Conheça os fundamentos que proíbem a Receita de quebrar sigilos
11 de fevereiro de 2002, 7h57
A possibilidade de se quebrar sigilo sem autorização judicial tem sido repelida com freqüência em todas as instâncias da Justiça. Os fundamentos invocados têm sido consistentes, apesar do apelo que tem a idéia de apressar as investigações em torno de operações suspeitas.
Por seu caráter paradigmático e pela veemência, a Revista Consultor Jurídico selecionou decisão do juiz Uilton Reina Cecato, da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo, que sintetizou os principais argumentos contrários à quebra do sigilo bancário por parte da Receita Federal. O pedido, devidamente atendido, foi feito pelo advogado tributarista Raul Haidar.
Veja a íntegra da decisão
Processo nº 2001.61.00.019674-0
Impetrante: (omitido)
Impetrado: Delegado da Receita Federal em Osasco
Reg: 1293/01
Sentença– trata-se de mandado de segurança que objetiva suspender e anular o procedimento fiscal instaurado pela autoridade impetrada, em face da inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência de apresentação de extratos bancários pela impetrante. Sustenta a necessidade de prévia autorização judicial para a quebra do sigilo bancário, reputando inconstitucional a Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, bem como a fundamentação da requisição com base no Regulamento do Imposto de Renda. Ademais, sustenta que a lei em comento é retroativa, violando o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, e que a autoridade violou o principio da indispensabilidade e razoabilidade.
A medida liminar foi deferida, ensejando a interposição de Agravo de Instrumento pela União (fls. 77).
Prestadas as informações, a autoridade coatora defendeu o ato impugnado, alegando em síntese, a constitucionalidade da LC nº 105/2001, já que o sigilo bancário não é um direito absoluto.
O Ministério Público Federal opinou pela denegação da segurança.
É o relatório do essencial. Decido.
O direito ao sigilo bancário não é um direito absoluto, pois o Estado Democrático de Direito repele esta condição, em face de interesse público relevante.
Todavia, para que seja permitido invadir a esfera de intimidade da pessoa física ou jurídica, exige-se que esta tarefa seja entregue nas mãos de órgão imparcial, que no caso, somente o Judiciário é detentor.
Diversamente do que se propugna, o artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal não confere qualquer direito à quebra do sigilo bancário sem determinação judicial, pois a lei que tenha por objetivo a sua regulamentação, deverá observar o princípio da reserva judicial (artigo 5º, incisos X e XII), ante a ausência de autorização constitucional para interpretação extensiva de exceções aos direitos fundamentais.
O Ministro Carlos Velloso, no julgamento de Recurso Extraordinário nº 219.780-5, salientou que o artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, não autoriza o legislador infraconstitucional a afastar os direitos e garantias fundamentais, como no caso, o princípio da Reserva Judicial na quebra do sigilo bancário, trazendo que esta questão já tinha sido enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Questões de Ordem havidas nos Inquéritos 732-DF e 923-DF, que tratou exatamente da hipótese de requisição de informações bancárias da Delegacia da Receita Federal, sem prévio crivo judicial.
“Na verdade, a Constituição, no art. 145, parágrafo 1º, estabelece que é “facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, ou rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Está-se a ver, da leitura do dispositivo constitucional, que a faculdade concedida ao Fisco, pela Constituição, exerce-se com respeito aos “direitos individuais e nos termos da lei”. (DJU 10.09.1999).
De outro lado, não procede à alegação da Fazenda de que o direito à intimidade e, conseqüentemente, ao sigilo bancário, diz respeito apenas a pessoas físicas, ficando de fora da proteção constitucional, as pessoas jurídicas. Seria o mesmo que dizer que as pessoas jurídicas não podem pleitear danos materiais e morais no caso de violação de segredo profissional.
O Ministro Maurício Corrêa, no julgamento de Recurso em Habeas Corpus nº 74.807-4/MT, reconheceu que as pessoas jurídicas também têm o direito de invocar o sigilo bancário considerado um direito fundamental de qualquer pessoa, seja física ou jurídica, conforme se observa do trecho do seu voto condutor do julgado:
“Como visto, os pacientes recorrem da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, na parte em que rejeitou a alegação de inépcia da denúncia sustentando que a referida exordial acusatória está respaldada exclusivamente em provas obtidas por meio ilícitos, uma vez que o acórdão recorrido reconheceu a ilegalidade da violação do sigilo bancário ocorrida na empresa dos recorrentes, por isso que determinou fossem desentranhados dos autos as peças e informações decorrentes do procedimento ilícito, mas concluiu pelo prosseguimento da ação penal.
Ao descrever os fatos tidos como delituosos, a denúncia começa por narrar que a Receita Federal em julho de 1903, em fiscalização efetuada na contabilidade da empresa de propriedade dos ora recorrentes, constatou que foram escrituradas como despesas, em 1990, três notas fiscais de prestação de serviços e, em 1990, duas outras emitidas pela empresa (…), que estava com o seu CGC suspenso desde 31/12/88 por falta de entrega de declaração de renda da pessoa jurídica, acrescentando que a mesma não fora localizada no endereço constante das notas fiscais, não tendo sido possível localiza-la.
(…)
Com base no que até aqui extraído da denúncia, o parecer da Procuradoria Geral da República assim argumenta para demonstrar ser “impossível falar-se de prova viciada”:
10. Ora, em relação a estes fatos do ano-base de 1990 mas que os pacientes perpetraram em 1991, quando da apresentação da declaração, e que, assim, não foram atingidos pela prescrição, a fiscalização fazendária não solicitou a bancos a movimentação financeira dos investigados. Estes, livre e espontaneamente, na resposta à intimação recebida é que apresentaram os cheques, quando sobre eles a fiscalização detectou imperfeição”.
Nesse ponto, não me convencem os argumentos do Ministério Público. A empresa, quando muito, forneceu dados dos cheques que se destinaram ao pagamento das notas fiscais emitidas pela outra empresa, e não os próprios cheques, cujos pseudos ou verdadeiros beneficiários o Fisco ignorava. Por isso a quebra do sigilo mediante informações prestadas pelos bancos em atendimento ao solicitado pela Receita Federal, sem prévia autorização judicial
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento do Recurso Extraordinário nº 215.301-0, realizado em 13/04/1999, tendo como Relator o Ministro Carlos Velloso, com relação ao principio da reserva da jurisdição, decidiu que a quebra do sigilo bancário determinada pelo Ministério Público com base na Lei Complementar nº 75/93, sem prévia autorização judicial, é ilegítima, citando decisão do Plenário extraída do MS nº 21.729-DF:
“Ementa – Constitucional. Ministério Público. Sigilo Bancário: Quebra. C. F., art. 129, VIII.
I – A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie do direito á privacidade, que a C. F. consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.
II – R.E. não conhecido. (D.J. 28.05.99).
Eis excerto do voto condutor:
“(…)
Quando do julgamento, pelo Plenário, do MS. 21.729-DF, Relator o Ministro Marco Aurélio, julgamento concluído em 05/10/95, mas cuja acórdão não foi ainda publicado, convindo ressaltar entretanto, que o emitente Relator já temo seu voto, o Supremo Tribunal Federal examinou a questão tendo em vista a Lei Complementar nº 75, de 20.5.93.
Aqui, em sede de recurso extraordinário, entretanto, isto não pode ocorrer, dado que o contencioso de direito comum não integra o recurso extraordinário.
A questão, portando, somente pode ser visualizada tendo em vista o que dispõe o dispositivo constitucional que se alega violado, o art. 129, VIII, da C.F.:
“Art. 129. São Funções institucionais do Ministério Público:
…
VIII – requisitar diligências investigatórias, a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;”
Pode o Ministério Público, portanto, presentes às normas do inc. VIII, do art. 129, da C.F. requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. As diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial deverão ser requisitadas, obviamente, à autoridade policial.
Ora, no citado inc. VIII, do art. 129, da C.F., não está escrito que poderia o órgão do Ministério Público requerer, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de alguém.
E se considerarmos que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade que a Constituição consagra, art. 5º, inc. X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria a ação do Ministério Público para requerer, diretamente, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.
No voto que proferi na Petição 577-DF, caso Magri, dissertei a respeito do tema (RTJ 148/366), asseverando que o direito ao sigilo bancário não é, na verdade, um direito absoluto – não há, aliás, direitos absolutos – devendo ceder, é certo, diante do interesse público, diante do interesse social, diante do interesse da justiça, conforme, esclareça-se, tem decidido o Supremo Tribunal Federal. Todavia, deixei expresso no voto que proferi no MS 21.729-DF, por se tratar de um direito que tem “status” constitucional, a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade. Somente a autoridade judiciária, que tem o dever de ser imparcial, por isso mesmo procederá com cautela, com prudência e com moderação, é que, provocada pelo Ministério Público poderá autorizar a quebra do sigilo. O Ministério Público, por mais importantes que sejam as suas funções, não tem a obrigação de ser imparcial.
Sendo parte – advogado da sociedade – a parcialidade lhe é inerente. Então, como poderia a parte, que tem interesse de ação, efetivar, ela própria, a quebra de um direito inerente à privacidade, que é garantido pela Constituição?
Lembro-me de que, antigo Tribunal Federal de Recursos, um dos seus mais eminentes membros costumava afirmar que “o erro do juiz o tribunal pode corrigir, mas quem corrigirá o erro do Ministério Público?” Há órgãos e órgãos do Ministério Público, que agem individualmente, alguns, até, comprometidos como o poder político, o que não poderia ocorrer, indago, com o direito de muitos, por esses Brasis, se o direito das pessoas ao sigilo bancário pudesse ser quebrado sem maior cautela, sem a interferência da autoridade judiciária, por representantes do Ministério Público, que agem individualmente, fora o devido processo legal e que não têm os seus atos controlados mediante recursos?
Em suma, o art. 129, VIII, não autoriza ao Ministério Público quebrar, diretamente, o sigilo bancário das pessoas”.
Neste mesmo sentido, posicionou-se o STF, no julgamento do Agravo Regimental em Inquérito nº 897-5, Distrito Federal, D.J. de 24.03.1995, que ao mesmo tempo em que assentou a possibilidade de quebra de sigilo, exigiu Autorização Judicial Prévia, conforme frisou o trecho do Ministro Celso de Mello:
“(…)
A relevância do direito ao sigilo bancário – que traduz, na concreção do seu alcance, uma das projeções realizadoras do direito à intimidade impõe, por isso mesmo, cautela e prudência ao Poder Judiciário na determinação da ruptura da esfera de privacidade individual, que o ordenamento jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula tutelar de reserva constitucional (CF, art. 5º, X).
Postura idêntica foi adotada no julgamento do MSMC – 23612/DF, julgado em 12.01.2000, DJU 02.02.2000,, pelo Eminente Ministro:
Vistos. Despachei dois casos semelhantes a este, em 20 e 21 de dezembro p. passado, os MMSS 23.599-DF e 23.602-DF, impetrados, respectivamente, por Dório Antunes de Souza e Solange Antunes Resende. Em ambos, deferi a medida liminar. Assim a decisão que proferi no MS 23.602-DF: “Despacho: – Vistos. O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as decisões das Comissões Parlamentares de Inquérito, que decretam a quebra do sigilo bancário, fiscal e/ou telefônico, devem ser fundamentadas, tal como ocorre com as decisões das autoridades judiciais. Indico, por exemplo, o decidido no MS 23.452-RJ. No voto que proferi por ocasião do citado julgamento, deixei expresso o meu entendimento no sentido de que adoto o princípio da reserva de jurisdição. É dizer, certos atos, relacionados com os direitos e garantias fundamentais, a Constituição reservou aos juízes, exclusivamente. É o que Canotilho denomina de “reserva constitucional de jurisdição”. Assim posta a questão, vejo configurados, no caso, os pressupostos do fumus boni juris e do periculum in mora. Por isto, defiro a liminar requerida, sustando-se a execução de qualquer providência para efetiva-lo.
O Ministro Sepúlveda Pertence, ao analisar medida liminar em mandado de segurança contra a quebra de sigilo bancário impetrado por Francisco Lopes, MS-23466/DF DJ-22-06-99, colocou inclusive em dúvida a possibilidade das comissões Parlamentares de Inquérito – CPI, determinarem a quebra de sigilo bancário sem prévia autorização judicial, no termos em que vem decidindo os Ministros Celso de Mello e Carlos Velloso:
“Cuida-se, logo se vê, de um dos prismas mais relevantes da fascinante temática da tensão dialética entre o poder das comissões parlamentares de inquérito e alguns dos direitos e garantias constitucionais mais relevantes. Abstraída a redação equivoca do primeiro texto constitucional expresso relativo as CPIs – CF/34, art. 36 -, sob as constituições anteriores à vigente, a solução indiscriminadamente negativa propugnada pela impetração teria por si a virtual unanimidade da orientação doutrinária e jurisprudencial. A Constituição vigente reavivou o problema, quando, no art. 58, parágrafo 3º, conferiu as CPIs “os poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias”.
Como nota à sempre lúcida Ada Grinover, no parecer de 1995, que instrui a impetração, ainda quando se consiste, à vista do sistema acusatório (implícito na garantia do contraditório e essencial à sua imparcialidade), que aos juízes se outorguem poderes investigatórios stricto sensu, para atribuir sentido útil à cláusula constitucional, há que entendê-la como referida aos “poderes instrutórios idênticos aos reservados aos membros do Judiciário…”. Se assim é, de logo, o decreto de indisponibilidade dos bens de determinada pessoa posta sob a suspeição da CPI, qual o impetrante, mostra-se de todo excedente a mais larga interpretação da autoridade das CPIs: indisponibilidade de bens, ou medida similar – qual o arresto, o seqüestro ou a hipoteca judiciária – são provimentos cautelares de sentença definitiva de condenação, os quais obviamente não se confundem com os poderes instrutórios, ou de cautela sobre a prova, que se possam admitir extensíveis aos órgãos parlamentares de investigação. Não se destinando a proferir julgamento, mas apenas a reunir informações úteis aos exercícios das funções do Congresso Nacional, a CPI é despida do poder de acautelar sentença que não lhe caberá proferir.
Quanto às demais provisões questionadas – a quebra dos sigilos “bancário, fiscal e telefônico” – não há como negar sua natureza probatória e, pois, em princípio, sua compreensão no âmbito dos poderes de instrução do juiz, que à letra do art. 58, parágrafo 3º, da Constituição, faz extensíveis às comissões parlamentares de inquérito. A questão, porém, não é assim tão singela. É extremamente significativa a opinião daqueles que subtraem, dos poderes de instrução da autoridade judicial literalmente estendidos as CPIs, aquelas medias que – objeto de garantias constitucionais explicitas do controle jurisdicional prévio – se entendem compreendidas, em qualquer hipótese, no que Canotilho (Direito Constitucional, 1988, p. 580) viria denominar “reserva de jurisdição”. Essa orientação tem tido, ontem como hoje, o aval de pareceristas, cujos argumentos suplantam a fácil objeção de parcialidade (v.g., Francisco Campos, RF 175/71, Luiz Roberto Barroso, RF 235/165; Ada Grinover, autos, f, 82 ss.; Nelson Hungria, Ver. Brás. Crim. E Dir. Penal 10/39). A tese tem suportes de inegável solidez, e trânsito no direito comparado. O art. 34 da Constituição de Weimar, por exemplo, já tornava explícita a aplicabilidade à CPI, “no que for adequado”, das disposições do Processo Anschütz (apud Francisco Campos, RF 195/71,95), já entendia que “os meios para assegurar, de modo coercitivo, a produção de informações, a detenção, e busca e a apreensão e outras medidas de caráter formalmente judiciário só podem ser utilizados mediante a intervenção da autoridade judiciária competente”. Essa inteligência restritiva dos poderes da CPI vem de receber, ainda que por decisões liminares, o respeitável endosso dos sem. Ministro Marco Aurélio e Celso Mello. Para o Ministro Marco Aurélio – MS 23.454, liminar, 29.5.99: “A partir do momento em que elementos tidos por indispensáveis, pela Comissão Parlamentar de Inquérito, dependam da prática de atos que impliquem efetivo constrangimento, atingindo a liberdade e a privacidade de pessoas de direito privado, há de atentar-se para a necessária atuação do Estado-Juiz, de quem competir à função jurisdicional”. Asseverou de sua vez o Ministro Celso de Mello – MS 23.452, liminar, 1º 6.99: “O postulado da reserva constitucional de jurisdição consoante assinala a doutrina (J.J. Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 580 e 586, 1998, Almedina, decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de verdadeira discriminação material de competência jurisdicional emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se hajam eventualmente atribuído “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. Não me comprometo, desde agora, com as afirmações. Menos ainda, entretanto, com a posição contrária, malgrado nela não seja desarrazoada a invocação da literalidade do texto constitucional para sustentar que todos so poderes instrutórios do juiz se entendam estendidos à comissão parlamentar de inquérito – incluídos aqueles dependentes de decisão explicita sobre a admissibilidade em concreto da intromissão da prova cogitada na esfera da privacidade assegurada pela Constituição…”
Este entendimento vem se confirmando no Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento do caso MAGRI, quando da análise da Petição nº 577-5-DF pelo Plenário, em 25/03/1992, tendo o Ministro Celso de Mello, ressaltado a importância da reserva de jurisdição no caso de quebra do sigilo bancário, pois cabe ao juiz, dotado de imparcialidade, analisar a ruptura de proteção de direito individual fundamental:
(…)
A quebra do sigilo bancário – ato que, por si só, revela extrema gravidade jurídica – situa-se nesse contexto, em que valores contrastantes – como o princípio da autoridade, de um lado, e o postulado das liberdades públicas, de outro – guardam, entre si, nítidas relações de tensão dialética.
Impõe-se, portanto, que os agentes da presecutio criminis submetem-se à atuação moderadora e arbitral do Poder Judiciário, cujos órgãos, ponderando os interesses que se antagonizam, permitam, ou não, o acesso das autoridades policiais às informações concernentes às operações, ativas e passivas, realizadas pelas pessoas sob investigação com as instituições financeiras.
A relevância do direito ao sigilo bancário – que traduz, na concreção do seu alcança, uma das projeções realizadoras do direito à intimidade – impõe, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, cautela e prudência na determinação de ruptura da esfera de privacidade individual, que o ordenamento jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula tutelar de reserva.
O voto do Ministro Marco Aurélio, no mesmo julgamento pelo Tribunal Pleno, fixou o entendimento de que o sigilo bancário está sob reserva judicial, por enquadrar-se no termo DADOS, de que trata o inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal:
“Senhor Presidente, não tenho a menor dúvida quanto à competência do Supremo Tribunal Federal para pronunciar-se a respeito da matéria, deferindo, ou não, a quebra do chamado sigilo bancário.
Assentada esta premissa, leio, para minha reflexão, o que poderia ser o preceito do inciso XII do artigo 5º, da Constituição Federal. Repito: leio o que poderia ser e o faço, portanto, com adaptação – esse preceito:
“é inviolável o sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas” e aqui já operei uma adaptação, suprimindo o conectivo “e” – “de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que alei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Senhor Presidente, fosse este o teor do inciso XII do artigo 5º, não teria a menor dúvida em reconhecer a existência de quatro casos contemplados na norma. O primeiro, alusivo à “correspondência”, o segundo, referente às “comunicações telegráficas”; o terceiro, aos “dados” e o quarto às “comunicações telefônicas”. A ressalva à preservação a preservação do sigilo estaria, sob esse óptica, ligada apenas ao último caso, atinente às comunicações telefônicas.
No texto, vejo o emprego de dois conectivos “e” a revelar que temos, na verdade, não quatro casos, mas apenas dois: o primeiro, abrangendo a “correspondência”e as “Comunicações telegráficas”: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas”; o segundo, a envolver “dados” e “comunicações telefônicas”. Se estou certo neste enfoque, rechaço a possibilidade de se ter o sigilo relativo a “dados” como inafastável. O sigilo, a meu ver, pode ser afastado mediante a aplicação do que se contém na parte final do preceito, conforme a expressão: “salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Na hipótese dos autos, procura-se elucidar a ocorrência, ou não, de crime contra a Administração Pública. O aparelho policial, e, agora, o Judiciário foram acionados para definir se o referido crime restou configurado. Posso e deve ter presente o anseio da própria sociedade em ver esclarecidos os fatos que reiteradamente vêm sendo noticiados. O que se requer, nesta “Petição”, é que o Judiciário autoriza, e pode faze-lo – pelo menos estou convencido disto – a obtenção de “dados” conducentes à melhor elucidação da hipótese. “Dados” que, certamente, o próprio envolvido tem interesse em que sejam revelados, porque milita a favor dele a presunção de inocência, até prova em contrário.
Cumpre notar, que no julgamento do MS nº 23.562-DF, noticiado nas informações prestadas pela autoridade coatora, ao concluir que o sigilo bancário não está sob o princípio da reserva judicial, diz respeito às Comissões Parlamentares de Inquérito, cuja prerrogativa decorre do artigo 58, parágrafo 3º, da CF/88, e não sobre a possibilidade de autoridades administrativas terem competência para decretar a ruptura do direito ao sigilo bancário.
Destarte, a jurisprudência da Suprema Corte não acena com a possibilidade de quebra do sigilo sem ordem judicial, já que os vários julgados aqui mencionados, inclusive com relação à LC nº 75/93, de direcionam para esta exigência.
A interpretação das normas constitucionais deve ser sistemática, observando-se princípios basilares do direito, que é a razoabilidade e a proporcionalidade.
No caso, sendo o sigilo bancário, espécie de informação contida em dados, e tendo o legislador constituinte permitido a sua quebra em caso de investigação criminal por força de ordem judicial, analisando a permissão constitucional do artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, pode-se afirmar que também é viável a quebra do sigilo bancário para fins de procedimento fiscal, considerando-se a recepção da Lei nº 4.595/64 pela Constituição Federal, mas mediante prévia delibação jurisdicional: ora, se para fins de investigação de ilícitos penais, cuja gravidade social é de maior relevo, é preciso autorização judicial, o que não dizer então, de investigação em procedimento tributário, cuja violação do direito é de menor relevância em face da ruptura da liberdade pública fundamental (princípio da proporcionalidade)!
Tanto isto se afirma, que a quebra do sigilo bancário para fins de investigação em procedimento fiscal, pode resultar na constatação de crime tributário, o que por si só, justifica a observância do princípio da Reserva de Jurisdição, em observância ao artigo 5º, inciso XII, parte final, da Carta Maior.
O Superior Tribunal de Justiça acompanha este entendimento: Resp nº 90.275/CE, Relator Ministro Willian Patterson; HC nº 5.287/DF, Ministro Edson Vidigal.
O Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 2001.03.00.012307-0, Sexta Turma, julgado em 27 de abril de 2001, a Desembargadora Federal Diva Malerbi, concedendo efeito suspensivo e a liminar que lhe foi negada em 1º grau, alegando a retroatividade da Lei 10.174, de 09 de janeiro de 2001. Confira-se:
(…)
Há relevante fundamento sempre que a tese ventilada possua contornos de plausibilidade, e este ocorre no presente caso, ante a expressa vedação da utilização das informações referente a CPMF para constituição dos crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos, prevista no parágrafo 3º do artigo 11 da Lei nº 9.311/96. Disposição legal esta que somente foi alterada pela Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001.
Ante o exposto, defiro o pedido de efeito suspensivo, que poderia causar danos à parte, até o julgamento do recurso pela Turma. (Repertório IOB Jurisprudência nº 12/2001, página 332).
Urge salientar novamente, que o artigo 38, parágrafo 5º, da Lei nº 4.595/64, foi recepcionado pela Constituição Federal como lei complementar, nos termos do artigo 192 da Constituição Federal, exatamente pelo fato da quebra do sigilo nele determinada, exigir outorga jurisdicional.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ao analisar a possibilidade de quebra do sigilo bancário por força da lei infraconstitucional, exige a prévia autorização judicial:
“Habeas Corpus. Crime de Desobediência. Sigilo Bancário. Representante Legal de Banco que se recusa o fornecimento de Informações, sobre a movimentação bancária de correntista ao Ministério Público. Inteligência do Par. 5º, art. 38 da Lei 4595/64 em face da Ordem Constitucional estabelecida na Carta de 88. Salvo Conduto Concedido.
1- A nova ordem constitucional, vigente a partir de 05 de outubro de 1988, alçou o sigilo bancário ao patamar de garantia fundamental, por disposição do inciso X do art. 5ºm da Constituição Federal, submetendo sua violação ao crivo do Judiciário, que, nos termos do inciso XII do mesmo artigo, poderá autorizar sua quebra nas hipóteses e na forma prevista em lei par fins de investigação ou instrução criminal, observado o devido processo legal.
2- A interpretação do par. 5º do art. 38 da Lei 4595/64, ao estabelecer hipótese de quebra de sigilo bancário, impõe seja orientada em consonância com a baliza estabelecida na ordem legal hierarquicamente superior, de tal forma que as expressões “processo” e “autoridade” nele contidas admitem sejam entendias somente como processo judicial e autoridade judiciária, sob pena de se negar à recepção da norma em questão e se laborar em incompatibilidade vertical insanável, geradora de inconstitucionalidade.
3- Contrária ao ordenamento constitucional pátrio à interpretação da norma prevista no parágrafo 5º do artigo 38 da Lei 4595/64, da maneira como pretendida pelo recorrente e deduzida na denúncia, restando, desta forma, incabível a quebra do sigilo bancário por ordem de autoridade administrativa em processo administrativo fiscal.
(…) (HC nº 97.03.026846-3, Primeira Turma, Relator Juiz Theotonio Costa, D.J. 30.06.1998, página 263).
Excetuada assim, a hipótese de quebra do sigilo bancário sem ordem judicial, como ocorre com as Comissões Parlamentares de Inquérito, cuja questão ainda está pendente de julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal, não pode a autoridade fiscal, que é parte no procedimento e maior interessada no desfecho do processo, requisitar e ter acesso aos extratos bancários da impetrante, especialmente, quando o Supremo Tribunal Federal afasta tal prerrogativa da competência outorgada ao Ministério Público, com base na Lei Complementar nº 75/93.
De outro lado, o artigo 3º, do Decreto nº 3.724/2001, seguindo o espírito da Lei Complementar, especialmente a explicitada no artigo 2º do respectivo Decreto, que trata da indispensabilidade da quebra do sigilo para apuração dos tributos devidos à Receita Federal, traz o rol de situações consideradas pelo Chefe do Poder Executivo como indispensáveis para a quebra do sigilo bancário.
Em face das hipóteses previstas no referido dispositivo, o mandado de procedimento fiscal não indica qual situação a impetrante se enquadra, omitindo o motivo pelo qual está exigindo os extratos bancários. Apenas assevera que os valores encontrados e que teriam sido objeto de movimentação nas contas correntes, foram informados pelos Bancos quando da apuração da CPMF.
A ausência de fundamentação do procedimento administrativo, sobre os fatos investigados e não dos seus efeitos (valor da CPMF), além do enquadramento legal exigido pelo artigo 3º, do Decreto nº 3.724/2001, torna o procedimento nulo, pois não basta a mera alusão a valores movimentados em conta corrente do impetrante, sem a respectiva comparação com a declaração de rendimentos.
Ante o exposto, Julgo Procedente o pedido deduzido, e Concedo a Segurança, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, para assegurar à impetrante, o direito de abster-se de apresentar os extratos bancários solicitados, e impedir a quebra do sigilo bancário sem prévia autorização judicial, restando nulo o procedimento instaurado nos termos do artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. Custas na forma da lei. São indevidos honorários advocatícios (Súmula 512 do STF).
Oficie-se ao Relator do Agravo em andamento no TRF 3ª Região.
Publique-se, Registre-se e Oficie-se.
São Paulo, 8 de outubro de 2001.
Uilton Reina Cecato
Juiz Federal em Auxílio
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