Meio ambiente

Resolução 302 do Conama nasceu para justificar desmandos do governo

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19 de julho de 2004, 14h03

Ilegítima pretensão de regulamentação do Código Florestal para fixar os limites da área de preservação permanente situada ao redor dos reservatórios artificiais. Definição de metragens não previstas em lei. Inovação ao próprio texto do Código Florestal. Ilegalidade. Invasão de competência constitucional dos Estados e Municípios para legislar de forma concorrente com a União sobre matérias de proteção ao meio ambiente e de interesses locais. Limitação de propriedade que é matéria de lei específica. Flagrante violação ao princípio da legalidade. Pretensa redefinição do ordenamento territorial para a criação de nova figura chamada “área urbana consolidada”, que, aliás, jamais existirá. Omissão, ademais, de limites para as áreas urbanas “não consolidadas”.

São comuns nos dias atuais autuações ambientais a proprietários de imóveis situados à beira de reservatórios artificiais. A violação, segundo os agentes ambientais, consiste na supressão de vegetação localizada em área de preservação permanente, isto é, uma faixa non aedificandi de até 100m (cem metros) em relação à represa. A maioria dos casos, entretanto, apenas evidencia um embate entre o direito e a convicção meramente empírica comum em algumas autoridades florestais que precisam, para satisfazer sua consciência ecológica individual, vislumbrar irregularidades jurídicas onde não existem, simplesmente porque não se conformam com determinados fatos. Assim nasceu a Resolução Conama 302, de 20 de março de 2002, que veio para justificar alguns desmandos do Poder Executivo.

Não se pretende nesta breve e despretensiosa análise ignorar a relevância do meio ambiente, nem tampouco desprezar o enfoque da prudência e da vigilância na aplicação do direito ambiental, mas apenas demonstrar que algumas condutas, sem embargo de sua licitude, não são sequer capazes de degradar a qualidade ambiental.

A Lei Federal 4.771, de 15 de setembro de 1965 (“Código Florestal”), definiu nos artigos 2º e 3º as áreas chamadas de preservação permanente. São as florestas e demais formas de vegetação natural situadas ao longo de rios, ao redor de lagos e represas, no topo de morros, nas encostas com declividade acentuada, dentre outras áreas, que de fato justificam uma proteção especial como forma de, principalmente, assegurar o bem-estar das gerações atuais e futuras.

Até hoje, pendem diversas discussões jurídicas sobre os dispositivos do Código Florestal que tratam das áreas de preservação permanente, por exemplo, qual o tipo de vegetação protegida, se somente as nativas ou também aquelas plantadas pelo homem, se aplicam às áreas urbanas, quais os órgãos competentes para autorizar a supressão, enfim, uma gama gerada pelas falhas presentes na legislação ambiental. Algumas dessas discussões parecem ter sido sanadas com as alterações promovidas no texto legal, em especial, com a edição da Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de Agosto de 2001 (última edição), principalmente no que se refere à competência dos Municípios para o licenciamento ambiental.

Mas uma questão permanece indefinida: qual a metragem específica das áreas de preservação permanente situadas ao redor de reservatórios artificiais?

O próprio Código Florestal silenciou, limitando-se a considerar como área de preservação aquela situada “ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água, naturais ou artificiais” (art. 2º, alínea b). Não estabeleceu nenhuma quantificação, como se vê, ao contrário do que ocorreu em todos os subitens da alínea “a” do mesmo artigo, que fala sobre os cursos com água corrente.

Pode-se afirmar, entretanto, que não foi aleatória a omissão do legislador quanto à dimensão da faixa non aedificandi no entorno dos reservatórios d’água. Tal omissão tem embasamento científico, que aponta uma ausência de perigo de erosão e de risco ao reservatório em razão da ocupação feita ao redor dele, segundo afirma LUIS CARLOS SILVA DE MORAES, in Código Florestal Comentado, ed. Atlas, 3ª edição, p. 36.

Por outro lado, não obstante a eventual inutilidade da terra que reveste o entorno dos reservatórios artificiais, o que dependerá da análise de cada caso concreto, o fato é que havendo omissão do legislador federal florestal – omissão que, como já dito, não é aleatória – cabe à legislação concorrente definir a reserva de faixa “non aedificandi” ao longo das águas paradas, atendendo-se às peculiaridades locais.

Ocorre que o Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente, talvez cansado de esperar uma definição legal, antecipou-se e, a pretexto de “definir e regulamentar as áreas de preservação permanente ao redor de reservatórios artificiais”, editou a Resolução nº 302, de 20 de Março de 2002, estabelecendo, no artigo 3º, os seguintes limites não previstos em lei, verbis :


Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais situados, medida a partir do nível máximo normal de:

I – trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais;” (grifou-se)

Ora, muito embora louvável o esforço do Conama para a proteção do meio ambiente, ele não poderia ir além de suas competências e, a pretexto de regulamentar áreas de preservação permanente, legislar, redefinir ordenamentos territoriais, criar limites de propriedade, sob pena de desvirtuar a lei que pretendia regular além de desrespeitar o Estado de Direito, finalidade essencial da Constituição Pátria.

Primeiro porque não se encontra, data venia, dentre as atribuições do Conama – órgão consultivo, criado pela Lei Federal 6.938/81 (art. 6º, inciso II) – a de regulamentar lei de forma direta. Nem poderia ser diferente, uma vez que o Poder Regulamentar é da competência do Presidente da República, conforme o disposto no artigo 84, IV, da Constituição Federal. Trata-se do mesmo entendimento do especialista em assuntos ambientais PAULO DE BESSA ANTUNES, in Direito Ambiental, 7ª edição, Ed. Lumen Juris, p. 577, verbis :

“É evidente que o Código Florestal somente pode ser regulamentado por decreto presidencial e, jamais, por mera Resolução de um órgão administrativo de assessoramento ao Presidente da República, como é o Conama, tal qual definido no artigo 6º, II da Lei nº 6.938/81.”

Mas ainda que se reconhecesse ao Conama competência para regulamentar diretamente lei, ad argumentandum, não poderia tal órgão inovar a própria lei que diz regulamentar.

Resoluções, consoante preleciona DIÓGENES GASPARINI, constituem o meio utilizado por órgãos colegiados para externalizar e instrumentalizar suas deliberações em assuntos da respectiva competência ou sobre o próprio funcionamento (in Direito Administrativo, 1989, Saraiva, p. 76.). Segundo HELY LOPES MEIRELLES, “são atos administrativos normativos expedidos pelas autoridades do Executivo (mas não pelo Chefe do Executivo, que só deve expedir decretos) ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica. Por exceção, admitem-se resoluções individuais. As resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente complementá-los e explicitá-los. Seus efeitos podem ser internos ou externos, conforme o campo de atuação da norma ou os destinatários da providência concreta.”: (in Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 25ª edição, 2000, p. 172.)

Noutras palavras, a norma infralegal com finalidade regulamentar presta-se somente à fiel execução da lei, ex vi art. 84, IV, da Constituição Federal, não lhe cabendo inovar ou criar obrigações e direitos. Se isto ocorre, nenhum efeito pode legitimamente produzir em relação aos administrados.

Daí a flagrante ilegalidade da Resolução Conama 302/02, que alterou pura e simplesmente o Código Florestal, estabelecendo metragem não prevista no texto da lei.

Além disso, os dispositivos da Resolução Conama 302/02 também são ilegais por terem invadido competência constitucional dos Estados para legislar sobre florestas ou proteção ao meio ambiente (CF, art. 24, VI), e dos Municípios, para os quais foram outorgados poderes para legislar supletivamente às normas federais e estaduais e de interesse local (CF, art. 30, I e II, cc. Código Florestal, art. 2º, parágrafo único).

Tem mais. Como é cediço, cumpre à Administração Pública observar, dentre outros aspectos, o princípio da legalidade estrita, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal. É o que ensina CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, in Curso de Direito Administrativo, 10ª ed., Malheiros, pag. 201 :

“É livre de qualquer dúvida ou entredúvida que, entre nós, por força dos arts. 5º, inciso II, 84, IV, e 37, da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõe obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer : restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta senão estiver previamente delineada, configurada, e estabelecida em alguma lei” (op. cit., página 205).

Nessa linha de raciocínio, a lei revela seu verdadeiro sentido : expressão máxima da vontade social, elaborada por seus representantes regularmente legitimados. A partir desta premissa, aliás, já se chegou a afirmar que “a lei é a alma da sociedade” (Jean-Jacques Rousseau – “O Contrato Social”).

Foi assim, com alicerce na Constituição Federal, que o legislador civil de 2002 previu expressamente sobre o direito de propriedade, verbis :


“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e d por da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que seja preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”

Assim, não bastassem a incompetência do Conama, a ilegítima inovação daquilo que diz regulamentar, além da usurpação do poderes legislativos dos Estados e Municípios, o artigo 3º da Resolução Conama 302/02 limitou o direito de propriedade, ofendendo, ao mesmo tempo, o princípio da legalidade insculpido na Constituição Federal (art. 5º, II) e o Código Civil, norma legal e hierarquicamente superior. É, ao mesmo tempo, inconstitucional e ilegal.

Também são facilmente identificadas as ilegalidades do artigo 2º, que inovou e redefiniu o ordenamento territorial, criando uma nova figura denominada “Área Urbana Consolidada”. Diz o referido artigo, verbis :

“Art. 2º Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições:

(…)

V – Área Urbana Consolidada: aquela que atende aos seguintes critérios:

a) definição legal pelo poder público;

b) existência de, no mínimo, quatro dos seguintes equipamentos de infra-estrutura urbana:

1. malha viária com canalização de águas pluviais;

2. rede de abastecimento de água;

3. rede de esgoto;

4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública;

5. recolhimento de resíduos sólidos urbanos;

6. tratamento de resíduos sólidos urbanos;

c)- densidade demográfica superior a cinco mil habitantes por km².”

Por primeiro, o próprio parágrafo único do artigo 2º, do Código Florestal – frise-se, a quem a Resolução Conama 302/02 diz ter regulamentado – dispõe que áreas urbanas são “as compreendidas nos perímetros urbanos definidas por lei municipal e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas”.

Exatamente porque, como visto, as resoluções devem ser editadas para fiel execução das leis, não poderia o inciso V, do artigo 2º, da Resolução em questão inovar e dizer o que é e o que não é área urbana.

Além disso, o Conama não poderia sequer estabelecer quais os critérios necessários para uma área ser considerada urbana ou rural, muito menos se consolidada ou não, sob pena de usurpar os poderes constitucionais conferidos ao Município. Isso porque a definição das zonas urbanas, de expansão urbana, ou de urbanização específica devem ser feitas no plano diretor ou por lei municipal (CF, art. 30, VIII, cc. art. 182).

Outrossim, pelos ditames do artigo 2º, V, da Resolução Conama 302/02, jamais as áreas urbanas serão expandidas. Como criar uma área de expansão urbana com todos aqueles requisitos? Como criar, por exemplo, uma área urbana que já tenha “densidade demográfica superior a cinco mil habitantes por km²”? Ou seja, o Conama quer viver no imobilismo, o que também afronta a Constituição Pátria.

Por fim, deve ser dito, por incrível que pareça, que, além de inovar, legislar, limitar o direito de propriedade, usurpar os poderes de Estados e Municípios e definir sponte propria o ordenamento territorial, ainda assim, o “legislador” do Conama conseguiu deixar uma lacuna no que se refere à faixa de preservação permanente ao redor de reservatórios artificiais.

O artigo 3º da Resolução é claro: “trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais”. Mas e quanto às “áreas urbanas não consolidadas”?

Rural essa área não é, e a Resolução não presumiu isso. O “legislador” do Conama simplesmente silenciou quanto à metragem aplicada à áreas urbanas “não consolidadas”. Isso, de uma vez por todas, serve para demonstrar a patologia jurídica criada pelo respeitado Conama.

Para suprir essa lacuna, talvez a melhor solução seja a aplicação do limite de 15m (quinze metros) previsto na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79, art. 4º, III) ou o limite de 30m (trinta metros), exatamente o mínimo previsto no Código Florestal para as águas correntes.

Não se pode, contudo, aceitar que o Poder Executivo simplesmente se sobreponha às leis, afrontando a ordem jurídica democrática, muito embora sempre louvável a intenção de proteção ao meio ambiente.

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