Inconstitucionalidade da inspeção feita por autoridade estadual
10 de julho de 1999, 20h46
INSPEÇÃO DO TRABALHO POR AUTORIDADE ESTADUAL OU MUNICIPAL – INCONSTITUCIONALIDADE – ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Alexandre Demetrius Pereira
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo
e-mail: [email protected]
Tivemos oportunidade de visualizar, em várias oportunidades, a atuação de autoridades estaduais, integrantes das secretarias de saúde, na inspeção e fiscalização do meio ambiente de trabalho das empresas, fazendo exigências e, por muitas vezes, chegando a lavrar multas, indicando como fundamento legal dispositivos da CLT e das Normas Regulamentadoras (NR’s), editadas pelo Ministério do Trabalho.
Por outro lado, vê-se alguns entes da federação (Estados e Municípios) a legislar sobre o tema, impondo novas obrigações além daquelas constantes na legislação federal, sob pena pecuniária, bem como suas autoridades fiscalizatórias exigirem das empresas o cumprimento de tais obrigações inovadoras da legislação federal, sob a ameaça da imposição de autos de infração.
Sem querer exaurir o tema neste artigo, é mister que se faça uma análise da legalidade de tais procedimentos, para que se conclua por seu cabimento ou não, em face do que dispõe a Constituição da República.
DOS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS REGULADORES DA INSPEÇÃO DO TRABALHO
Inicialmente é de se citar o que preceitua o art. 21, XXIV, da Constituição Federal :
Art. 21 . Compete à União:
………………….
XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho
Em seu art. 200, II e VIII, preceitua:
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
………………
II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador.
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Assim sendo, dispõe a Constituição da República sobre a inspeção do trabalho em duas passagens, uma ao definir a competência da União, outra, em definir a competência do SUS (sistema único de saúde).
O SUS, como preceitua o art. 198 da Constituição e seus incisos, se constitui em rede hierarquizada e regionalizada, tendo direção única em cada esfera de governo.
Em princípio, pois, (este o principal argumento das autoridades fiscalizadoras), todas as esferas de governo têm competência para a fiscalização e inspeção do trabalho, haja vista que, como se disse, o SUS tem descentralização, atividade e direção em cada esfera da federação.
Uma melhor análise, porém, mostrará não ser esta a melhor interpretação.
DA NATUREZA DA COMPETÊNCIA ATRIBUÍDA À UNIÃO EM MATÉRIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO
Conforme esmerada doutrina, em termos de competência constitucional, deve-se fazer a distinção entre competências privativas e exclusivas.
A competência privativa, não obstante o nome, seria aquela que, conferida a determinado ente federativo prioritariamente, não obsta que o ente beneficiado a delegue a outro, nos limites e forma permitidos na Constituição.
Já a competência exclusiva, ao contrário da anterior, não permite ao ente agraciado delegar de qualquer forma sua competência a outro congênere.
Essa a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 16a Edição, pg. 480) para quem: “…A diferença que se faz entre competência exclusiva e competência privativa é que aquela é indelegável e esta é delegável. Então, quando se quer atribuir competência própria a uma entidade ou a um órgão com possibilidade de delegação de tudo ou de parte, declara-se que compete privativamente a ele a matéria indicada. Assim, no art. 22 se deu competência privativa (não exclusiva) à União para legislar sobre: […], porque parágrafo único faculta à lei complementar autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. No art. 49, é indicada a competência exclusiva do Congresso Nacional. O art. 84 arrola a matéria de competência privativa do Presidente da República, porque seu parágrafo único permite delegar algumas atribuições ali arroladas..”.
Como se vê, diante de uma competência constitucional, teremos duas possibilidades: será ela privativa ou exclusiva, conforme a Carta Magna possibilite ou não a delegação.
Assim, vejamos.
A Constituição, ao contrário do que faz em seu art. 22, parágrafo único, não possibilita, em qualquer passagem de seu art. 21, a delegação de competências.
Assim pensa MICHEL TEMER (Elementos de Direito Constitucional, Ed. Malheiros, 15a Ed., pg. 77): “…Dos arts. 21 e 22 se extrai que a União tem competências expressas e enumeradas. São também exaustivas, pois exaurem, pela enumeração, as matérias que lhe cabem”.
Não é outro o pensamento de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS , ao comentar a Constituição Federal (Comentários à Constituição do Brasil, Ives Gandra da Silva Martins e Celso Ribeiro Bastos, Ed. Saraiva, pg. 2/3): “..O art. 21 é dedicado à competência de atribuições da União …”.
Assim, temos pela frente claro caso de competência constitucional exclusiva sendo vedada a delegação.
Por outro lado, igualmente deve-se fixar propriamente as competências legislativas e administrativas.
Como se sabe, grande parte da doutrina separa tais competências, afirmando que a competência legislativa, como o nome diz, dá a prerrogativa de legislar e a administrativa de atuar naquele âmbito específico de competência.
Não obstante, preferimos concordar com IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (op. cit., pg. 3), para quem: “A dificuldade, todavia, que se coloca é que, regido o país pelo princípio da legalidade, nenhuma entidade federativa pode agir, sem ter legislação anterior que a autorize, de tal forma que tanto o art. 21 quanto o art. 22 cuidam, em verdade, de competência para legislar sobre aquelas matérias. O mesmo se pode dizer no que concerne à competência comum e/ou concorrente, visto que a ação é sempre precedida de legislação…”
Assim sendo, somente podendo a Administração agir quando previamente autorizada por lei, a diferença entre competência legislativa e administrativa fica muito reduzida de conteúdo, porquanto a ação administrativa sempre será necessariamente precedida de legislação.
Portanto, conclui-se correto afirmar que a competência para agir deve corresponder igualmente à competência para legislar sobre a matéria.
A primeira conclusão que se extrai é que, em sendo a competência do art. 21 exclusiva, somente a União poderá organizar, manter e inspecionar o trabalho. Em sendo a competência para agir (competência administrativa) corolário lógico e necessário da competência para legislar (competência legislativa), conclui-se que somente a União poderá legislar sobre organização, manutenção e inspeção do trabalho.
Aliás, a matéria de organização, segurança e meio ambiente do trabalho é componente do Direito do Trabalho.
Esse o pensamento de SÉRGIO PINTO MARTINS (Direito do Trabalho, 3a Edição, Ed, Malheiros, pg. 43/44), que, adotando as orientações do Prof. OTÁVIO BUENO MAGANO, preceitua a divisão da disciplina do Direito do Trabalho na seguinte forma: “Preferimos adotar a divisão utilizada pelo Prof. Magano, ao falar de Direito Individual do Trabalho, Direito Tutelar do Trabalho e Direito Coletivo do Trabalho”
E prossegue: “No Direito Tutelar do Trabalho versaremos sobre regras que tratam da proteção do trabalhador, como as normas de segurança e medicina do trabalho, regras sobre a jornada de trabalho, sobre os repousos do trabalhador, sobre a fiscalização trabalhista, etc.”
Vê-se, pois que o Direito Tutelar do Trabalho é parte do Direito do Trabalho.
Ora, conforme o art. 22, I , da CF é privativa da União a competência para legislar sobre Direito do Trabalho.
Logo, repita-se: somente a União poderá legislar criando obrigações relativas ao meio ambiente do trabalho, bem como somente ela poderá fiscalizar o cumprimento de tais obrigações.
DO ÂMBITO DE COMPETÊNCIA DO SUS
Em se afirmando a competência exclusiva da União para legislar e agir em matéria de medicina, segurança, inspeção e meio ambiente do trabalho em geral, resta ainda fixar, dentro das normas constitucionais, o âmbito correto de competência do SUS (sistema único de saúde).
Diz a Constituição Federal que o SUS, sendo um conjunto hierarquizado e descentralizado de ações mantidas pelo Poder Público, nos diversos níveis de governo, terá as competências de:
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
………………
II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador.
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Analisemos, pois, tal competência, nos termos postos pela Constituição Federal.
Inicialmente diz a Constituição que caberá ao SUS: 1) executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica; 2) executar ações relativas à saúde do trabalhador.
Logo após, diz caber ao SUS colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Assim, tem-se que o SUS deve inicialmente realizar ações diversas relativas à saúde do trabalhador. Ora, nenhuma competência lhe atribuiu a Constituição Federal para INSPECIONAR ou FISCALIZAR o meio ambiente do trabalho, mas sim para que tenha ações diversas em prol da saúde do trabalhador, dentre as quais, v.g., a pesquisa de novas técnicas para a melhoria das condições de saúde do trabalho, a realização de exames médicos periódicos, etc, dentre as quais não está, de forma nenhuma incluída a inspeção do trabalho.
No mesmo sentido, colaborar na proteção do meio ambiente não significa dar atribuições ao SUS de inspecioná-lo ou fiscalizá-lo. Ora, quem colabora atua em conjunto, em participação secundária, que obviamente não poderá ser a inspeção, atividade primordial.
Logo, nenhuma atribuição constitucional tem o SUS para inspecionar o meio ambiente do trabalho, sendo inconstitucional qualquer lei que venha a conferir tal atribuição a este órgão.
Vejamos, agora, o que diz a legislação ordinária.
Dada a descentralização do sistema, o SUS terá direções e atribuições diversas conforme o ente federativo a que pertencer e conforme definir a lei (pois a Carta Magna expressamente delega à lei a fixação das competências do SUS).
É o SUS disciplinado pela Lei N.º 8.080, de 19 de setembro de 1990 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Diz referido diploma em seu art. 9o :
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:
I – no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II – no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III – no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
Fica claro, assim, as atribuições dos órgãos para o exercício das atribuições do SUS. No âmbito federal, será competente o Ministério da Saúde. Nos Estados e Municípios as respectivas secretarias de saúde.
Veja-se, agora, a competência deferida pela lei a cada esfera governamental (os grifos não constam no original).
Seção II
Da Competência
Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:
……………
II – participar na formulação e na implementação das políticas:
…………..
c) relativas às condições e aos ambientes de trabalho;
V – participar da definição de normas, critérios e padrões para o controle das condições e dos ambientes de trabalho e coordenar a política de saúde do trabalhador;
Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
IV – coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços:
a) de vigilância epidemiológica;
b) de vigilância sanitária;
c) de alimentação e nutrição; e
d) de saúde do trabalhador;
VII – participar das ações de controle e avaliação das condições e dos ambientes de trabalho;
Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
III – participar da execução, controle e avaliação das ações referentes às condições e aos ambientes de trabalho;
IV – executar serviços:
a) de vigilância epidemiológica;
b) vigilância sanitária;
c) de alimentação e nutrição;
d) de saneamento básico; e
e) de saúde do trabalhador;
Percebe-se, pois, que, em nenhuma passagem a lei atribuiu ao SUS a inspeção do meio ambiente do trabalho, pois, participar de políticas, executar serviços ou coordená-los em caráter complementar não significa poder de polícia fiscalizatório.
Ao contrário, competirá a inspeção do trabalho, em âmbito federal, ao MINISTÉRIO DO TRABALHO e não ao SUS (vinculado e exercido pelo Ministério da Saúde), conforme dispõe a CLT, em seu art. 626:
Art. 626. Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.
DO POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Instado a se manifestar, o plenário do Supremo Tribunal Federal, através do julgamento da liminar na ADIMC-1893/RJ – Rel. Min. Marco Aurélio, fixou, por unanimidade, o posicionamento do Pretório Excelso sobre a matéria.
Por unanimidade, foi conferida liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pela Confederação Nacional da Indústria, nos seguintes termos:
ADIMC-1893 / RJ
ACAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – MEDIDA CAUTELAR
Relator
Ministro MARCO AURELIO
Publicação
DJ DATA-23-04-99 PP-00002 EMENT VOL-01947-01 PP-00141
Julgamento
18/12/1998 – Tribunal Pleno
Ementa
SEGURANÇA E HIGIENE DO TRABALHO – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. Ao primeiro exame, cumpre à União legislar sobre parâmetros alusivos à prestação de serviços – artigos 21, inciso XXIV, e 22, inciso I, da Constituição Federal. O gênero “meio ambiente”, em relação ao qual é viável a competência em concurso da União, dos Estados e do Distrito Federal, a teor do disposto no artigo 24, inciso VI, da Constituição Federal, não abrange o ambiente de trabalho, muito menos a ponto de chegar-se à fiscalização do local por autoridade estadual, com imposição de multa. Suspensão da eficácia da Lei nº 2.702, de 1997, do Estado do Rio de Janeiro.
Observação
Votação: Unânime.
Resultado: Deferida.
N.PP.:(13). Análise:(RCO). Revisão:(AAF).
Inclusão: 06/05/99, (MLR).
Partes
REQTE. : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI
ADVDOS. : LEONARDO GRECO E OUTROS
REQDO. : GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
REQDA. : ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
O mesmo pronunciamento parece ter fundamentado o acórdão noticiado no Informativo 142 do STF:
Informativo 142 – STF
Saúde do Trabalhador e Competência
Por aparente ofensa ao art. 22, I, da CF, que determina a competência privativa da União para legislar sobre direito do trabalho, o Tribunal, em ação direta proposta pela Confederação Nacional da Indústria-CNI, por maioria, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar para, dando interpretação conforme a CF, suspender relativamente aos empregados celetistas, sem redução de texto, a alínea b do inciso III do art. 3º da Lei 2.586/96 do Estado do Rio de Janeiro, que estabelece normas de prevenção das doenças e critérios de defesa da saúde dos trabalhadores em relação às atividades que possam desencadear lesões por esforços repetitivos – LER. Vencido, em parte, o Min. Marco Aurélio que, dando interpretação conforme a CF, suspendia relativamente aos empregados celetistas, sem redução de texto, toda a Lei nº 2.586/96. Vencidos ainda, em parte, os Ministros Néri da Silveira, relator, e Carlos Velloso que indeferiam integralmente o pedido. ADInMC 1.862-RJ, rel. Min. Néri da Silveira, 18.3.99.
Muito bem andou a Corte Suprema ao fixar o posicionamento constitucional sobre a matéria, em linhas simples e sóbrias, evitando a superfetação de entes fiscalizatórios, incompetentes para tanto, em voracidade fiscal demasiada e, muitas vezes, a exigência ilegal por parte de fiscais inescrupulosos, como se está a ver nos noticiários televisivos.
CONCLUSÕES
1. A competência da União em matéria de organização, manutenção e inspeção do trabalho é exclusiva, não havendo espaço para a legislação e atuação administrativa dos Estados em referido âmbito.
2. O SUS (sistema único de saúde) não tem competência constitucional ou legal para a fiscalização do meio ambiente do trabalho, sendo tal competência conferida expressamente ao Ministério do Trabalho pela Constituição Federal.
3. É elogiável a posição do Supremo Tribunal Federal em fixar posição sobre a matéria, evitando a superfetação de esferas governamentais e órgãos administrativos diversos.
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