J'Accuse

Ali Mazloum, assim como Alfred Dreyfus, pode ser inocente.

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29 de dezembro de 2004, 14h30

O capitão do Exército Alfred Dreyfus foi acusado de ter acobertado ações de inimigos do Estado em 13 de outubro de 1894. O juiz Ali Mazloum foi acusado de integrar uma quadrilha de manipulação de inquéritos policiais em 13 de outubro de 2004. A primeira defesa do capitão foi o artigo “J’Accuse”, de Émile Zola, publicado no jornal “L’Aurore”.

A primeira defesa do juiz foi do desembargador aposentado Américo Lacombe, em 13 de abril, na Folha. Zola tinha 57 anos na época; Lacombe, 67 anos, mas a idade saiu, por engano, como 57. A principal testemunha de defesa de Dreyfus foi o grande rabino da França Zadoc Kahn. A principal testemunha de Mazloum é a procuradora federal Karen Kahn. E há enorme possibilidade de que, assim como Dreyfus, Mazloum seja inocente.

O juiz foi apanhado pelo vendaval da Operação Anaconda, um marco na história das investigações do país, devido a um grampo, no qual teria feito ameaças a três policiais rodoviários para que lhe entregassem a íntegra de uma escuta telefônica, realizada em Brasília, sobre o empresário Ari Natalino, um dos mentores da chamada “máfia dos combustíveis”.

O caso estava sob sua jurisdição. Mazloum havia solicitado escutas telefônicas em cinco Estados, decretou a prisão de Natalino em fevereiro de 2003 e, em agosto do mesmo ano, condenou-o a quatro anos de prisão.

Pressões vieram de todos os lados, inclusive do deputado federal Luiz Antônio Medeiros (PL-SP), que foi ao STJ pedir o afastamento de Mazloum. Depois, descobriu-se que uma das empresas de Natalino figurara como financiadora da campanha de Medeiros.

No dia 4 de setembro, o Ministério Público enviou uma fita sobre Natalino, fruto de grampo autorizado por um juiz de Brasília. A interceptação dos telefones incriminava o delegado Alexandre Creniti, cuja prisão temporária havia sido determinada por Mazloum. Só que a escuta tinha durado dez meses, e Mazloum só recebeu trechos selecionados de uma semana. Solicitou todo o material para análise, assim como a procuradora Kahn, que oficiou ao procurador federal Guilherme Schelb e ao juiz de Brasília. Nada conseguiram.

Como os policiais rodoviários insistissem em não enviar a íntegra da escuta, Mazloum telefonou a um deles exigindo o material. Essa ligação, interceptada, foi tratada como abuso de autoridade pelo inquérito da Operação Anaconda e tentativa de acobertamento de suspeitos.

Depois que Mazloum foi afastado, o juiz que lhe sucedeu constatou a existência dos grampos ilegais e oficiou ao juiz de Brasília. O procurador Cristiano Valois de Souza, que sucedeu a Kahn, conseguiu mais elementos. Quando as investigações caminhavam, o inquérito foi trancado no Tribunal Regional Federal de São Paulo por uma liminar impetrada por dois procuradores federais regionais, Mário Luiz Bonsaglia e Marcelo Moscogliato.

Está na hora de abrir as cortinas e mostrar o que está acontecendo. Pode ser apenas excesso de zelo, desejo de não macular a Operação Anaconda com um erro clamoroso. Pode ser algo mais grave. E, provavelmente, existe um inocente sendo massacrado, sem direito a defesa.

*Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo

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