Lei cidadã

Aniversário da Constituição: 20 anos de sonhos e esperanças

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7 de outubro de 2008, 14h49

Brasília, noite de 5 de outubro de 1988. Quando o deputado Ulisses Guimarães ergueu o braço exibindo o exemplar da nova Constituição que acabara de ser aprovada, nascia uma nova era de sonhos e esperanças para o povo brasileiro.

Deixava-se para trás os “anos de chumbo”, duas décadas sem eleições diretas, sem que o povo pudesse escolher o presidente da República, cuja escolha direta só veio no ano seguinte, com a eleição de Collor em dois turnos, depois de 25 anos de governos impostos pela força.

Iniciava-se uma nova fase, com o estabelecimento de uma democracia no País, regime ao qual o Brasil vai aos poucos se habituando, pois fora exercido anteriormente apenas em períodos espaçados.

Democracia significa governo do povo. Daí a norma que assegura, no texto constitucional (artigo 1º parágrafo único) que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Uma Constituição destina-se a estabelecer a forma de governo, organizar os seus poderes, ditar as regras básicas da sociedade, fixar garantias aos direitos e definir com clareza os deveres dos cidadãos.

Uma das críticas que a atual Constituição recebe é ser muito específica, por agasalhar normas e minúcias que em outros países são assuntos tratados apenas na legislação comum, as chamadas “leis ordinárias”. Mas num país como o nosso, em que a tradição democrática ainda está sendo construída, isso é natural. Todos sabem das dificuldades de se aprovar uma lei e das facilidades em alterá-la ou revogá-la, o que faz com que normas que poderiam ficar restritas ao nível das leis ordinárias acabem se integrando ao texto constitucional, para lhes conferir maior relevância e garantir um cumprimento mais eficaz. Outra crítica injusta como veremos a seguir, aponta ser excessivo o número de seus 250 artigos e 95 disposições transitórias.

A sétima carta — Desde que o Brasil se tornou independente teve sete constituições, inclusive a atual, mas apenas duas verdadeiramente democráticas, ou seja, elaboradas por uma assembléia constituinte eleita diretamente pelo povo em eleições livres: a de 1988 e a de 1946.

A primeira, datada de 25 de março de 1824 (por isso o nome da conhecida rua do comércio paulistano) foi aprovada pelo imperador Pedro I e compunha-se de 179 artigos. Não se tratava de uma democracia no sentido amplo, pois o poder era do imperador, embora se estabelecesse que “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, norma que, com ligeiras alterações, ainda vigora hoje. Nessa Constituição o Brasil tinha uma religião oficial, a Católica Apostólica Romana e outras eram admitidas mas apenas para culto em residências, não se admitindo templos.

Com a proclamação da República tivemos a nossa segunda Constituição, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, esta já afastando a religião oficial, tornando o Brasil um país laico e seu texto era relativamente enxuto: apenas 91 artigos e mais 8 disposições transitórias. Foi a mais duradoura até agora: 43 anos.

Com os diversos movimentos políticos que tomaram corpo no início do século vinte e especialmente com as idéias libertárias introduzidas no país por imigrantes vindos da Europa, dentre os quais os anarquistas e socialistas, a classe média brasileira passou a reclamar por reformas nas áreas econômicas e sociais. Contrapondo-se a esses movimentos, havia setores da classe média, proprietários rurais especialmente, que eram refratários àquelas reformas, temerosos por possíveis perdas de poder.

Dentro desse contexto, surgem diversos movimentos , o mais expressivo deles em São Paulo, que resultou em conflitos armados em 1932, (Revolução Constitucionalista) reclamando por uma nova ordem constitucional que limitasse o poder do governo Getúlio Vargas, ditador imposto em 1930 pelo chamado “governo provisório” e que acabou eleito de forma indireta quando foi afinal promulgada, em 16 de julho de 1934, a nossa terceira constituição.

Essa constituição, de 1934, já tinha mais que o dobro de artigos constantes na anterior (de 1891): passou a ter 187 artigos e mais 26 normas transitórias. Era uma espécie de “carta de privilégios”, onde o ditador Getúlio concordava com uma ordem constitucional, desde que ele a controlasse. Como uma espécie de “brinde” a alguns de seus apoiadores ou para manter calados eventuais inimigos, essa CF concede imunidade tributária a jornalistas, escritores e professores, numa óbvia infração ao princípio da igualdade, que também reconhecia. Não era um texto para durar.

Nossa quarta Constituição surge pouco depois, no golpe de estado de 10 de novembro de 1937, também contendo 187 artigos, trazendo nítidos contornos ditatoriais, admitindo a pena de morte (artigo 122) e em seu penúltimo artigo afirma: “É declarado em todo o País o Estado de Emergência”. O caudilho gaúcho transforma-se simplesmente num ditador, através de Constituição que não prevê sequer o cargo de vice-presidente.


No preâmbulo dessa Constituição, o ditador explica os fundamentos ideológicos do golpe, que afirma necessário para atender “… ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente”.

Nesse contexto é que se insere o artigo 122 ao prever a pena de morte para crimes relacionados com a soberania nacional ou “a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição” se isso for com auxílio de “organização internacional” ou ainda “tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social;”

Também era punível com a pena de morte o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade.

Foi sob as normas da Constituição de 1937 que se fizeram inúmeras mudanças na estrutura do estado brasileiro, quase todas através de decretos-leis. E pior: a polícia política cometia inúmeros crimes, os tais “remédios, de caráter radical e permanente” os mais comuns deles sendo as prisões irregulares, a suspensão dos direitos civis e políticos, as torturas, etc.

No campo social e trabalhista o governo ditatorial de Getúlio implementou normas para a garantia de direitos sociais, instituindo a previdência social, a Consolidação das Leis do Trabalho, os sindicatos, etc., com o que a propaganda oficial o anunciava como o “pai dos pobres”.

A sucessão de abusos, especialmente em relação à perseguição política e ao absoluto desrespeito aos direitos humanos, fez com que Getúlio fosse deposto em 29 de outubro de 1945, substituído por José Linhares, então presidente do Supremo Tribunal Federal, que exerceu a Presidência por convocação das Forças Armadas.

Para termos uma idéia aproximada do que se fazia no Brasil à época, basta mencionar que o tratamento dado a dois presos políticos, os comunistas Harry Berger e Luiz Carlos Prestes, fez com que o advogado Sobral Pinto pedisse ajuda à União Internacional de Proteção aos Animais (Uipa) para fazer cessar as torturas a que estavam sendo submetidos. O pedido teve repercussão internacional, com o que as torturas cessaram.

A nossa quinta constituição foi promulgada em 19 de setembro de 1946, através da Assembléia Nacional Constituinte, da qual participaram todos os partidos então existentes, bem como os políticos cujos direitos haviam sido suspensos e que foram anistiados. Eram 218 artigos e 36 disposições transitórias que vigoraram durante pouco mais de 20 anos.

Essa Constituição decorreu do afastamento de Getúlio em 1945 mesmo ano em que, por eleição direta e com pouco mais de 3 milhões de votos, foi eleito o general Eurico Gaspar Dutra, que exerceu o mandato por cinco anos, até 31de janeiro de 1951, quando foi sucedido por Getúlio, cujo passado de ditador não impediu sua eleição por votos diretos com quase 4 milhões de votos, exercendo seu mandato até suicidar-se em 24 de agosto de 1954.

Em 24 de janeiro de 1967 foi promulgada pelo Congresso Nacional a nossa sexta Constituição, composta de 189 artigos, a mais curta de nossa história, pois vigorou somente por 2 anos, 8 meses e 23 dias, substituída que foi pela Emenda Constitucional 1, imposta pela junta militar que desde 31 de março de 1964 tomara o poder e se auto-concedeu poderes de emendar a Carta Magna. Essa emenda tinha 217 artigos.

Embora muitas pessoas entendam que essa “emenda” deva ser considerada como uma sétima Constituição, os estudiosos do direito não a consideram como tal, já que legitimada apenas pela força. Pelo artigo 181, a emenda resolve excluir “de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução” e o seu parágrafo único dá poderes absolutos ao Presidente da República – “eleito” de forma indireta por um Congresso manietado, em período em que havia censura prévia nas comunicações.

Somente em 5 de outubro de 1988, ou seja, mais de 21 anos após a sexta, é que tivemos realmente a sétima Constituição, que vigora até hoje.

Com 250 artigos e 95 disposições transitórias a atual Constituição já sofreu 62 emendas, incluídas as 6 emendas da revisão constitucional de 1994.

Como vimos pela análise das anteriores, não nos apresenta como exagerado esse número de artigos, que tem sido criticado. Ao que parece, alguns desses críticos preocupam-se em demasia com a quantidade e pouco com a qualidade do texto.

A Constituição de 1946, considerada por todos como a única democrática dentre as anteriores, possuía 218 artigos e 36 disposições transitórias. Somando tudo, 254 normas, ante as 345 das atuais, ou seja, cerca de 35% a mais.

Não há, contudo, como estabelecer comparações entre o momento histórico em que vivíamos em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o de 1988.


As mudanças sociais, econômicas e políticas que ocorreram nesse espaço de mais de duas décadas transformaram o mundo. Não nos parece necessário mencioná-las.

Cresceu o texto constitucional e surgiram emendas em decorrência do dinamismo da sociedade brasileira, das necessidades cada vez mais freqüentes de novas definições normativas, da imperiosa obrigação de tentar adaptar o país à nova ordem mundial imposta pela globalização da economia, etc.

As comparações entre a nossa Constituição e a de outros países são inúteis, pois o texto constitucional deve obedecer à vontade do povo, manifestada pelos seus representantes. Se eventualmente alguns dos constituintes de 88 fizeram inserir alguma bobagem no texto, é bom lembrar que eles não foram extra-terrestres, mas sim pessoas que o povo elegeu. Cada povo tem o representante que merece, especialmente quando pode escolher pelo voto.

A Constituição da Alemanha, por exemplo, tem 146 artigos e mais 52 emendas, enquanto a da França tem apenas 89 artigos. Isso nada tem a ver com o nível cultural ou econômico de um ou de outro desses países, considerados democráticos e pertencentes ao chamado “primeiro mundo”.

A França é melhor do que a Alemanha porque sua Constituição tem um número menor de artigos? Essa pergunta não faz sentido e não merece resposta, seja num contexto histórico ou político. Há quem diga apenas que os alemães são naturalmente prolixos!

O que nos interessa apenas é saber se temos uma Constituição que nos ajuda ou nos atrapalha. O resto é resto.

Embora para muitos brasileiros criticar nossa Constituição e nossas leis seja quase um esporte, a ponto de imaginarem que mudar uma ou outras seja a panacéia de todos os nossos males, a verdade é que no momento temos uma Constituição adequada à nossa sociedade. E o que é isso?

Como dissemos no início, a “Constituição destina-se a estabelecer a forma de governo, organizar os seus poderes, ditar as regras básicas da sociedade, fixar garantias aos direitos e definir com clareza os deveres dos cidadãos.” Em última essência, a Constituição serve para regular o país, estabelecendo normas para a consecução do bem comum, o que se viabiliza com o atendimento das necessidades sociais que, em apertada síntese, significam: viver num país justo.

Chama a atenção o fato de que nas constituições anteriores o capítulo destinado aos direitos dos cidadãos vinha sempre na parte final do texto, como se isso já indicasse ser matéria menos importante.

Na Constituição de 1967 tais direitos estavam a partir do artigo 140; na de 1946 só a partir do artigo 141; na Constituição de 1937 só a partir do artigo 122; na de 1934 só a partir do artigo 113; encontrando-se no artigo 72 e seguintes na Constituição de 1891 (a primeira da República), enquanto na Constituição de 1824 tais direitos só eram mencionados no artigo 179, aliás o último.

Esse posicionamento dos direitos individuais dos cidadãos parece ser emblemático, pois quanto menos importância se lhes deu o constituinte, mais para o fim dos textos constitucionais foi sendo relegado. Não se aplica aqui, a idéia de que se deixa o “mais importante” para o fim. Pelo contrário: primeiro se procurava tratar do que se reputava como mais relevante: o Estado, o poder, as finanças. Direitos do cidadão? Isso ficava para o fim, para quando não se tinha mais nada a tratar.

Política

Na organização política, por exemplo, vemos que o Título IV, ao tratar dos poderes constituídos, coloca em primeiro lugar o Legislativo, como corolário de que, representando o povo, é ele que dá legitimidade aos demais, que pode criar obrigações ao instituir as leis. Afinal, é este o Poder que pode reformar a Constituição.

Numa análise menos aprofundada, pode parecer que o Legislativo é um organismo mal estruturado, sujeito mesmo ao cometimento das maiores barbaridades, inclusive em desvios de conduta, tais como corrupção, nepotismo, etc. Mas, é bom lembrar que pela enorme quantidade de seus membros (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores) em todo o país, as possibilidades da existência daqueles desvios são maiores.

O Poder Executivo vem em segundo lugar porque, como o próprio nome sugere, cabe-lhe “executar” o que o Legislativo, como representante do povo (de quem todo o poder emana), ordena através das leis.

E ganha relevância o Judiciário que, como o 3º Poder, com a finalidade de resolver os conflitos sociais, de apurar se a vontade do Povo está sendo corretamente cumprida. Coloca-se depois, mas não é o menos importante.

Afinal, cabe-lhe zelar para que, como se assinala no preâmbulo da Constituição que o nosso Estado Democrático é destinado a assegurar liberdade, segurança, bem-estar e justiça, tudo como “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…


Ora, depois de mais de 20 anos de ditadura — os tais “anos de chumbo” — onde os abusos de toda ordem eram generalizados, quando muitas vezes o que predominava era apenas o poder da força, inclusive econômica, era mais que natural que a sociedade, abertas as portas para que saciasse suja sede de “liberdade, segurança, bem-estar e justiça”, procurasse fazer valer aqueles direitos todos que foram colocados em primeiro plano pela Constituição.

Com isso, multiplicaram-se os conflitos que durante tantos anos a repressão conseguiu segurar. Consumidores já quase habituados à exploração dos monopólios, das reservas de mercado, etc., agora amparados por um Código que os protege e defende, correram ao Poder Judiciário para obter a esperada justiça que lhe prometeu o texto da Lei Maior.

Ofensas à honra ou à moral, já não se toleravam mais, com a consciência do cidadão de seu direito de receber por elas adequada indenização.

Claro que o surgimento desses novos conflitos ou a possibilidade de serem resolvidos, tornou insuficiente a estrutura judiciária que para isso não estava preparada. Os tribunais se abarrotaram e ocorreram abusos, pois sempre no mundo todo existem pessoas de má fé, mas aos poucos tais questões vão sendo pacificadas.

Direitos individuais que eram sistematicamente ignorados, passaram a ser exigidos, aqui incluídos os das minorias e dos menos favorecidos.

Num país tão heterogêneo, com tanta miscigenação, com tantas culturas se inter-relacionando, estando há tão pouco tempo experimentando a Democracia, é natural que haja setores que se sintam prejudicados com as novas regras estabelecidas pelo texto da Constituição que agora comemora seu 20º aniversário. Em qualquer lugar, em qualquer tempo, os privilegiados não abrem mão do poder sem luta. A diferença é que essa luta hoje se faz com menor desigualdade. Mesmo o mais fraco cidadão acaba um dia percebendo que tem direitos e tentará usufruí-los.

Na Constituição de 88 há um capítulo especial para a educação e cultura (artigos 205 e seguintes) e outro para a Comunicação Social (artigos 220 a 224) e isso não acontece por acaso. Nenhuma das constituições anteriores se ocupou de forma tão minuciosa com tais assuntos, o que demonstra que o constituinte tinha plena consciência de que nenhum dos objetivos básicos da sociedade brasileira pode ser alcançado sem que tais valores estejam preservados.

Já se sabe que a grande revolução do século 21 é a da comunicação, agora sem qualquer limite físico para ser exercida. Se jornais e revistas podem ser censurados ou fechados, se emissoras podem ter seus transmissores lacrados ou apreendidos, hoje não há meios eficazes de impedir a propagação de idéias ou a divulgação de fatos. Como censurar a Internet?

A comunicação social é, sem dúvida, um “direito de ordem pública”. Como qualquer direito, deve ser exercido com observância de algumas regras, mesmo que não escritas, sob pena de transformarmos o direito em ameaça ou instrumento de escravidão.

Ainda que lentamente, a educação vem sendo democratizada e já não é apenas um sonho para a grande maioria da população. A cultura vem sendo popularizada e a comunicação se torna mais acessível. Isso está transformando o Brasil.

O 20º aniversário de nossa Constituição merece ser comemorado. Ela já fez história e ainda vai fazer mais. Não são apenas mais 20 anos. São 20 anos de sonhos e esperanças!

Artigo publicado na revista Leituras da História, edição 13, da Editora Escala

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