova não apenas da defraudação, mas também da dimensão temporal da atividade sonegadora.


Reconhece-se que atualmente a tecnologia oferece um sem número de benefícios às pessoas físicas e jurídicas em suas tarefas cotidianas. Por outro lado, é de rigor o reconhecimento de que a tecnologia da informática não pode produzir impunidade. O armazenamento de dados fiscais e tributários em meio eletrônico ou magnético, incentivado pelo próprio fisco, no interesse da fiscalização e da arrecadação de tributos, não é imune ao controle estatal, nem causa impeditiva ou excludente de infrações penais. Os modernamente denominados “cybercrimes” não estão acima da lei e da ordem.

Como já adiantado, nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível, respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e comunicações telegráficas e de dados, sempre que os direitos ou as garantias fundamentais estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.

A quebra do sigilo garantidor da intimidade do indivíduo, todavia, somente será lícita após o seu deferimento pela autoridade judiciária.

Determinada e executada a medida independentemente de ordem judicial, resta garantido à pessoa jurídica ou física devassada em sua intimidade o direito de recorrer ao mesmo Poder Judiciário em busca da repressão ao abuso de poder praticado pela autoridade pública, traduzida na competente tutela reparatória – caso a devassa já esteja perpetrada – ou na tutela preventiva – para que se evite devassa ilegal e inconstitucional – sem prejuízo das sanções penais cabíveis à espécie.

Ao Poder Judiciário, como norte para resolver a intricada lide que põe em confronto o direito fundamental à intimidade e o poder de polícia administrativo, cabe analisar as características do caso concreto que lhe é apresentado e o objeto jurídico tutelado pela norma garantidora do sigilo de dados, distribuindo o direito de forma proporcional, ou seja, garantindo-se a máxima efetividade do direito fundamental, sem erigi-lo a direito absoluto e privilegiando o interesse público sobre o interesse privado, postulado orientador em todo Estado Democrático de Direito.

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Autores

  • Brave

    é procurador do estado de São Paulo, mestre em Direito Constitucional, professor das Faculdades Integradas de Ourinhos, da Escola da Magistratura do estado do Paraná (núcleo de Jacarezinho) e do curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Alta Paulista (Tupã/SP) -- nível de especialização.

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