A OAB e o Exame de Ordem

Leia o artigo que derrubou o presidente do Tribunal de Ética da OAB-SP

Autor

5 de março de 2001, 0h00

(A publicação do texto que se segue no jornal Tribuna do Direito gerou a destituição do advogado Raul Haidar do cargo de presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB paulista.)

“A seleção de bacharéis para o exercício da advocacia deve ser tão rigorosa como o procedimento de escolha de magistrados e agentes do Ministério Público.”

A frase acima é do Ministro Humberto Gomes de Barros, do STJ em julgamento publicado no Diário da Justiça da União de 1º/8/2000 e, ao que nos parece, contém uma visão equivocada do Exame de Ordem, da qual, lamentavelmente, compartilham alguns advogados incumbidos de formular as questões submetidas aos bacharéis que desejam tornar-se advogados.

Como costuma dizer certo jornalista, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Ou seja: quando alguém faz concurso para a Magistratura ou para o Ministério Público, não está apenas pretendendo exercer uma função “essencial à administração da Justiça”, como é a do advogado (Constituição Federal, art. 133), mas aspira obter cargo público.

Função não é o mesmo que cargo. Claro está que Juizes e Promotores não devem considerar suas funções como um simples emprego, embora alguns assim as possam enxergar. Os que procuram essas carreiras, certamente para as quais se dizem vocacionados, sabem desde logo quanto vão receber de vencimentos e outras vantagens decorrentes do cargo. Tais pessoas não precisam, como os advogados, montar escritórios ou participar daqueles já montados, o que implica riscos e investimentos aos quais não se sujeitam os que escolhem o cargo público.

O advogado encontra uma série de dificuldades para ter assegurada a sua sobrevivência e a de seus familiares. Sei do que estou falando e ainda sinto bem vivo o sabor de toda a “grama” que andei comendo no início de meu escritório, lá se vão cerca de 30 anos. Não sendo filho de advogado, nem tendo parentes próximos na carreira, ainda trabalho mais de 12 horas por dia para pagar as contas no fim do mês.

Se aquele que se inscreve na OAB, após ser aprovado no Exame de Ordem, tivesse assegurado um salário razoável, assistência médica gratuita, férias remuneradas, auxílio moradia, aposentadoria integral e tantas outras vantagens (todas justas sem dúvida) que se concedem aos Juizes e Promotores, teria razão o autor da frase com que iniciei este artigo.

A Advocacia, porém, é atividade repleta de riscos e incertezas, embora permita, infelizmente como exceção, que alguns consigam formar ao longo da vida patrimônio maior do que o que possa amealhar com o produto de seu trabalho qualquer magistrado ou promotor.

A Magistratura e as demais carreiras jurídicas do serviço público, por seu turno, garantem aos seus membros uma vida estável, sem grandes riscos ou incertezas, além de lhes proporcionar uma aposentadoria digna na velhice ou mesmo em pleno vigor da capacidade intelectual, possibilitando-lhes a oportunidade de se tornarem concorrentes privilegiados dos advogados, aumentando as dificuldades destes.

Por outro lado, são comuns os casos de advogados obrigados a trabalhar até na mais avançada idade, já que o INSS nos paga uma aposentadoria ridícula. Isso já fez, por exemplo, que OAB-SP isentasse de anuidades aqueles que tenham mais de 70 anos de idade e 35 de contribuições, enquanto são cada vez mais utilizados os serviços assistenciais da CAASP, numa demonstração inequívoca de que nossa profissão empobreceu.

Feitas essas considerações, parecem-nos injustos e fora da realidade alguns critérios adotados no Exame de Ordem, onde questões são elaboradas como se todos os bacharéis tivessem tido formação escolar de primeiro mundo, desde o ensino básico em caríssimas escolas particulares até a Faculdade da USP, da PUC ou do Mackenzie.

Além disso, mesmo sendo advogado há cerca de trinta anos e especializado em Direito Tributário, já encontrei, em alguns Exames de Ordem, na prova da primeira fase, questões tão específicas e tão controvertidas, que poucos são os profissionais que as podem responder com segurança sem demorada consulta à legislação e mesmo à doutrina e jurisprudência.

Claro está que se pretende usar o Exame de Ordem como uma espécie de “filtro” para corrigir a má qualidade do ensino jurídico. Também é evidente que bacharéis em Direito formados em fábricas de diploma, dessas que possuem uma filial em cada esquina, como se fossem redes de lanchonetes ou filiais de lojas de tecidos, devem ser examinados com rigor, pois muitos deles fizeram o primeiro e o segundo graus nesses supletivos duvidosos onde se pretende ensinar em algumas semanas aquilo que deveria ser aprendido em mais de 10 anos.

O Exame de Ordem deve ser rigoroso, sem dúvida. Mas não pode conter questões específicas só resolvidas por especialistas, pois não é um exame para especialistas. Também não pode exigir que todos os bacharéis tenham o mesmo nível intelectual, se condições para isso não lhes foram disponibilizadas pela sociedade, num País que não investe corretamente em educação e onde o ensino superior não é fiscalizado com eficiência.

Não se pode imaginar que a OAB, através do Exame de Ordem, deseje ou procure fazer uma espécie de “reserva de mercado” para, reprovando muita gente, restringir a concorrência na profissão. Advocacia não é comércio e portanto não se pode falar em “mercado” ou “concorrência”.

Sem falar no risco de se cristalizar barreiras sociais e raciais, como a que se verifica no levantamento mostrando que, embora represente 54% da população, o contingente branco ocupa 80% do universo de formandos do país; enquanto os negros e pardos, com 45,2% da população, representam apenas 15,7% dos diplomados no Brasil.

Não se pode pretender limitar, numa Democracia verdadeira, o direito de qualquer pessoa que pretenda exercer esta ou aquela profissão. Se os 170 milhões de brasileiros resolverem estudar Direito, ninguém pode impedir, na forma do que determinam o artigo 5º inciso XIII da Constituição Federal e o artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os únicos limites possíveis são os estabelecidos pela parte final do mencionado inciso XIII, onde se diz que o exercício da profissão deve ser feito “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Essas qualificações são aferidas pelo Exame de Ordem que, previsto em Lei, é absolutamente legal. Mas ele não pode exigir “qualificações profissionais” que não sejam proporcionadas pelas Faculdades de Direito cujos cursos sejam reconhecidos pela autoridade competente.

A Constituição, no artigo 205, manda que a educação vise o pleno desenvolvimento da pessoa e sua qualificação para o trabalho, enquanto no artigo 206 determina que o ensino deve ser ministrado com garantia de padrão de qualidade.

Dando cumprimento a esse mandamento, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), conhecida como “Lei Darcy Ribeiro”, em seu artigo 43, afirma que uma das finalidades da educação superior é “formar diplomados… aptos para a inserção em setores profissionais…”.

Se no caso do ensino jurídico a lei não vem sendo cumprida, vez que boa parte das Faculdades de Direito não conseguem “formar diplomados… aptos para a inserção em setores profissionais…”, deve-se exigir que tais escolas aprimorem seus métodos, invistam em qualidade, enfim, melhorem o nível de seu ensino.

Não se pode, porém, a pretexto de combater o baixo nível do ensino, criar no Exame de Ordem um sistema de avaliação que ultrapasse os limites dos programas oficiais de ensino, exigindo-se dos candidatos questões que não lhes foram transmitidas e que nem precisam constar das matérias lecionadas, por se tratarem de assuntos muito específicos, que só interessam a profissionais altamente especializados, ou assuntos que só devem e podem ser examinados em cursos de Especialização, Mestrado ou Doutorado.

O Exame de Ordem, ao exigir tais conhecimentos , está ultrapassando os limites estabelecidos nas “qualificações profissionais que a lei” estabeleceu, violando o inciso XIII do artigo 5º da Constituição e negando vigência ao artigo 43 da Lei 9.394/96, já que os programas oficiais de ensino são fixados para “formar diplomados… aptos para a inserção em setores profissionais…”.

Independentemente dos aspectos legais aqui examinados, acredito que devemos atentar para aspecto que transcende os limites da Lei, que é o relacionado com a Justiça e a Ética.

Evidentemente, não é justo que uma corporação de ofício, por mais relevantes que sejam os seus propósitos e necessidades, estabeleça critérios de admissão não para avaliar se conhecimentos transmitidos foram assimilados, mas para impedir ou limitar o acesso das pessoas que exerceram o direito de escolher determinada profissão.

Cabe, sim, à OAB a incumbência de selecionar tecnicamente os profissionais que irão integrar seus quadros. Mas seria despropositado imaginar que há uma segunda seleção? A seleção que será feita pela própria sociedade. São grandes as chances de o mau profissional ser expelido do ramo. O mesmo não se pode dizer do candidato que, embora vocacionado, tenha sido barrado não por sua culpa, mas por causa de um exame estrábico. Como conviver com a idéia de que se ceifou, prematuramente, a carreira dessa pessoa?

Finalmente, releva examinar a questão sob o aspecto da Ética. Não da Ética profissional, política ou sociológica. Mas da Ética sem adjetivos, daquela cujas raízes estão nos filósofos gregos e nas lições de São Tomás de Aquino, que é bem simples e que se resume na máxima de que não devemos fazer a outrem o que não desejamos que nos façam.

Ao exigir conhecimentos que não foram transmitidos na maioria esmagadora das Faculdades por não fazerem parte dos programas oficiais do ensino jurídico e ao criar perguntas que são verdadeiras “pegadinhas” colocadas não para aferir conhecimentos, mas para prejudicar os candidatos, a OAB está se afastando do justo e do ético, na medida em que tal comportamento pode ser interpretado como uma espécie de medo dos mais jovens ou vingança contra os que não tiveram a oportunidade de freqüentar as melhores escolas. Isso não é justo nem ético. A Advocacia, cabe lembrar, é a Profissão da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.

Revista Consultor Jurídico, 5 de março de 2001.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!