Súmula cancelada

Crime com arma de brinquedo não pode ser punido como autônomo

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29 de novembro de 2001, 11h43

A Terceira Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça cancelou definitivamente a Súmula 174 que dizia: “No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena” (cf. mais detalhes no nosso trabalho publicado no site www.estudoscriminais.com.br).

A argumentação desenvolvida pela corrente amplamente majoritária (sete votos a um), constituída pelos ministros José Arnaldo da Fonseca -relator-, Félix Fischer, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Jorge Scartezzini, Paulo Gallotti e Fontes de Alencar foi a seguinte:

(a) o Direito penal representa um conjunto de princípios garantistas que não podem ser superados por argumentos supralegais;

(b) os argumentos supralegais podem abrir uma brecha perigosa para as liberdades fundamentais;

(c) o agravamento da pena pelo uso de arma de brinquedo fere o princípio elementar da reserva legal;

(d) esse agravamento da pena, ademais, constitui verdadeiro “bis in idem”;

(e) a arma de brinquedo deve ser considerada como circunstância judicial no momento da fixação da pena;

(f) tratar o réu que usa arma de brinquedo de forma igual ao que usa arma verdadeira significa patente violação ao princípio da proporcionalidade;

(g) argumentos supralegais valem de lege ferenda, não de lege lata;

(h) os livros e os mercados editoriais são relevantes para a construção de um Direito penal previsível e seguro;

(i) que não deve existir Súmula sobre temas não pacificados na jurisprudência;

(j) que a arma de brinquedo serve tão-somente para intimidar a vítima e configurar o delito de roubo (não para agravar a pena);

(l) que o uso de arma de brinquedo está muito mais próximo da fraude que da violência;

(m) que o “caput” do art. 157 fala em “grave ameaça” enquanto o parágrafo 2º, inc. I, fala em emprego de arma;

(n) que está proibida a analogia in malam partem no Direito penal;

(o) que arma, conceitualmente, é sempre objeto de ataque;

(p) que o juiz não pode em suas decisões adotar o mesmo simbolismo do legislador, que fabrica leis penais a cada momento par atender aos reclamos midiáticos ou sociais;

(q) que o cancelamento da Súmula 174 não significa um “salvo conduto” para a violência;

(r) que as súmulas não podem engessar eternamente o Direito;

(s) que o relevante é ter presente a incolumidade física não a psíquica da vítima para o efeito do agravamento da pena;

(t) que o conceito (histórico) de arma no parágrafo 2º, inc. I, já vinha dado pelo antigo art. 19 da LCP (arma verdadeira) etc.

Na nossa perspectiva, esse julgamento da 3ª Seção do STJ (REsp 213.054, José Arnaldo da Fonseca, j. 24.10.01), embora não tenha enfocado diretamente aspectos penais sumamente relevantes na atual doutrina penal (princípio da ofensividade, princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, abominação do perigo abstrato etc.), tem a mesma importância histórica, para a construção de um novo Direito penal, mais justo e mais proporcional, que aquela decisão do Colendo STF de 14.02.01, sobre a derrogação da primeira parte do art. 32 da LCP (dirigir veículo sem habilitação) pelo art. 309 do Código de Trânsito brasileiro (cf. STF, HC 80.362-SP, Ilmar Galvão, Informativo STF n. 230, de 28.05 a 01.06.01).

Arma de brinquedo não pode ser punida como crime autônomo

Cancelada a Súmula 174 já se nota, ainda que muito restritamente, certa inclinação de se dar “vida” ao disposto no art. 10, parágrafo 1º, inc. II, da Lei 9.437/97, que diz: “utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes”. Se esse dispositivo legal fosse válido, no delito de roubo praticado com arma de brinquedo, por exemplo, o acusado poderia ser denunciado por dois crimes: roubo mais art. 10, parágrafo 1º, inc. II, da Lei 9.437/97 (concurso material de crimes). No estupro cometido com arma de brinquedo dar-se-ia a mesma coisa.

Mas, sempre com a devida venia, não há nada mais insensato, incorreto e equivocado do que esse posicionamento! Sintetizando nossas argumentações contra essa tendência podemos adiantar o seguinte:

Primeira: A polêmica em torno da (ir) relevância penal da arma de brinquedo, que já era acentuada em relação à possibilidade de um especial agravamento da pena no delito de roubo (CP, art. 157, parágrafo 2.º, inc. I), ganhou nova dimensão com a Lei 9.437/97, que deliberou confusa, absurda e equivocadamente criminalizar o seu emprego em delito autônomo, no art. 10, parágrafo 1º, inc. II;

Segunda: Para o cancelamento da Súmula 174 do STJ (pela Terceira Seção deste Tribunal, em 24.10.01) levou-se em conta que o conceito de “arma” referido no art. 157, parágrafo 2.º, inc. I, do CP não alcançava a arma de brinquedo. Se a arma de brinquedo nunca serviu sequer para caracterizar a antiga contravenção do art. 19, muito menos é apta para justificar qualquer aumento especial de pena ou criminalização autônoma. “Arma não é brinquedo; brinquedo não é arma” (Ranulfo de Melo Freire);

Terceira: Ampliar o conceito de “arma” para abarcar também a de brinquedo significava clara lesão a princípios fundamentais do Direito Penal moderno, como os do Direito Penal objetivo, da legalidade, da ofensividade, da proibição do ne bis in idem e da proporcionalidade. É um exemplo de não-direito, isto é, exemplo de que a força do Direito convive com o direito da força;

Quarta: O disposto no art. 10, parágrafo 1.º, II, da Lei 9.437/97 constitui exemplo marcante de um grande despautério do legislador, que freqüentemente não se intimida em valer-se do Direito Penal para “tranqüilizar” (iludir) a população. Lamentável que ainda ignore o mal que o Direito Penal puramente simbólico provoca (a médio e longo prazo);

Quinta: Arma de brinquedo ou simulacro de arma conta com capacidade para atemorizar outrem, jamais com potencialidade lesiva (real) para lesar o bem jurídico (imediato) tutelado pela lei (que é um certo nível de segurança coletiva). Por isso, é que pode dar ensejo à configuração do delito de roubo, mas jamais servir de base para qualquer aumento especial de pena ou criminalização autônoma;

Sexta: A base da incriminação da arma de fogo reside na sua efetiva capacidade lesiva, que é um dado da experiência criminológica e socialmente comprovado. Inexiste na arma de brinquedo essa base empírica. Conflita com as premissas básicas da natureza a concepção de que a arma de brinquedo tenha o mesmo poder lesivo da arma verdadeira;

Sétima: A neocriminalização distanciou-se da ratio legis e acabou descrevendo uma conduta absolutamente ineficaz para lesar o bem jurídico (pretendeu-se a criminalização de uma hipótese de crime impossível);

Oitava: A redação do tipo penal é, ademais, autofágica (o seu princípio – “utilizar” – não se coaduna com o final – “para o fim de cometer crimes”) e de outro lado poderia dar ensejo a uma mensagem absurda, que seria: quem comete crime com arma de brinquedo responde por dois delitos; quem realiza o mesmo crime com arma verdadeira só pratica um delito;

Exemplo: quem cometesse estupro com arma verdadeira praticaria um só delito e seria punido menos gravemente que aquele que cometesse o mesmo delito com arma de brinquedo, que responderia por duas infrações.

Nona: Se o tipo penal em questão fosse válido, poder-se-ia falar em concurso de crimes quando a arma de brinquedo fosse utilizada em algum contexto fático delituoso. Para Nilton Macedo Machado e André Fernandes Indalencio (1) dar-se-ia um concurso de leis penais (não de crimes), que seria resolvido pelo princípio da subsidiariedade, salvo quando a pena da arma de brinquedo fosse maior que o delito cometido (exemplo: ameaça);

Décima: Essa tese, entretanto, encontraria o empecilho da divergência entre bens jurídicos (que, como se sabe, no porte de arma é imediatamente a segurança coletiva, não bens jurídicos individuais);

Décima primeira: Se a arma de brinquedo é o meio utilizado para a configuração da ameaça, levá-la em consideração novamente para efeito de uma punição autônoma constitui verdadeiro (e deplorável) bis in idem.

Décima segunda: Não contando a arma de brinquedo com nenhuma potencialidade lesiva, na verdade, nem justifica qualquer aumento especial da pena de outro delito, nem tampouco pode configurar crime autônomo, razão pela qual devemos nos posicionar contra qualquer hipótese de concurso de crimes ou mesmo concurso aparente de leis penais.

Autores

  • é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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