Ato inexistente

"Sentença de juiz subornado deve ser desconsiderada."

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22 de janeiro de 2004, 12h03

As sentenças absolutórias com trânsito em julgado que comprovadamente foram prolatadas favoravelmente aos acusados mediante corrupção são válidas? Essa e outras questões surgiram com as recentes notícias envolvendo a venda de sentenças por magistrados.

Tais sentenças estão acobertadas pela coisa julgada material, portanto, impossível a sua modificação tendo em vista não vigorar no sistema penal brasileiro a revisão pro societate?

A soberania da coisa julgada material em relação às sentenças penais absolutórias deve prevalecer, mesmo em face da insegurança jurídica causada por decisões “compradas”?

Como se vê, são muitas as dúvidas que surgem. Aparentemente, seguindo posicionamento da doutrina e da jurisprudência, a resposta mais apropriada seria a imutabilidade da sentença, tendo em vista a proibição da revisão pro societate, o princípio do favor rei e do favor libertatis.

Entretanto, com todo o respeito que merecem os doutrinadores que seguem tal raciocínio, discordamos, entendendo que, caso fique cristalinamente comprovado que uma sentença absolutória foi proferida em virtude de suborno, o processo é inexistente, não havendo então, de se falar em coisa julgada material.

Não queremos nem pretendemos polemizar. Apenas temos a intenção de abordar um tema tão presente na atualidade com uma visão diferente da predominante.

Primeiramente, faremos um breve comentário a respeito das nulidades do processo, as relativas e as absolutas.

As primeiras, se não alegadas em momento oportuno, precluem, e são sanadas pela marcha processual.

Já as nulidades absolutas não precluem jamais, ou melhor, apenas podem ser consideradas sanadas após o trânsito em julgado quando absolutória a sentença, pois, se condenatória, tal nulidade pode ser alegada ainda, em sede de Revisão Criminal.

Daí surge a grande problemática, a sentença penal absolutória proferida por juiz corrompido é causa de nulidade absoluta, sendo que não argüida até o trânsito em julgado pela acusação, não pode jamais ser revista? Ou, como nós entendemos, trata-se de ato inexistente, por tal motivo não faz coisa julgada material?

Ada Pelegrinni, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes na obra “As Nulidades no Processo Penal”, ao comentar sobre a inexistência da sentença nos casos de incompetência constitucional ensina que “a coisa julgada exerce o papel de sanatória geral dos atos nulos, e até dos inexistentes praticados nos processo, antes da sentença. Não haverá, assim, possibilidade de desconstituir a coisa julgada que tenha favorecido o réu. Mas, em se tratando de sentença inexistente, esta simplesmente não transitaria em julgado, sendo nenhuma sua eficácia. Poderia o vício ser declarado pro societate, formulando a acusação nova pretensão punitiva e, na argüição de coisa julgada oferecida pela defesa, argumentar com a não-ocorrência desta, por ser a sentença inexistente?

Não. Em se tratando de processo penal, o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis.”

Em que pese o brilhantismo costumeiro da argumentação dos ilustres doutrinadores entendemos contrariamente. Sendo a sentença proferida por juiz corrompido, não houve relação processual existente, por falta de pressuposto processual, conseqüentemente a sentença não existe, não se falando em coisa julgada.

A doutrina define como pressuposto processual as exigências legais sem cujo atendimento o processo, como relação jurídica, não se estabelece ou não se desenvolve validamente, sendo que os pressupostos processuais classificam em pressupostos de existência, de desenvolvimento válido e de regularidade.

Dentro dos pressupostos de validade do processo destacamos a imparcialidade do juiz, princípio este, não expressa mais implicitamente previsto na Constituição Federal.

Ada Pellegrine Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco na obra “Teoria Geral do Processo” ensina que: “o caráter da imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e acima delas. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente”.

A imparcialidade do juiz é a maior garantida dos cidadãos contra o arbítrio e a impunidade, e a demonstração clara que o Judiciário não faz distinção de classe social, cor ou qualquer outra, como previsto na própria Carta Política.

Alexandre de Moraes ao comentar o princípio do juiz natural, conceitua assim a imparcialidade: “a imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis.”

Pois bem, comprovando-se que o magistrado prolator da sentença absolutória agiu com parcialidade, ou seja, foi corrompido, e em troca proferiu uma sentença favorável ao corruptor, entendemos não ter existido validamente o processo, pois, o mesmo iniciou-se em confronto com princípios básicos constitucionais e processuais.

Não bastasse a afronta ao princípio da imparcialidade do juiz, uma sentença proferida através de suborno fere ao nosso ver o art. 5º “caput” da Constituição Federal, que dispõe que todos são iguais perante a lei sem qualquer distinção.

Se aceitarmos que uma sentença absolutória proferida através de recebimento de propina, seria causa apenas de nulidade absoluta, sanável após o trânsito em julgado (pois não há revisão pro societate), estaremos frente a uma insegurança jurídica e social incomparável, pois, além de ferir o princípio da imparcialidade, fere-se também o princípio da isonomia, do devido processo legal e um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, prevista no inciso I, art. 3º da Constituição Federal, qual seja, construir uma sociedade livre, justa e solidária, pois, nem todos serão iguais perante a lei, pois os corruptores teriam a seu favor uma “Justiça”, diferenciada, mais benéfica, frente àqueles que não se valem de tais artifícios, e também, não se estabeleceria uma sociedade justa como previsto na Carta, pois as decisões não estariam embasadas em aspectos legais e justos e sim financeiros e imorais.

É muito tênue a distinção entre ato inexistente e nulidade absoluta, pois conforme Paulo Sergio Leite Fernades na obra “Nulidades no Processo Penal”, o art. 564 do CPP não faz a distinção, apenas o Anteprojeto do Prof. Helio Tornaghi separava as nulidades dos atos inexistentes assim dispondo: “consideram-se inexistentes os atos ou negócios jurídicos aos quais falta elemento por lei considerado essencial.”

Entretanto, entendemos que no caso de suborno não se trata de ato nulo e sim inexistente, pois, no rol dos casos de impedimento e suspeição previstos nos arts. 252 e 254 do CPP, não há disposição sobre suborno ou gratificações, diferentemente do CPC, que no art. 135, IV, que expressamente dispõe que é causa de parcialidade do juiz receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo.

Desta forma, mesmo constando no inciso I, do art. 564 do CPP o suborno como causa de nulidade, entendemos tratar a sentença proferida por juiz subornado de ato inexistente, tendo em vista que a imparcialidade do juiz não é garantida apenas das partes envolvidas no processo e sim da sociedade, que tem no Poder Judiciário a certeza da não impunidade e de justiça.

Mas não é só. Há previsão constitucional do devido processo legal, e esse princípio inicia-se com um juiz imparcial, pois se assim não for, não se estabelece validamente a relação processual por falta de pressuposto processual. Antonio Scarnance Fernandes na obra “Processo Penal Constitucional”, assim nos ensina: “entre nós a denominação mais utilizada é a do juiz natural. É com essa garantia que fica assegurada a imparcialidade do juiz, vista não como atributo do juiz, mas como pressuposto da própria existência da atividade jurisdicional. Com isso, a garantia não é mais enfocada em face do conceito individualista de garantia da parte, mas como garantia da própria jurisdição.”

A doutrina nos ensina, como exemplo clássico de ato inexistente, a sentença proferida por quem não esteja investido como juiz, ora, o mesmo vício constitucional que se apresenta numa decisão proferida por quem não é juiz, entendemos existir no caso de juiz subornado, pois, apesar de estar devidamente investido, lhe falta uma condição subjetiva essencial, a imparcialidade.

Ada Pellegrine Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco na obra já citada ao descrever os princípio inerentes à jurisdição diz: “o princípio do juiz natural, assegura que ninguém pode ser privado do julgamento por juiz independente e imparcial, indicado pelas normas constitucionais e legais.”

Como parte devemos entender não só o réu ou acusado, mas a sociedade como um todo representada nas ações penais públicas pelo órgão do Ministério Público.

O Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo em acórdão prolatado pelo então juiz Celso Limongi assim dispõe: “se falta ao juiz jurisdição, a sentença não é nula e sim inexistente. Onde não há jurisdição não pode haver julgamento e o ato, quaisquer que sejam seus característicos e finalidade, é considerado não existente.(RT 582/319)”

Um processo que se inicia sem as garantias mínimas exigidas pela Carta Magna, não pode ser considerado válido, existente, apenas considerado viciado com nulidade absoluta. É muito mais, é um não-ato, algo desconhecido no mundo jurídico, e que não produz nenhum efeito, não se falando por isso, em sua imutabilidade.

O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, e seu art. 8º dispõe que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, corroborando ainda mais, no sentido de que o processo não é considerado existente se em seu comando está juiz imparcial.

É claro que a desconstituição de sentença transitada em julgado em desfavor do réu deve ser interpretada com muito cuidado. Apenas em situações extremamente delimitadas entendemos que é possível esse fenômeno. Na verdade não se trata tecnicamente de desconstituir uma sentença absolutória, pois, por entendermos tratar-se de ato inexistente este, não se desconstitui, apenas se desconsidera, como já decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo – RJTJESP 54/319, Rel. Azevedo Franceschini : “Para poder ser anulado, é necessário que o ato processual juridicamente exista. Ato juridicamente inexistente, pura e simplesmente haverá de ser desconhecido, sem necessidade de qualquer prévia e oficial declaração de sua inanidade.”

O tema referente a possibilidade de modificação de sentenças transitadas em julgadas favoráveis ao réu, realmente é polêmico, entretanto, não é tão novo, tendo em vista que a celeuma já se estabeleceu nos casos de extinção da punibilidade pela morte do agente previsto no art. 107, I do Código Penal, em que após o transito em julgado da decisão, verificou-se tratar de certidão de óbito falsa.

O Supremo Tribunal Federal, no HC 60.095-6-RJ, se manifestou no sentido de que não ofende a coisa julgada o desfazimento da decisão que admintindo por equívoco a morte do agente, declarou extinta a punibilidade, sob o argumento de que a sentença prolatada foi inexistente.

Ora, se a mais alta Corte do País entende que a decisão extintiva da punibilidade proferida tendo em vista certidão de óbito falsa, torna o ato inexistente, o que dirá então uma sentença prolatada por juiz subornado?

No caso de certidão de óbito, a decisão foi prolatada por juiz competente, imparcial, com respeito a todos os preceitos constitucionais, ocorrendo apenas um equívoco, que poderia ser facilmente constatado, qual seja, o não falecimento do réu. O que dirá então, no caso de sentença proferida por juiz imparcial, em procedimento que feriu pressupostos processuais, princípios e garantias constitucionais, em que a constatação da corrupção não é de fácil verificação?

Assim concluímos que: a sentença proferida por juiz subornado é um ato inexistente e não nulo, sendo possível nova pretensão punitiva face ao réu por não se tratar de revisão pro societate; há falta de pressuposto processual de validade nos processos em que atua juiz subornado; fere-se o art. 3º, I, art. 5º caput e LIV da Constituição Federal e o art. 8º do Pacto de San Jose; ato inexistente é um não-ato, assim não precisa ser declarado apenas desconsiderado.

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