Contribuição de inativos

Conheça voto do ministro Eros Grau sobre contribuição de inativos

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31 de agosto de 2004, 19h37

A imunidade dos inativos “corresponderia a um privilégio que não se justifica por referência ao bem comum, como se dá, por exemplo, nos casos da imunidade parlamentar e da imunidade tributária de que gozam reciprocamente União, Estados-membros e Municípios. Ainda que não se tome em conta considerações puramente atuariais na discussão da matéria, não se justifica essa vantagem contra o direito comum”.

O entendimento é do ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, que declarou constitucional o desconto de 11% no pagamento de servidores aposentados e pensionistas. O julgamento no STF sobre a constitucionalidade do desconto foi favorável ao governo, por sete votos a quatro. A decisão, no entanto, foi pelo meio termo. Ao mesmo passo que não afastou a contribuição, aumentou o limite de isenção dos inativos para R$ 2,5 mil.

“Com esteio em todos esses argumentos, rejeito a argüição de inconstitucionalidade e julgo improcedente a ação direta, salvo exclusivamente no que respeita aos incisos do parágrafo único do artigo 4º da EC 41/03”, disse Eros Grau.

Ele foi o segundo a votar e acompanhou o voto de Cezar Peluso tanto na declaração da constitucionalidade da contribuição, quanto na inconstitucionalidade do artigo 4º da Emenda 41.

Leia a íntegra do voto:

V O T O

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU:

Preliminarmente, acompanho o voto da eminente Relatora Ellen Gracie no que tange à legitimidade ativa e ad causam da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP.

2. No mérito, examinarei inicialmente as razões, articuladas na ADIN, segundo as quais o artigo 4o da EC 41/03 violaria o princípio da segurança jurídica, afrontando o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, na proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, bem assim o inciso IV do § 4º do artigo 60 da Constituição do Brasil. Quanto a este último, lembro que a interpretação de um texto normativo demanda duas verificações:

[i] a quem ele se dirige e [ii] qual o comportamento estabelecido. Identifica-se, assim, o destinatário/sujeito e a ação/objeto (1). O inciso IV do § 4o do artigo 60 da Constituição do Brasil veicula regra dirigida ao Poder Constituinte derivado, que é quem não deverá deliberar sobre proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e as garantias individuais. A ação/objeto é não abolir, vale dizer não excluir do texto da Constituição qualquer dos direitos ou garantias individuais, sejam os enunciados pelo artigo 5o, sejam outros mais, como tais qualificados mercê do que o Ministro Carlos Ayres Britto (2)

chama de “interpretação generosa ou ampliativa” das cláusulas

pétreas.

Aqui a regra não incide, pois a emenda constitucional

promulgada não afetou o texto do artigo 5º, inciso XXXVI da

Constituição do Brasil.

O que se alega é que o artigo 4º da EC 41/03 violaria o princípio da segurança jurídica, afrontando o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, na proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Cuida-se de alegada violação a direito, não de sua abolição [= exclusão] do texto da Constituição, no sentido acima indicado.

Em breve nota, observo que, para KELSEN (3), há interpretação autêntica [= criadora de direito] tanto no processo de interpretação/aplicação do direito, todo ele, inclusive a Constituição, empreendido pelo Poder Judiciário, quanto no curso do processo legislativo — quando o legislador interpreta a Constituição.

São diversos os discursos pronunciados em um e outro caso. Nesta ocasião, sem que se torne necessário penetrarmos o debate a respeito do controle da constitucionalidade das emendas constitucionais desde o § 4º do artigo 60 da Constituição do Brasil, âmbito do segundo discurso, cumpre considerarmos o preceito

veiculado pelo artigo 4º da EC 41/03 em face do artigo 5º, inciso

XXXVI da Constituição.

Tenho assim por superado, no caso, o questionamento do

preceito desde a perspectiva do § 4º do artigo 60 da Constituição do

Brasil.

3. Passo a tratar do argumento segundo o qual o artigo 4º

da EC 41/03 afrontaria o disposto no artigo 5º, inciso XXXVI da

Constituição.

O tema dos direitos adquiridos vem desafiando a doutrina e a jurisprudência, muitos suportando contratempos por esquecimento de lições dos mais velhos.

Aqui neste Tribunal deixou-se bem claro, em inúmeros votos do Ministro OROSIMBO NONATO (4), que a Constituição de 1.946, ao contrário da 1.891, não estabeleceu a proibição de leis retroativas, bastando-se em afirmar que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Essas observações cabem qual uma luva à Constituição de 1.988. Os mais atentos sabem que no Brasil, na vigência da Constituição de 1.988, não há vedação da retroatividade das leis senão quando a retroação de uma delas prejudique direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada.


Transpondo para o momento de hoje a objetividade de

FRANCISCO CAMPOS (5), perfeitamente adequada à Constituição de 1.988:

“A Constituição não determina, com efeito, que a lei não deve ser retroativa. O que ela prescreve é que a lei não poderá retroagir em prejuízo de direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada”.

Em outros termos: no Brasil, sob a égide da Constituição de 1.988, a lei é, em princípio, retroativa. Apenas não poderá [prossigo a transcrever FRANCISCO CAMPOS (6)] “alterar as situações jurídicas definitivamente constituídas, retirando do patrimônio público ou privado direito que a ele se tenha incorporado em virtude de fato ou de ato jurídico, ao qual a lei do tempo do seu evento ou da sua realização atribuísse a fôrça de gerar aquêle efeito”.

Adote-se a lição de REYNALDO PORCHAT (7), professor da minha Faculdade de Direito:

“Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer, depara-se um direito adquirido que possa ser lesado, a lei não tem applicação ao caso, porque a retroactividade seria injusta. Quando não se encontra direito adquirido, applica-se a lei, mesmo retroactivamente, porque a retroactividade é justa”.

E prossegue o mestre das Arcadas afirmando que é pelo

reconhecimento da existência ou inexistência do direito adquirido

que se conclui pelo efeito não retroativo ou retroativo de uma lei

nova 8-9.

Fala-se em retroatividade justa e injusta, diz OROSIMBO

NONATO (10):

“[o] limite da aplicação da lei nova é o direito adquirido. Se retroatividade é a violação de direitos adquiridos, o desrespeito aos atos praticados em observância da lei antiga, a destruição da coisa julgada,deve ser inteiramente abolida”.

Por isso mesmo — ainda OROSIMBO NONATO (11) — há autores

que “nem chamam retroatividade à retroprojeção da lei sem ofensa do

direito adquirido, vale dizer, à retroatividade justa”; pois então a

lei se aplica não ao passado, mas a conseqüências novas de relações anteriores; apenas haveria retroatividade quando a lei atingisse

direitos adquiridos. Referindo-me ao critério proposto por MATOS

PEIXOTO (12), de graduação por intensidade da retroatividade, nas

hipóteses de retroatividade média e de retroatividade mínima não

haveria retroatividade.

4. Permito-me, além disso, neste passo, breve digressão.

A tutela estabelecida pelo artigo 5º, XXXVI da Constituição do Brasil colhe situações que se manifestam em três planos: o da existência, o da validade e o da eficácia (13).

No que concerne ao plano da eficácia, a salvaguarda constitucional respeita ao direito adquirido, cujo conceito contempla situações de direito nas quais se verificam os efeitos da situação jurídica. Aqui é necessário apartarmos facta praeterita dos facta futura.

O que, no entanto, interessa bem de perto considerarmos é

a facta pendentia, que encerra o momento presente; nele é que cumpre averiguarmos os efeitos da lei.

5. Valho-me, em linhas gerais, da exposição de PONTES DE

MIRANDA (14), passando porém à margem de disputas teóricas.

O direito funda-se, irradia-se e constitui-se a partir de fator da vontade, da natureza ou da verificação de deveres sancionados por ações que ocorrem em determinado momento. Os efeitos decorrentes do direito assim identificado é que se impõe preservar.

Esses efeitos dependem da lei que vige no momento em que o direito ingressa no plano da existência ou em que se verifica determinada condição ou termo.

Considerada a dimensão temporal do fenômeno jurídico, tais efeitos manifestam-se em três níveis: os efeitos produzidos no passado; os efeitos que serão produzidos no futuro, em situações nas quais a eficácia seja condicionada ou a termo; e os que se produzem de forma sucessiva, no fluir do tempo.

Nos dois primeiros casos verificam-se pontos distintos, tanto ao nível da existência quanto no da eficácia. No último, apresenta-se uma composição linear que principia com a existência válida da situação considerada, de pronto surtindo os efeitos a ela inerentes ou dela decorrentes, até sua extinção. É esse o traço do elemento sucessivo, inerente aos efeitos que se devem produzir.

No último caso, os efeitos produzidos são de natureza

sucessiva, isto é, algo lineal, em vez de punctual, na lição de PONTES DE MIRANDA (15), o que permite possamos identificar com precisão

o tempo em que se produzem.

A lei aplica-se imediatamente aos efeitos que se manifestam nesse período. Trata-se, então, da imediatidade da lei16-17.

Aplicando-se a lei imediatamente, não afetará as

condições de validade de qualquer ato passado, nem alterará as

conseqüências de um direito já realizado18. Não obstante, aplicar-se-á


às situações em curso, vale dizer, atingirá os efeitos [=direitos] que se verifiquem de forma sucessiva.

6. Há mais, porém, a dizer.

Em estudo percuciente e instigador, TEORI ALBINO

ZAVASCKI (19), considerando duas decisões à primeira vista

contraditórias desta Corte — ADI 49320 e MS 21.21621 [indexador com base na variação da Taxa Referencial – TR e revogação do artigo 1º da Lei 7.830/89 pela Lei 8.030/90] — demonstra que na primeira delas prevaleceu um direito previsto em cláusula de contrato contra a lei nova, ao passo que, na segunda, prevaleceu lei nova contra o que dispunha outra lei, a revogada. Daí a proposta de que a matéria do direito adquirido seja ponderada mediante a consideração da natureza

— caráter, diria eu — do ato que deu origem à situação jurídica de que se trate.

Situação jurídica, como a toma LAUBADÈRE (22) — inspirado em DUGUIT23 — é o conjunto de direitos e obrigações de que uma pessoa pode ser titular. Elas podem ser de dois tipos:

[i] as situações jurídicas gerais e impessoais – por vezes denominadas estatutárias ou objetivas, legais ou regulamentares — cujo conteúdo é necessariamente o mesmo para todos os indivíduos que dela são titulares;

[ii] situações individuais ou subjetivas, cujo conteúdo é individualmente determinado e pode variar de um para outro titular; aí o caso, v.g., de um credor, um devedor, um locatário, em que o conteúdo da situação é específico para cada qual, modelando-se pelo ato individual.

Por certo que as situações individuais ou subjetivas jamais se encontram em estado puro, visto que, a par dos aspectos subjetivos individuais oriundos do ato individual que as cria, inevitavelmente comportam alguns elementos fixados por disposições gerais (24).

A exposição de LAUBADÈRE é sintetizada por CELSO ANTONIO

BANDEIRA DE MELLO (25), que enfatiza a circunstância de essa distinção, como sustenta o administrativista francês, dizer respeito ao

problema da modificabilidade das situações jurídicas:

“[e]nquanto nas situações gerais as alterações se

aplicam de plano, alcançando os que nela estão

investidos, as situações individuais e subjetivas

permanecem intangíveis, intactas” (26).

A distinção fornece o critério para solução do problema da aplicação da não-retroatividade das leis (27). No mesmo sentido, aliás, JOÃO BAPTISTA MACHADO (28), de cuja exposição se vale GILMAR FERREIRA MENDES (29), apartando o “estatuto contratual” [ou “pessoal”] do “estatuto legal” [ou “real”].

7. Isso explica aparente, mas apenas aparente, contradição

entre as posições assumidas pelos Ministros MOREIRA ALVES e CELSO DE MELLO no julgamento da ADI 493 e do MS 21.216.

No primeiro caso considerou-se o ato jurídico perfeito em

situação individual, subjetiva ou contratual; no segundo, o direito

adquirido em situação geral, estatutária, institucional, afastandose

a incidência do preceito constitucional inscrito no art. 5º,

XXXVI.

O que é relevante para os fatos, como enfatiza OSWALDO

ARANHA BANDEIRA DE MELLO, é a imediata alterabilidade das situações gerais e a intangibilidade das situações individuais (30).

8. A ponderação dos critérios acima explorados — facta

praeterita/facta futura/facta pendentia e situações individuais/situações estatutárias ou institucionais — permitirá a superação da complexidade da matéria.

Tratando do tema, em determinado ponto de sua exposição indaga CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (31):

“Teria sentido alguém pretender se opor à alteração das regras do imposto de renda, argüindo direito adquirido àquelas normas que vigiam à época em que se tornou contribuinte pela primeira vez? Teria sentido invocar direito adquirido para obstar a aplicação de novas regras concernentes ao serviço militar, argumentando que o regime vigorante era mais suave quando o convocado completou 18 anos? Acaso poderia um funcionário, em nome do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito, garantir para si a sobrevivência das regras funcionais vigentes ao tempo em que ingressou no serviço público, quais as concernentes às licenças, adicionais etc.? Seria viável alguém invocar direito adquirido a divorciar-se, se a legislação posterior a seu casamento viesse a extinguir este instituto jurídico? Ou,

reversamente, teria direito adquirido à indissolubilidade

de vínculo se lei nova estabelecer o divórcio?”

Min. Nelson Jobim: A citação do Professor Celso Antônio é

do parecerista ou do escritor?

Min. Eros Grau: Está no ‘Ato administrativo e direito dos

administrados’. Não no parecer.

Min. Nelson Jobim: Obrigado.

Min. Carlos Britto: É obra acadêmica.


Min. Eros Grau: A situação dos aposentados, agora digo eu, a situação dos aposentados e pensionistas é institucional e, de resto, os efeitos que no caso cumpre considerarmos verificam-se de forma sucessiva. O direito adquirido que afirmam os autores seria direito à “imutabilidade de um certo regime jurídico”.

O artigo 4º da EC 41/03 aplica-se imediatamente sobre tais efeitos.

Retorno a CELSO ANTÔNIO (32):

“É nítido o discrímen entre ambas as espécies de situações jurídicas e igualmente nítida a imediata aplicação das modificações que incidam sobre as situações gerais, ao contrário do que se passa com as subjetivas”.

9. Essa conclusão é inteiramente coerente com o entendimento reiteradamente adotado por este Tribunal, no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico (33). Por todos, o que afirmou MOREIRA ALVES no RE 226.85534:

“… em se tratando de direito público com referência a regime jurídico estatutário, não há direito adquirido a esse regime jurídico, como sempre sustentou esta Corte, e isso porque pode ele ser alterado ao arbítrio do legislador. Não fora isso, e todos os que ingressarem no serviço público sob a égide de lei que estabeleça que, se vierem a completar trinta e cinco anos, terão direito à aposentadoria, esse direito para eles será um direito adquirido sob a condição de completarem esses 35 anos de serviço público, o que jamais alguém sustentou”.

Permito-me retornar, neste ponto, à proficiente exposição

de GILMAR FERREIRA MENDES (35), acima mencionada, onde colho a observação de que a proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito não obstam a modificação ou a supressão de determinado instituto jurídico. Na ementa do RE 226.85536 se pode ler, com todas as letras:

“(…) O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser

disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico”.

De mais a mais, não cabe a alusão, no caso, a ato jurídico perfeito, porque na hipótese trata-se de efeitos, ou seja, de direitos irradiados de uma situação institucional, na qual o papel da vontade é nenhum.

Aposentados e pensionistas são titulares de direito adquirido a perceber aposentadorias e pensões, mas não ao regime jurídico de umas e outras [RE 92.232-6, rel. Min. MOREIRA ALVES – DJ

de 09.05.80].

Não há afronta, no caso, ao disposto no artigo 5º, XXXVI da

Constituição do Brasil.

10. Note-se que existem precedentes específicos a serem considerados. A incidência de contribuição para o custeio da previdência social sobre os proventos dos servidores públicos inativos foi apreciada, em sede de medidas cautelares, nas ADIs

1.441 [RTJ 166/890] e 1.430 [RTJ 164/98]. O Pleno desta Corte as indeferiu.

11. No que concerne ao argumento da irredutibilidade dos proventos, acompanho o voto da eminente Relatora, na trilha também do RE 70.009 (Rel. p/ o acórdão o Min. Xavier de Albuquerque, Plenário, julg. em 29.11.1973) e da ADIMC 2.010 (rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgada em 11.03.2004).

Afasto também a alegada ofensa ao artigo 194, IV da Constituição do Brasil.

12. O fato é que as situações jurídicas dos inativos, aposentados e pensionistas são dotadas de caráter institucional. Os direitos e obrigações de que são titulares não decorrem de ato de vontade, porém da lei.

Permito-me recorrer, neste passo, ao voto do Ministro CELSO DE MELLO no RE 116.683:

“A Administração Pública, observados os limites ditados pela Constituição Federal, atua de modo discricionário ao instituir o regime jurídico de seus agentes e ao elaborar novos Planos de Carreira, não podendo o servidor a ela estatutariamente vinculado invocar direito adquirido para reivindicar enquadramento diverso daquele determinado pelo Poder Público, com fundamento em norma de caráter legal.”

13. Passo a cogitar do argumento construído em torno da caracterização da contribuição previdenciária como tributo.

Essa contribuição é, efetivamente, um tributo, o que ninguém contesta [v.g., RE 146.733, RTJ 143/684]. Aliás, no julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.01037, assentou-se que “não

assiste ao contribuinte o direito de opor, ao Poder Público,

pretensão que vise a obstar o aumento de tributos — a cujo

conceito se subsumem as contribuições de seguridade social (RTJ

143/648 e RTJ 149/654)”.

Tributo aplica-se imediatamente, como acaba de demonstrar o Min. CEZAR PELUSO. Há aqui, no entanto, dois aspectos a serem considerados.

14. O primeiro diz com seu fato gerador, a percepção de uma determinada parcela dos proventos e pensões (cf. o parágrafo único do artigo 4o da EC 41/03).


O parecer acostado aos autos, do eminente Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA, afirma tratar-se, no caso, de uma contribuição sem causa [finalidade], incidente sobre certa categoria de pessoas, do que decorreria a sua caracterização como “tributo de capitação”.

Não haveria, na contribuição, relação de causa ou fato gerador material. Isso, porém, não ocorre. A contribuição não é devida simplesmente à existência da pessoa. Tem como fato gerador, como se lê no parágrafo único do artigo 4o da EC 41/03, a percepção de determinada parcela de proventos e pensões. Daí, com as devidas vênias ao eminente mestre, não ser correta a afirmação de que se tributa aposentados por serem aposentados.

A ser assim diríamos que a contribuição previdenciária é cobrada do empregado porque ele é empregado; que é cobrada da empresa porque ela é empresa. Estaríamos — estamos — diante de um jogo de palavras. A tributação se dá em decorrência da verificação do seu

fato gerador.

15. Ademais, tenho como indispensável, no caso, não confundirmos a causa — e “causa” é vocábulo utilizado por JOSÉ AFONSO DA SILVA não no sentido que assume na teoria do negócio jurídico, mas como razão de ser, finalidade, à moda de von JHERING (38)

— não confundirmos a causa da contribuição com o seu fato gerador.

A causa [= razão de ser da contribuição], segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, seria a referibilidade direta da contribuição a uma atuação concreta-atual ou potencial do Estado. Após a aposentadoria não haveria mais razão de ser [= causa] para a contribuição. Não obstante, nas situações institucionais, a causa é moldada, conformada pela lei, reside na lei — no caso, por emenda à Constituição, nessa emenda constitucional. E razão de ser para ela há, como será visto mais adiante.

O que explica a confusão entre o fato gerador e a causa [= finalidade] da contribuição é a circunstância de o primeiro ser o provento ou a pensão e a segunda ser o benefício — assim designado pela Lei n. 8.213/91 — gênero no qual incluídas as aposentadorias e pensões.

Isso compreendido, poderíamos dizer que, no caso dos inativos, o fato gerador é a percepção do benefício; a causa [= razão de ser da contribuição], o provento ou a pensão. Mas isso não autoriza a conclusão de que, alternativamente, ou não existe a causa, ou não existe o fato gerador. A emenda constitucional poderia, como o fez, eleger a percepção do provento ou da pensão como hipótese de incidência da contribuição.

16. De outra banda, o fato gerador material efetivamente existindo, sustenta-se que não se teria, então, uma contribuição previdenciária, mas um bis in idem de caráter discriminatório. Anoto parenteticamente o fato de, equivocadamente, indicar-se como preceito constitucional violado o artigo 155, § 2º, I, que trata de outra matéria.

Retomando porém o fio da minha exposição, lembro, quanto

ao bis in idem, a observação do Min. ALIOMAR BALEEIRO (RE 77.131, DJ 06.11.1974]:

“… no Brasil, o bis in idem, no sentido de decretação do mesmo imposto duas vezes pelo governo competente, pode ser constitucional em muitos casos, ainda que represente, quase sempre, uma política

legislativa má” (39).

Não há óbice jurídico, porém, à opção por essa política.

O que o artigo 154, I da Constituição proíbe é a instituição, pela União, mediante lei complementar — não por emenda constitucional — no exercício de competência residual, de impostos cumulativos e que tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição. Ora, imposto instituído por emenda constitucional é imposto discriminado na Constituição.

A admitir-se que a Emenda Constitucional 41/03 contempla

bis in idem, nada mais estaria a fazer senão a insistir em política

de incidência da própria contribuição previdenciária e do imposto de

renda sobre o lucro do empregador (artigo 195, I, c e 153, III da

Constituição do Brasil).

17. Afasto também a alegação de confisco [artigo 150, IV da

Constituição], aliás não demonstrada. A entender-se que os inativos estariam gravados por um tributo confiscatório seríamos forçados a sustentar que os servidores ativos estariam também onerados pelo mesmo efeito, visto serem contribuintes da contribuição previdenciária.

18. O que há, na hipótese, é relação institucional, adstrita a normas cogentes de Direito Administrativo, sendo perfeitamente possível a revisão de suas regras, a fim de resguardar-se o interesse público e a continuidade da prestação por parte do Estado. É no quadro desta relação que haveria de ser considerada a referibilidade direta da contribuição a uma atuação concreta-atual ou potencial do Estado.

19. O segundo aspecto diz com a afirmação de que, embora a contribuição seja um tributo, sua incidência sobre aposentadorias e pensões importaria quebra de sinalagma. Não é, porém correta a suposição de que a relação previdenciária seja dotada de caráter sinalagmático.


O sinalagma é, na síntese de TRABUCCHI (40), o liame recíproco que existe em alguns contratos, entre a prestação e a contraprestação (obligatio ultro citroque). Contratos sinalagmáticos caracterizam-se pela circunstância de a prestação de cada uma das partes encontrar sua justificativa e seu fundamento na prestação da contraparte [do ut des, do ut facias, facio ut facias, facio ut dês] (41).

Essa ligação funcional entre as duas prestações — que

assume relevância tanto no momento da conclusão do contrato

[sinalagma genético] quanto no momento da sua execução [sinalagma

funcional] (42) — é típica dos contratos onerosos (43), nos quais, na

dicção de MOTA PINTO (44), “cada uma das prestações ou atribuições patrimoniais é o correspectivo (a contrapartida) da outra, pelo que, se cada parte obtém da outra uma vantagem, está a pagá-la com um sacrifício que é visto pelos sujeitos do negócio como

correspondente”.

Mas o sinalagma não significa real e objetiva equivalência entre prestação e contraprestação, sendo possível — ainda a dicção de MOTA PINTO (45) — a “falta de equivalência objetiva ou usual das atribuições patrimoniais”. E prossegue (46): “no negócio oneroso as partes estão de acordo em que a vantagem que cada uma visa obter é contrabalançada por um sacrifício que está numa relação de estrita causalidade com aquela vantagem”.

Efetivamente — como observa SERPA LOPES (47) — “nos contratos bilaterais, o que prepondera é a vinculação de uma prestação a outra, característico do sinalagma, genético para uns (vinculação originária das prestações), funcional para outros (vinculação na execução das obrigações)”.

Não há sinalagma no caso, visto inexistir, nele, relação contratual, menos ainda contrato bilateral oneroso que o tenha estabelecido.

20. Pois é certo que o Estado, no caso da relação previdenciária, encontra-se em situação de dever. Não é titular de quaisquer direitos no bojo dessa relação, cujo outro pólo é ocupado pelo aposentado ou pelo pensionista.

A relação previdenciária decorre da lei, sem querer [= vontade] a caracterizá-la, ainda que nela sejam apontados traços similares aos de um contrato. Mas não há sinalagma a justificá-la. Sinalagma é liame entre obrigação e obrigação. Não há, nem pode haver, sinalagma entre dever e obrigação.

O Estado, nessa relação, está vinculado pelo dever de pagar aposentadorias e pensões, nos termos da lei. Não cumpre prestação, no sentido obrigacional, próprio à teoria geral dos contratos. O conteúdo das prestações, na relação previdenciária, é conformado pela lei.

Sem penetrar considerações atuariais — cuja veracidade, de resto, é de ser presumida — anoto que o Estado está vinculado

pelo dever de pagar aquelas aposentadorias e pensões, dele não sendo possível exigir-se o impossível.

21. Além de tudo, a atribuirmos caráter contratual à relação previdenciária — e o faço apenas para argumentar, visto que ela, relação previdenciária, não decorre de nenhum ato de vontade, mas da lei — seríamos compelidos a, nas circunstâncias de fato presentes, cogitar da sua revisão, o que nos conduziria a indagar do rompimento ou não rompimento do equilíbrio econômico da relação. Isso não seria, no entanto, admissível em ADI.

Ainda assim — lembro aqui voto do Ministro PAULO

BROSSARD na ADI 493 — o ato jurídico perfeito cederia diante da

teoria da imprevisão. Palavras do Ministro BROSSARD:

“É interessante que a velha cláusula medieval da ‘rebus sic stantibus’ tivesse sido, ‘redescoberta’ em 1.912, por um jovem jurista italiano, OSTI (…)”, cuja evolução autoriza a modificação substancial de cláusulas de contratos em pleno vigor, de atos jurídicos perfeitos.

Ademais, como observa FRANZ NEUMANN (48), nenhum sistema

social, nem mesmo o mais conservador, no sentido literal do termo,

pode apenas conservar, pois até mesmo para tanto será preciso mudar.

22. Vê-se para logo, assim, que a tese da quebra de sinalagma na relação previdenciária não é sustentável. Estamos diante de tributo cujo fato gerador é a percepção de determinada parcela de proventos e pensões. E, vimos acima, a percepção do benefício pode perfeitamente ser eleita pelo direito como sua hipótese de incidência.

O paralelo entre sistema estatutário [ativos versus inativos] e sistema previdenciário [contribuintes versus beneficiários] não me parece adequado, salvo se o regime do segundo não pudesse ter sido alterado.

Como isso pode se dar — pois não há direito adquirido a regime jurídico — o paralelismo perece. A contribuição tem de ser considerada no quadro dessa relação, à qual a lei — e mais ainda emenda constitucional — aplica-se imediatamente.


A propósito, retornando a CELSO ANTÔNIO (49), diz ele ser

nítida a “imediata aplicação das modificações [inclusive de ordem

tributária, completo eu, na linha de pensamento do eminente

professor da PUC de São Paulo] que incidam sobre as situações

gerais”.

23. Passo a outro capítulo, no qual a afirmação de que o §

5º do artigo 195 da Constituição ensejaria a conclusão de que a instituição de nova exação previdenciária apenas se justificaria desde que estabelecido novo benefício. No julgamento da ADI 2.01 foi dito que “sem causa eficiente, não se justifica a instituição (ou a majoração) da contribuição de seguridade social, pois, no regime de previdência de caráter contributivo deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício”.

O raciocínio, contudo, não procede no regime instalado pelo artigo 195, caput da Constituição, de caráter contribuinte e solidário.

24. O artigo 195 da Constituição do Brasil dispõe que “a seguridade será financiada por toda a sociedade…” e o § 5º desse artigo apenas impõe ao legislador a vedação de ser criado, majorado ou estendido benefício ou serviço da seguridade social sem a correspondente fonte de custeio. Esta não é a hipótese. O benefício (da aposentadoria) já está criado.

O que se tem — isso poderia ser dito — é a instituição de outra fonte de custeio para garantir a manutenção de benefício da seguridade [para o que era exigido apenas lei complementar — artigo 195, § 4º]. Os benefícios da previdência social estão previstos no capítulo da Seguridade Social, que — repita-se — é financiada por toda a sociedade. Não há, em qualquer das disposições veiculadas pelo artigo 201, nenhuma garantia de que, concretizada a percepção de qualquer benefício previdenciário — auxílio-reclusão, etc. — deixaria de ser exigida qualquer contribuição.

Por outro lado, o fato de ser assegurado o direito à inativação remunerada somente após longo período de contribuição não significa exaurimento da obrigação de contribuição para a seguridade social, dado que o servidor, por haver se aposentado, não está excluído da fruição de outros benefícios previdenciários mantidos pela seguridade social.

O artigo 201, § 7º ao conjugar contribuição e idade,

somente deixou assente a partir de que momento estava assegurada a aposentadoria — apenas fixou os requisitos a serem atendidos para que o servidor possa aposentar-se. Em nenhum momento o preceito assegura que, cumpridos esses requisitos, ele seria titular de direito a não mais contribuir. Isso é bem nítido também. Ademais, é bem sabido que a aposentadoria é apenas um dos benefícios da previdência social.

25. O raciocínio que estou a recusar parte de uma leitura invertida do preceito contido no § 5º do art. 195 da Constituição do Brasil, visto que a correlação presente neste dispositivo tem apenas uma via, ou seja, a de que nenhum benefício será instituído sem fonte de custeio.

Insisto em que a interpretação a contrario sensu só teria sentido em um sistema exclusivamente contributivo. E que não há, no texto constitucional, menção à situação inversa, no sentido de que a cada contribuição criada deva corresponder um benefício específico.

De mais a mais — e neste passo retorno ao quanto anteriormente observado — não é admissível a instalação de sinalagma na relação previdenciária, o que estaria sendo pretendido mediante a prática dessa leitura. Isso assim não pode ser, salvo se pretendêssemos voltar ao passado, para reproduzir o debate — já aquietado na doutrina e na jurisprudência — a propósito da natureza da relação de emprego público, com opção pela teoria contratual, há muito vencida pela teoria estatutária [ver, por todos, RE 20.988/SP (50)].

Lembre-se que o servidor, ao aposentar-se, não perde o

vínculo que o jungia, enquanto ativo, à Administração, eis que é

dela (federal, estadual ou municipal) que sairão os recursos para

pagá-lo.

Essa vinculação é transferida para o pensionista, estando positivada na Constituição de 1.988 na medida em que ela define que os proventos de aposentadoria e as pensões não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão (Constituição do Brasil, artigo 40, § 2º; veja-se a EC 20/98).

A contribuição exigida do servidor em atividade é condição de sua aposentadoria, bem assim da pensão por morte devida aos seus dependentes. Os proventos de sua aposentadoria estão sujeitos ao teto de vencimentos fixado para a Administração Pública em geral

(artigo 40, § 11) e a pensão por morte do servidor não poderá ser superior à remuneração percebida pelo de cujus (artigo 40, § 2º).


26. Insisto em que essas relações decorrem da lei e não de

qualquer ato de vontade, como observam os Ministros MOREIRA ALVES e CELSO DE MELLO nos arestos acima mencionados.

27. Passo a tratar do tema da igualdade. A igualdade (51) se expressa em isonomia [= garantia de condições idênticas asseguradas ao sujeito de direito em igualdade de condições com outro] e na vedação de privilégios.

Decorreria da universalidade das leis — jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur (52). Reunidos os dois princípios, igualdade e universalidade das leis, assim se traduzem: a lei é igual para todos e todos são iguais perante a lei (53).

Nem sempre foi assim, contudo. Tal como inscrito nos primeiros textos constitucionais, o princípio da igualdade foi interpretado exclusivamente como determinação de igualdade na aplicação do direito. Essa determinação vincularia unicamente os órgãos que aplicam o direito, não alcançando o legislador (54), o que despertou acesa crítica de KELSEN (55). Após passou ele a ser tomado também como determinação de igualdade na formulação do direito, o que importa em que todos devam ser tratados de modo igual pelo legislador (56). A anotação de FRANCISCO CAMPOS (57) a propósito é primorosa:

“O mandamento da Constituição se dirige particularmente ao legislador e, efetivamente, somente êle poderá ser o destinatário útil de tal mandamento. O executor da lei já está, necessàriamente, obrigado a aplicá-la de acôrdo com os critérios constantes da própria lei”.

28. A concreção do princípio da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até

porque — e isso é repetido quase que automaticamente, desde PLATÃO e ARISTÓTELES (58) — a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais.

Vale dizer: o direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais. A questão que fica — crucial — é a seguinte, na dicção de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (59):

“Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”.

29. Tudo se torna mais claro na medida em que considerarmos

o quanto afirma KELSEN (60):

“os homens (assim como as circunstâncias externas) apenas podem ser considerados como iguais, ou, por outras palavras, apenas há homens iguais (ou circunstâncias externas iguais), na medida em que as desigualdades que de facto entre eles existem não sejam tomadas em consideração. Se não há que tomar em conta quaisquer

desigualdades sejam elas quais forem, todos são iguais e tudo é igual”.

E prossegue, adiante (61), observando que o princípio “postula não apenas um tratamento igual mas também um tratamento desigual. Por isso, tem de haver uma norma correspondente a este princípio que expressamente defina certas qualidades em relação às quais as desigualdades hão-de ser tidas em conta, afim de que as desigualdades em relação às outras qualidades possam permanecer irrelevantes, a fim de que possam haver de todo em todo, portanto, indivíduos ‘iguais’. ‘Iguais’ são aqueles indivíduos que, em relação às qualidades assim determinadas, não são desiguais. E o poderem, de todo em todo, existir indivíduos ‘iguais’, é a consequência do facto de que, se não todas, pelo menos certas desigualdades não são consideradas” (grifo no original) (62).

Por isso mesmo pode, a lei — como qualquer outro texto

normativo — sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a um tratamento diverso do que atribui

a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se

manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade

com o conteúdo do princípio.

Procurando dar resposta à indagação à respeito de quais situações e pessoas podem ser discriminadas sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão toma como fio condutor o seguinte:

“a máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não seja possível encontrar uma razão razoável, que surja da natureza da coisa ou que, de alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição tenha de ser

qualificada de arbitrária”(63).

Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária

quando “não seja possível encontrar, para a diferenciação legal,

alguma razão razoável que surja da natureza das coisas ou que, de

alguma forma, seja concretamente compreensível” (64).


30. Além do artigo 5o da Constituição de 1.988, também o seu artigo 150, II contempla a igualdade, aqui tomada como isonomia tributária.

Essa reiteração da isonomia no setor tributário não é redundante ou supérflua, dado que aqui, nesse artigo 150, a vedação da discriminação entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente não consubstancia apenas um direito fundamental, mas também é afirmada como uma das limitações constitucionais ao poder de tributar. Todas as observações atinentes à igualdade, como contemplada no artigo 5º, não obstante se amoldam ao instituto da isonomia tributária.

Assim, como anota ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA (65), a

exigência de igualdade fiscal deve “se conformar e harmonizar com as desigualdades econômicas, ou de outra natureza, em função das quais, e sómente delas, o poder tributário se há de exercitar com

justiça”(66).

Quanto à indagação à respeito de quais contribuintes podem ser discriminados sem quebra e agressão aos objetivos da isonomia tributária, aludindo ao Justice BRANDEIS, da Suprema Corte norte-americana, insiste SAMPAIO DÓRIA em que se exige meramente que a discriminação seja razoável, sendo razoável a “classificação que um homem bem informado, inteligente, de bom senso e civilizado possa racionalmente prestigiar” (67). E os seguintes fatores devem ser

considerados: a) razoabilidade da discriminação, baseada em

diferenças reais entre as pessoas ou objetos taxados; b) existência

de objetivo que justifique a discriminação; c) nexo lógico entre o

objetivo perseguido e a discriminação que permitirá alcançá-lo (68).

31. O artigo 1º da EC 41/03, ao acrescentar o § 18 ao

artigo 40 da Constituição do Brasil, discrimina os servidores

inativados anteriormente à publicação da Emenda daqueles que vierem a aposentar-se a partir de sua vigência. Sustenta-se, com esteio no parecer do Prof. José Afonso da Silva, que esse discrímen não poderia ter sido adotado, visto serem, todos eles, aposentados ou pensionistas da previdência social.

32. Considero os fatores alinhados por SAMPAIO DÓRIA.

A discriminação é razoável. Demonstrou-o em seu voto o

Ministro Cezar Peluso. Os servidores aposentados antes da vigência

da EC 41/03 contribuíram em menor monta; antes da EC 20/98, em nada contribuíram. Busca-se restabelecer a proporção adequada de suas participações no sistema previdenciário. Há objetivo que justifica a discriminação e nexo lógico entre o objetivo perseguido e a discriminação que permitirá alcançá-lo.

33. Outra afronta à isonomia residiria na discriminação

entre os servidores aposentados e pensionistas dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, de um lado, e, de outro, os da União. Os incisos I e II do parágrafo único do art. 4º da EC 41/03 estabelecem patamar diferenciado para a incidência da contribuição. Acompanho, quanto a esses incisos, dispensando outras considerações, o voto do Ministro CEZAR PELUSO, para dar, nos termos desse voto, provimento parcial à ação direta.

34. Concluindo, nem se argumente com a tese dos “direitos

humanos”, para afirmar-se um tipo especial de imunidade dos inativos

à incidência da contribuição. Pois é certo que esta encontra seu fundamento no princípio da solidariedade (69) e unicamente a concepção do homem separado da comunidade, ensimesmado, preocupado apenas com o seu interesse pessoal, homem considerado como nômada isolada, fechada sobre si própria, apenas essa concepção justificaria tal imunidade.

A dignidade da pessoa humana somente poderá tornar-se concreta na medida em que se compreenda que o destino dos indivíduos está em participarem de uma vida coletiva, que os indivíduos não vivem unicamente orientados pelo seu interesse, como simples pessoas privadas, sem relação com o universal [= com a vontade universal], como diria HEGEL. E isso mesmo porque seus interesses pessoais só deixam de ser abstratos, tornando-se efetivos, no seio da comunidade política.

De modo que essa imunidade (70) corresponderia a um

privilégio que não se justifica por referência ao bem comum, como se

dá, por exemplo, nos casos da imunidade parlamentar e da imunidade

tributária de que gozam reciprocamente União, Estados-membros e

Municípios. Ainda que não se tome em conta considerações puramente atuariais na discussão da matéria, não se justifica essa vantagem contra o direito comum (71).

35. Com esteio em todos esses argumentos, rejeito a argüição de inconstitucionalidade e julgo improcedente a ação direta, salvo exclusivamente no que respeita aos incisos do

parágrafo único do artigo 4º da EC 41/03.

Notas de rodapé

1 Cf. BOBBIO, Teoria generale del diritto, Torino, Giappichelli,


1.993, p. 146.

2 O regime jurídico das emendas à Constituição, tese, PUC/SP, São

Paulo, 1.999.

3 Teoria pura do direito, 4a edição, trad. de João Baptista Machado,

Armênio Amado, Coimbra, 1.976, pp. 464 e ss.

4 RE 18.269, [DJ 03.12.1953].

5 Direito Administrativo, vol. II, Freitas Bastos S/A, Rio de Janeiro, 1.958, p. 12.

6 Idem, ibidem.

7 Da retroactividade das leis civis, Duprat & Comp., São Paulo,

1.909, p. 8.

8 Ob. cit., p. 9.

9 Veja-se também, do mesmo autor, O Código Civil e a retroactividade, republicado in Revista dos Tribunais, 810/755-760.

10 RE 163989/CE [DJ 28.06.1951]; também, v.g., RMS 2726/DF [DJ

01.09.1955], MS 1447/DF [DJ 01.11.1951].

11 RE 18269, cit.

12 Limite temporal da lei, in RT 173/459, pp. 468-469, citado também

pelo eminente Ministro Moreira Alves em voto na ADIN n. 493 [RTJ

143/724, pp. 744-745].

13 Ao cuidar do ato jurídico perfeito, o preceito constitucional está a referir situações existentes e válidas [mesmo que ainda não eficazes] — exemplificando: o testamento formalizado no regime da lei anterior, enquanto vivo o testador, e, de forma geral, os negócios jurídicos sujeitos a condição suspensiva. Nesses casos, verificados os pressupostos da existência e os elementos da validade, as situações mantêm-se íntegras, a salvo de eventuais modificações, no direito positivo, que incidam sobre tais pressupostos e elementos. Não se trata, então, de direito adquirido, mas de ato jurídico perfeito — os contemplados pelo testamento feito no regime da lei anterior [enquanto vivo o testador], ou os contratantes que se vincularam sob condição suspensiva [enquanto esta não se verifica], não são titulares de “direito adquirido”. Resulta nítida, destarte, a distinção entre direito adquirido e ato jurídico perfeito, o que evita a confusão entre ambos, quando o primeiro é submetido ao segundo e vice-versa. Pois é certo existir direito adquirido que não se funda em ato jurídico perfeito [os direitos do nascituro, v.g.] e ato jurídico perfeito que não implica direito adquirido [justamente os negócios sujeitos a condição suspensiva e o testamento, em ambos os casos enquanto, respectivamente, não verificada a condição, ou vivo o testador].

14 Comentários à Constituição de 1.967 com a Emenda n. 1 de 1.969, 2ª ed., vol. V, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.969.

15 – Ob. cit., p. 82.

16 Cf. PONTES DE MIRANDA, ob. cit., p. 80.

17 Vide PAUL ROUBIER, Le droit transitoire, 2éme edition, Dalloz et Sirey, Paris, 1.960, pp.292 e ss.

18 CARLOS MAXIMILIANO, Direito intertemporal ou Teoria da

retroatividade das leis, Freitas Bastos, Rio, 1.946, p.22.

19 Planos econômicos, direito adquirido e FGTS, in RTDP 22/64 e ss.

20 RTJ 143/724.

21 RTJ 134/1.112.

22 Traité élémentaire de droit administratif, 4éme. ed. LGDJ, Paris,

1.967, p. 17.

23 Traité de droit constitutionnel, 2éme edition, t. I, Ancienne

Librairie Fontemoing & Cie., Paris, 1.921, p. 254-255.

24 No original de LAUBADÈRE: “[l]es situations individuelles ne se

rencontrent jamais à l’état pur. Elles sont toujours em réalité des

situations plus ou moins mixtes, c’èst-à-dire qu’elles comportent

toujours certaisn elements determines par des dispositions générales

et imperatives de la loi” [ob. cit., p. 17.]

25 Ato Administrativo e Direito dos Administrados, Editora Revista

dos Tribunais, São Paulo, 1.981, pp. 106-111.

26 Ob. cit., p. 107. No original de LAUBADÈRE: “Au contraire, les

situations individuelles et subjectives ne sont pas touchées par les

modifications des lois et règlements parce que leur contenu n’a pas

été determine par ceux-ci. Elles sont, dit-on parfois, ‘intangibles’

” [cit., p. 18].

27 “On voit que la distinction fournit ainsi le critère technique de

solution du problème de l’application des lois dans le temps,

autrement dit du problème de la non-rétroactivité des lois” [idem,

ibidem].

28 Introdução ao direito e ao discurso legitimador, 12a reimpressão,

Coimbra, 2.000, p. 234 e ss.

29 “Anotações sobre o princípio do direito adquirido tendo em vista a

aplicação do novo Código Civil”, in Aspectos controvertidos do novo

Código Civil, [coordenadores Arruda Alvim et alii], Editora Revista

dos Tribunais, São Paulo, 2.003, p.235.

30 “As situações estatutárias se estendem a número indeterminado de

sujeitos e são mutáveis segundo a alteração das regras jurídicas que

a regulam. Já as situações individuais se referem apenas a

especificados sujeitos, de modo determinado, e são inalteráveis por


terceiros ou por uma das partes sem a concordância da outra,

obedientes às regras que permitiram a sua criação.” [Princípios

gerais de direito administrativo, 2ª ed., Forense, Rio de Janeiro,

1.979, p. 425].

31 Ob. cit., p. 110.

32 Ob. cit., p. 111.

33 RE 177.072, in RTJ 183/323; 178.802, in RTJ 143/293; 99/1.267;

88/651 RE 99.522, in RDA 153/110-113; RE 92.638, in RDA 145/56-61; RE 185.966; RE 146.749, in RTJ 158/228; RE 82.881, in RTJ 79/268; RE 99.592, in RTJ 108/382; RE 99.594, in RTJ 108/785; RE 99.955, in RTJ 116/1.065; RE 199.753.

34 RTJ 174/942.

35 Ob. cit., p. 239.

36 RTJ 174/916.

37 Relator o Ministro Celso de Mello (trecho extraído da decisão

liminar, DJ 12.04.2002).

38 Der Zweck im Recht, Druck und Verlag von Britkopf e Härtel, Erster

Band, zweite umgearbeitete Auflage, Leipzig, 1.984, p. VIII.

39 Note-se que à época do referido acórdão, o art. 18, § 5º, da

Constituição vigente correspondia ao atual art. 154, I da

Constituição do Brasil, a saber: “A União poderá, desde que não

tenham base de cálculo e fato gerador idênticos aos dos previstos

nesta Constituição instituir outros impostos, além dos mencionados

nos artigos 21 e 22 e que não sejam da competência tributária

privativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, assim

como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação

a impostos, cuja incidência seja definida em lei federal.”

40 Istituzioni di diritto civile, 37ª ed., Padova, CEDAM, 1.997, p.

667).

41 PAOLO GALLO, Diritto Privato, 3ª ed., Torino, Giappichelli, 2.002,

364 e s.

42 Idem, ibidem.

43 Não obstante, como explica TRABUCCHI: “La distinzione tra

contratti unilaterali e corrispettivi non coincide con quella tra

contratti onerosi e contratti gratuiti (…). Tutti i contratti

corrispettivi sono onerosi, ma la proposizione inversa non vale,

perchè onerosi possono essere anche alcuni contratti unilaterali,

come il mutuo, il deposito, il mandato” [ob. cit., pp. 669-670

(negrito no original).

44 Teoria geral do direito civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1.976, p.

279.

45 Idem, ibidem.

46 Ob. cit., p. 279.

47 Curso de direito civil. Fonte das obrigações. Contratos, 4ª ed.,

v. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1.991, p. 31.

48 The Democratic and The Authoritarian State, The Free Press,

Glencoe, 1.957, p.172.

49 Ob. cit., p. 111.

50 DJ 08.01.1953.

51 Observa FRANCISCO CAMPOS (Direito Administrativo, vol. II, cit., pág. 188) ser necessário não confundirmos o princípio da igualdade perante a lei com o princípio da igualdade, sem qualquer qualificação ou restrição, ou enunciado em termos gerais e absolutos. O segundo “representa um ideal, uma aspiração ou um postulado contrário às condições efetivamente existentes na sociedade: êle parte do reconhecimento da existência de desigualdades de fato entre os homens para postular a modificação das relações humanas no sentido de tornar iguais os indivíduos que são efetivamente desiguais. Há uma relação polêmica entre o princípio absoluto de igualdade e o fato das desigualdades reinantes entre os homens. O princípio de igualdade perante a lei, ao contrário, tem conteúdo restrito. Êle não pretende alterar as relações efetivamente existentes entre os homens, mas se limita a determinar que a lei tenha em conta, ao regular as relações humanas, as circunstâncias que condicionam efetivamente essas relações ou que não disponha de modo diferente para casos idênticos ou iguais, nem procure igualar o que é, efetivamente, desigual. Ao passo que o princípio absoluto de igualdade tem por fim alterar a estrutura social, intervindo nela para o efeito de suprimir as desigualdades existentes, o princípio de igualdade perante a lei visa tão somente assegurar o reconhecimento pela lei das igualdades ou desigualdades que, efetivamente, existem entre os homens. O primeiro é uma ideologia, o segundo um mandamento jurídico de conteúdo limitado e concreto e de valor positivo; o primeiro subordina a realidade a um imperativo destinado a transformá-la, o segundo é uma regra de direito positivo, destinada a limitar ou restringir a ação da lei aos dados da realidade”. Dizendo-o de outro modo, afirmarei, singelamente, que o princípio da igualdade perante a lei consubstancia norma jurídica, ao passo que a igualdade – ou princípio da igualdade, tout court — é expressão de um valor, despido porém de conteúdo deontológico (vide meu O direito posto e o direito pressuposto, 2a edição, Malheiros Editores, São Paulo,1.998, págs. 78-79).

52 ULPIANO, 1, 3, 10, 8.

53 Cf. VICENTE RÁO, O Direito e a vida dos direitos, 1o vol., Max

Limonad, São Paulo, 1.960, pág. 210.

54 Neste sentido, tratando do direito alemão, ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1.986, págs. 357 e ss.

55 A Justiça e o Direito Natural, Armenio Amado, Coimbra, 1.963, pág. 66.

56 Vide, por todos, FRANCISCO CAMPOS, Direito Administrativo, cit.,

pág. 189-191, e Direito Constitucional, cit., págs. 17 e ss.

57 Direito Constitucional, vol. II, Livraria Freitas Bastos S/A,

Rio de Janeiro, 1.956, pág. 188; respeitei a ortografia do original.

58 PLATÃO, Leis, VI 757; ARISTÓTELES, Política, III 9 (1280a) e

Etica a Nicômano, V 6 (1131a).

59 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Editora Revista

dos Tribunais, São Paulo, 1.978, págs. 15/16.

60 – Ob. cit., pág. 67.

61 – Idem, págs. 70/71.

62 – Daí a observação de FÁBIO KONDER COMPARATO (Direito Público – Estudos e Pareceres, Saraiva, São Paulo, 1.996, pág. 135):

“É antes mister, como salienta o Prof. Konrad Hesse, procurar entender, preliminarmente, o que seja a igualdade jurídica, que não se

confunde com a identidade. Se duas situações a serem normadas ou

decididas fossem idênticas, não haveria, obviamente, nenhum problema jurídico a resolver, quer de legislação, quer de aplicação da lei. A igualdade jurídica supõe, portanto, logicamente, alguma diferença entre uma situação e outra, entre uma hipótese de incidência e outra”.

63 Cf. ROBERT ALEXY, ob. cit., pág. 366.

64 Idem, pág. 370.

65 Princípios Constitucionais Tributários e a Cláusula Due Process

of Law, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.964, pág. 193.

66 Prossegue o autor (ob. cit., idem): “Esta concepção do princípio

da igualdade exprime-se, na esfera tributária, pela conclusão de que

a taxação deve ser idêntica para as pessoas ou atividades igualmente

situadas e desigual para aquelas que entre si desigualem e, se

possível, na exata medida da desigualdade apurada”.

67 Ob. cit., pág. 195.

68 Idem, pág. 196.

69 “A seguridade social será financiada por toda sociedade”, diz o artigo 195 da Constituição do Brasil.

70 A menção a pretendida imunidade como tal, já a fizera o Min.

OCTÁVIO GALLOTTI, no julgamento da medida cautelar na ADI 1.441.

71 Um autor anônimo do século XVII (Droit public de la province de

Bretagne, avec des obfervations relatives aux circonftances

actuelles, s.l., 1.789, pp. 137-138, nota de rodapé) referia:

“Qu’eft-ce qu’un Privilége? C’eft un avantage que le Prince accorde

gratuitement ou à prix d’argent, mais toujours contre le droit

commun”.

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