Lei de Falências

Anamatra quer que Lula vete dispositivo da Lei de Falências

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16 de dezembro de 2004, 17h26

A limitação de 150 salários mínimos para pagamento de dívidas trabalhistas está sendo duramente criticada pela Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra). O dispositivo faz parte da nova redação dada para a Lei de Falências, aprovada pela Câmara dos Deputados esta semana.

Atualmente, as dívidas trabalhistas são prioridade na escala de pagamentos das empresas que entram em falência. A nova lei mantém a prioridade para esse tipo de pagamento, mas limita os débitos trabalhistas a 150 salários mínimos.

O presidente da Anamatra, Grijalbo Fernandes Coutinho, quer que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete esse ponto da lei. Para ele, o dispositivo contraria a trajetória política de Lula e fere o princípio jurídico da proteção ao trabalhador. “É necessário priorizar os créditos trabalhistas, sem limite de valor, em relação às outras dívidas das empresas em processo de falência”, afirma.

Apesar da reclamação da Anamatra, especialistas da área ouvidos na última quarta-feira (15/12) pela revista Consultor Jurírico elogiaram a mudança por entender que, atualmente, a falta de limites para o pagamento de dívidas trabalhistas faz com que outros credores burlem a lei transformando seus créditos em créditos trabalhistas.

No entanto, o presidente da Anamatra avalia que o limite de 150 salários mínimos “amesquinha a natureza dos créditos trabalhistas”. Ele propõe que seja mantido o caráter privilegiado do crédito trabalhista, inclusive o decorrente de acidente de trabalho e o do FGTS, sem qualquer limitação quantitativa.

Leia o ofício da Anamatra

OFÍCIO ANAMATRA No 614/2004

ASSUNTO: VETO À DISPOSITIVO DA LEI DE FALÊNCIAS (SOLICITA)

Brasília, DF, 16 de dezembro de 2004

Senhor Presidente da República,

Ao ensejo da aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto da nova Lei de Falências, da Recuperação Judicial e da Recuperação Extrajudicial, dirigimo-nos a Vossa Excelência para reafirmar o propósito da ANAMATRA de contribuir serena e democraticamente com o debate das relevantes questões que se colocam em torno das relações de trabalho e do destino dos créditos trabalhistas no processo falimentar e de recuperação das empresas, e para solicitar o VETO PRESIDENCIAL a dispositivos da Lei que caminham na contramão da história política de Vossa Excelência e ainda ferem o princípio jurídico da proteção ao trabalhador.

Tem sido louvável a atitude do Governo Federal e do Partido dos Trabalhadores de incentivar e conseguir a aprovação da referida proposta, que se arrastava há quase 11 anos pelo Congresso Nacional, uma vez que o espírito da referida proposição corrige o sentido da “lei de quebras” ao buscar meios de recuperar efetivamente as empresas com dificuldades financeiras, ao invés de simplesmente fixar normas para o encerramento das atividades.

O sucesso desta ação de governo e o resultado final da votação, todavia, impelem a Magistratura Trabalhista brasileira a externar sua preocupação quanto a alguns dispositivos da proposição que simplesmente eliminam a histórica garantia da preferência do crédito alimentar do trabalhador.

A intenção de privilegiar o mercado em detrimento do ser humano estabelece-se com base em uma lógica perversa, que deve ser revertida para dar ao crédito do trabalhador a preferência absoluta sobre todos os demais, em nome da função social do trabalho e da efetiva necessidade de proteger o economicamente mais fraco, sem qualquer tipo de limitação, como a seguir será demonstrado.

Nenhuma alteração será justa se transferir para o empregado a responsabilidade pelos eventuais problemas de ordem econômica e financeira enfrentados pelas empresas, considerando que foram discutidas propostas de limitação do valor do crédito trabalhista para fins de preferência, seja na falência, seja na recuperação judicial ou extrajudicial.

A legislação vigente, no campo do Direito do Trabalho (artigo 449, parágrafo 1º , da CLT) e também no Direito Tributário (artigo 186, do CTN), estabelece que os salários devidos ao empregado e a totalidade das indenizações a que tiver direito são créditos privilegiados no processo de falência, precedendo a quaisquer outros, inclusive os de natureza tributária e os de cunho fiscal em sentido mais amplo.

E assim o é porque a prestação possui natureza alimentar, sendo essencial para a subsistência do trabalhador. Ademais, os riscos do negócio pertencem ao empregador, não participando o empregado sequer da saudável repartição de lucros.

Mas essa não é apenas a realidade brasileira, eis que a Convenção N.º 173 da OIT, de 1992, que superou a de N.º 95, protege os créditos trabalhistas em todos os casos de instauração de procedimento relativo aos ativos de um empregador, com vistas ao pagamento coletivo de seus credores.


No Brasil, a classe trabalhadora tem a mão-de-obra remunerada nos patamares mais baixos do mundo e por essa razão e tantas outras, não é socialmente recomendável deixa-la sem qualquer proteção para receber os seus créditos trabalhistas no momento da falência do empregador, dando lugar a credores que não possuem as mesmas necessidades.

Ainda que estejamos vivendo época de extrema desvalorização da força-de-trabalho em função dos novos modos de produção e do crescimento da ideologia neoliberal, responsáveis pela precarização das condições de trabalho, não deve ser usurpado do trabalhador o direito de receber as parcelas reconhecidas pela Justiça do Trabalho, seja através de preferência dada a outro credor, seja por meio da limitação quantitativa defendida pelos potenciais credores do empresário endividado.

Os juizes do trabalho constatam que um dos grandes entraves do processo consiste na sua falta de efetividade, diante do número elevado de possibilidades legais de o devedor postergar o cumprimento da decisão judicial, ou de enveredar-se em desvios do patrimônio. Tais práticas devem ser combatidas, mas a melhor solução para coibi-las é a que se consubstancia na ampliação da pena a ser aplicada a quem incorre nos tipos relativos a crimes falimentares e não no estabelecimento de limite de preferência ao crédito do empregado.

Temos certeza que Vossa Excelência não contribuirá para o aumento de estatística tão dramática e anti-social, vetando todas os dispositivos que visem a limitar o caráter privilegiado dos créditos trabalhistas, inclusive aqueles oriundos da indenização por acidente de trabalho e do FGTS, pois todos inseridos no contexto da relação entre capital e trabalho.

Nem mesmo o argumento de que a medida pretende atingir as eventuais simulações que envolvam diretores-empregados em detrimento dos reais credores guarda consistência jurídica ou coerência com o sentido de justiça, sob pena da exceção suplantar a regra e penalizar a imensa maioria de trabalhadores honestos empregados nas empresas que sofrem processo de falência e de recuperação judicial. Aliás, no particular, qualquer defeito do ato jurídico pode ser atacado com base na legislação vigente. Deve ser registrado que o artigo 19 do projeto ora em discussão (25 no texto originário da Câmara) prevê a exclusão do crédito nos casos de descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude ou erro.

A ANAMATRA ofereceu tais argumentos ao Parlamento através de várias notas técnicas, das quais se pede licença, por fundamental, a transcrição de trecho elaborado pelo Juiz Guilherme Guimarães Feliciano, com o seguinte conteúdo:

“Com relação ao teto para a preferência do crédito trabalhista, é relevante observar que a fixação do limite de 150 salários mínimos — superior à média de indenizações pagas pela Justiça do Trabalho (12 salários mínimos) — funda-se em uma estatística que desumaniza a pessoa trabalhadora, pois inclui as inúmeras conciliações que se consumam todos os dias nas Varas e Tribunais do Trabalho (em que, a bem da satisfação mais expedita, o trabalhador renuncia, não raro, a mais de cinqüenta por cento dos créditos reclamados) e perde-se em uma abstração que não pode ser imposta como regra a todo trabalhador brasileiro, sob pena de vulneração ao princípio da dignidade humana (artigo 1o, III, da CRFB). Se a estatística considerasse não os pagamentos realizados, mas o valor inicial das causas trabalhistas durante o último ano (2003), ter-se-ia quadro significativamente diverso, apontando para lesões de direitos que usualmente superam a marca de R$ 36.000,00 (150 x R$ 240,00). E não se fala, aqui, de executivos e ocupantes de altos cargos, mas de trabalhadores rurais em atividade informal por mais de dez anos (sem registro em CTPS ou recolhimento de FGTS e excluído do direito a férias, trezenos salários, horas extras ou adicionais noturnos), de trabalhadores sujeitos a danos estéticos (que dificilmente serão pagos à conta de “créditos decorrentes de acidente de trabalho”) ou morais (e.g., imputações falsas, assédio sexual e assédio moral) ou de industriários sujeitos a regime horário 12 x 36 por cinco anos ou mais, sem autorização legal ou convencional (supondo-se salário de R$ 1.000,00, fruição de intervalo não computado nas doze horas, excesso diário em relação à 8a hora, adicional de 50% e repercussões contratuais nos demais títulos à base de 30%, chega-se, por simples estimativa, a R$ 1.500,00 : 220h x 1,5 x 4h x 15d x 12m x 5a = R$ 36.818,18 x 1,3 = R$ 47.863,67). Em geral, o limite de 150 salários mínimos só bastará para tantos quanto recebam até o equivalente a 350 dólares por mês (em geral, isentos de imposto de renda), excluindo os trabalhadores de renda média. Nas lesões extraordinárias (como, e.g., em casos de danos morais e estéticos ou de estabilidades convencionais até os prazos mínimos para aposentadoria), desamparará até mesmo os trabalhadores de baixa renda.


“Quanto a esse limite, ademais, importa recordar as ponderações do Parecer ANAMATRA n. 02/2003, no sentido de que a limitação do privilégio dos créditos do trabalhador na falência não se coaduna com o Direito Internacional do Trabalho e contém eiva de inconstitucionalidade. Por tudo isso, é de rigor rever, nessa parte, a preferência limitada a 150 salários mínimos por trabalhador, para suprimir o limite do artigo 83, I, e garantir o privilégio integral dos créditos trabalhistas, nos termos do atual artigo 449, §1o, da CLT, independentemente de sua natureza salarial ou indenizatória (volvendo, assim, à sistemática original do PLC 71/2003, que já havia abolido essa restrição)”.

“Argumenta o relatório que o privilégio irrestrito dos créditos trabalhistas prejudicaria os verdadeiros hipossuficientes, já que teriam de concorrer com empregados do staff empresarial que, sem qualquer traço de hipossuficiência econômica, fizessem jus a indenizações milionárias. Essa é uma visão reducionista da realidade forense. Raramente se vêem hipóteses em que executivos do staff concorrem com trabalhadores comuns nos créditos da massa falida ¾ seja porque são amiúde co-responsáveis pela quebra, seja ainda porque se retiram antes da descapitalização da empresa, por pressenti-la com anterioridade. Ademais disso, o problema resolve-se, no plano da falência, como encaminhado na Nota Técnica ANAMATRA n. 01/2003: propõe-se que os créditos trabalhistas pendentes sejam realizados de modo extraconcursal, sem limites quantitativos, como exceção ao princípio “par condictio creditorum”. Com efeito, essa é a tendência predominante no direito comparado, para os países de tradição romano-germânica que possuem órgãos especializados para o processo e julgamento de causas trabalhistas. É de inteira conveniência que a cognição e a execução das lides trabalhistas dê-se no âmbito da Justiça do Trabalho, de modo que a quitação dos créditos trabalhistas haveria de ser uma condição para o recebimento, processo e julgamento da ação de recuperação judicial (artigo 51), consagrando em definitivo o superprivilégio que historicamente respaldou os créditos trabalhistas e alimentares no Brasil. Nessa esteira, o devedor em estado de crise econômico-financeira haveria de juntar, com a petição inicial, certidão negativa da Justiça do Trabalho, sob pena de indeferimento liminar da petição.”

Em resumo, Senhor Presidente da República, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra, entidade representativa de mais de três mil juizes, propõe a manutenção do caráter privilegiado do crédito trabalhista, inclusive o decorrente de acidente de trabalho e o do FGTS, sem qualquer limitação quantitativa, para que esta fração não passe a ter natureza quirografária, por respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que se dará através do veto à expressão “, limitados a (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor,” constante do art 83, inciso I, que passaria a ter a seguinte redação:

“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho (vetado) e os decorrentes de acidentes de trabalho;”

Certos da preocupação de Vossa Excelência com os anseios da classe trabalhadora e da necessidade de todos defendermos o Direito do Trabalho como instrumento fundamental de resistência à flexibilização e ao neoliberalismo, subscrevemo-nos,

Cordialmente,

GRIJALBO FERNANDES COUTINHO

Presidente da Anamatra

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