Limite Penal

Exame da cadeia de custódia é prejudicial a todas as decisões sobre fatos

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13 de agosto de 2021, 8h00

Passados mais de sete anos do reconhecimento inédito da relevância da cadeia de custódia da prova penal pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[1], o tema continua a suscitar questões a serem resolvidas pela doutrina e jurisprudência. Como se sabe, naquela ocasião entendeu-se que a supressão de parte da interceptação telefônica prejudicava a sua confiabilidade e, por esta razão, justificou-se a sua exclusão e não aproveitamento.

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De lá para cá, a despeito de crescente difusão da temática, ainda há muito a ser desenvolvido acerca do instituto da cadeia de custódia para a sua efetividade em nosso sistema jurídico. Por um lado, as características distintivas das provas digitais (imaterialidade, fragilidade e volatilidade) ainda não foram adequadamente compreendidas pelos atores do sistema de justiça criminal e, neste sentido, estão por reclamar a aplicação de práticas que as contemplem, incluindo garantias de fidedignidade na sua recolha e de preservação da cadeia de custódia[2]. Estas práticas estão ligadas à chamada ciência forense digital, área em constante mutação e evolução, que começa a despertar a atenção no direito brasileiro[3]. Por outro lado, novas discussões surgiram também a partir das alterações trazidas pela Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que, embora não tenha instituído a necessidade de preservação da cadeia de custódia da prova[4], estabeleceu-lhe regime jurídico específico no capítulo II do Código de Processo Penal (Do exame de corpo de delito, da cadeia de custódia e das perícias em geral).

Trata-se, pois, de instituto que cuida de detalhar todos os elos que devem compor a história de um elemento probatório, desde a sua descoberta na investigação até a sua exibição ao magistrado, de modo que possa funcionar como premissa do raciocínio que realizará para determinar os fatos juridicamente relevantes. Em resumidas linhas, a exigência de preservação da cadeia de custódia deve-se à necessidade de confiabilidade de cada elemento constante do conjunto probatório. Faz sentido: a busca pela verdade na determinação dos fatos depende de provas íntegras. Isto posto, a preocupação com a confiabilidade dos elementos probatórios reflete o compromisso com a redução de erros que podem custar a liberdade de alguém.

Apesar da importância da matéria, a pergunta acerca da consequência de eventual quebra da cadeia de custódia segue sem resposta. Sem dúvidas, este é um dos mais interessantes aspectos da cadeia de custódia e, se bem a mencionada decisão tenha resolvido pela exclusão do elemento probatório acolhendo o argumento que lhe confere tratamento equivalente ao da prova ilícita, ainda está sobre a mesa a definição do momento em que a observância da cadeia de custódia deve ser apreciada pelo magistrado. Mesmo oferecendo tratamento legislativo ao instituto, a consequência da quebra simplesmente não foi mencionada pela Lei 13.964/2019. Em geral, a doutrina se divide entre dois posicionamentos: uma primeira corrente entende que a matéria deve ser resolvida no plano da (in)admissibilidade da prova[5]; uma segunda entende que a prova deve ser admitida, mas seu valor deverá ser dimensionado na etapa da valoração, a partir da apreciação da gravidade da quebra e do grau de efetiva contaminação de sua confiabilidade[6].

Sem embargo de os autores da coluna de hoje se filiarem à primeira corrente[7], o fato é que nenhuma delas permite a conclusão, não raro adotada pelos juízes e tribunais, de deixar a análise da observância da cadeia de custódia integralmente para a sentença: quem defende a inadmissibilidade entende que a análise da demonstração da integridade da prova deve ser feita logo ao momento da conformação do conjunto probatório; por sua vez, quem defende a admissibilidade entende que a apreciação do grau de contaminação da prova deve ser resolvida no momento posterior da valoração. Mas fato é que nem mesmo a partir dessa segunda construção se pode anuir com a insegurança de se descobrir apenas ao fim do processo se a prova foi considerada íntegra ou com sua cadeia de custódia não demonstrada pela acusação. Até porque, embora a sentença seja a decisão que dá sentido à unidade do procedimento, não custa lembrar que esta não é a única decisão judicial sobre os fatos tomada durante todo o procedimento/processo penal. Isto significa que, em distintas etapas processuais, serão necessárias múltiplas decisões que, por sua vez, dependem de se saber se a acusação está satisfazendo a sua carga probatória na suficiência exigida para cada uma destas etapas ou não.

A título de exemplo, destacamos as seguintes decisões: a decisão de recebimento da denúncia (artigo 395, III, CPP); a decisão que autoriza a interceptação telefônica (artigo 2º, I, Lei 9.296/96); a decisão que autoriza a medida de captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (artigo 8-A, §2º, Lei 9.296/96); a decisão que decreta o sequestro de bens (artigo 126, CPP); a decisão que decreta a prisão preventiva (artigo 312, CPP); a decisão que autoriza as medidas de busca e apreensão (artigo 240, §1º, CPP); a decisão que autoriza a medida de infiltração de agentes (artigo 10, §2º, Lei 12.850/13).

Como se vê, são decisões que terminam por configurar intervenções para nada insignificantes em direitos fundamentais (direito à liberdade de locomoção [artigo 5º, XV, CR]; direito à intimidade/privacidade [artigo 5º, X, CR]; direito à inviolabilidade de domicílio [artigo 5º, XI, CR]; direito de propriedade [artigo 5º, XXII, CR]) e, por óbvio, a legitimidade de cada uma dessas intervenções dependerá de um correto juízo da suficiência probatória relativo às hipóteses fáticas autorizadoras dessas decisões. E o correto juízo acerca da suficiência probatória, por seu turno, depende da valoração de um conjunto probatório formado por provas cuja integridade tenha sido efetivamente demonstrada. Pois bem, a análise da integridade/adulteração das provas constantes no conjunto probatório é, em realidade, prejudicial à tomada de cada uma destas decisões pela simples razão de que o standard probatório destas decisões apenas poderá ser superado por hipótese fática cuja corroboração descanse em elementos probatórios com demonstrada confiabilidade. Não é razoável que apenas ao momento da sentença caiba examinar a confiabilidade dos elementos probatórios, sob pena de se transigir que sejam realizadas uma série de interferências aos direitos fundamentais do imputado a partir de questionáveis bases probatórias.

É bem verdade que os standards para o julgamento sobre medidas cautelares e sobre o mérito não devem ser idênticos, mas isso é muito diferente de aquiescer com a ausência total de exigência de qualidade epistêmica às decisões que versem sobre cautelares. Basta constatar o absurdo de uma decisão que defira o sequestro de bens — ou pior, a prisão preventiva do investigado/réu — que tenha por fundamento uma prova que foi trazida pela acusação sem a demonstração de sua integridade e que apenas antes da sentença o magistrado entenda por bem examiná-la. Ora, trata-se de desastroso desenho institucional, que incentiva o oferecimento de provas duvidosas por parte da acusação, pois, até que tal prova seja considerada eventualmente imprestável ou tenha seu valor probatório reduzido na sentença, em português fácil, o estrago já estará feito.

Daí se extrai que, ainda que se assuma a corrente que defende a admissibilidade, não há dúvida de que o magistrado está obrigado a analisar o quanto antes a preservação/quebra da cadeia de custódia pela acusação[8], sobretudo quando houver proferido decisão que configure intervenção em algum direito fundamental do imputado. O standard probatório desta decisão apenas poderá ser superado por hipótese fática que tenha suporte em provas cuja integridade tenha sido apreciada. Logo, mesmo a partir da corrente que estabelece consequência mais branda à quebra, não pode haver chancela à instabilidade processual de se descobrir se dado elemento probatório sofrerá ou não descontos em sua valoração, ou se será diretamente excluído, apenas no apagar das luzes do processo em questão.

Além do mais, se o magistrado entende que a acusação demonstra ter preservado a cadeia de custódia, acusação e defesa tomam nota que aquela prova poderá servir de premissa ao raciocínio probatório sem descontos de credibilidade De outro lado, se o magistrado entende que a acusação não alcançou demonstrar o cumprimento de alguma/s das etapas presentes no artigo 158-A e seguintes, acusação e defesa poderão seguir com suas atuações considerando que aquele elemento probatório terá seu peso redimensionado à confiabilidade que ainda preserve (que pode até ser nenhuma), o que será apreciado nas decisões tomadas durante o procedimento/processo e futura e oportunamente na sentença.

Por fim, vale notar que a impossibilidade de remeter a análise da observância da cadeia de custódia da prova à sentença decorre também de um compromisso com um conceito forte de contraditório, pois não é qualquer favor às partes reconhecer a relevância epistêmica do debate entre elas. Ao apreciar a questão antes da sentença, o magistrado deve permitir que as partes ofereçam e discutam suas razões ao longo do processo, fomentando a adversarialidade própria do modelo acusatório de processo penal, contribuindo, assim, para a superação de uma visão autoritária da jurisdição, que tem como traço marcante a aposta na capacidade moral e cognitiva superior do juiz, típica da tradição inquisitorial.

O exame da cadeia de custódia das provas não é artigo de luxo a ser apreciado apenas na antessala da decisão sobre o mérito; ele é, outrossim, prejudicial a toda e qualquer decisão racional sobre fatos no processo penal.


[1] HC 160.662/RJ. 6ª Turma do STJ. Rel.: Min. Assusete Magalhães. Julgamento em: 18/02/2014.

[2] RAMALHO, David Silva. Métodos Ocultos de Investigação Criminal em Ambiente Digital. Almedina, 2017. p. 104.

[3] BADARÓ, Gustavo. Os standards metodológicos de produção na prova digital e a importância da cadeia de custódia. Boletim IBCCRIM, ano 29, n. 343, jun. 2021, p. 7.

[4] Nesse sentido, Geraldo Prado argumenta: “Antes mesmo dessa explicitação por meio da lei nova, lei que, como será visto, não institui a «cadeia de custódia das provas» no direito brasileiro, uma vez que a preservação da integridade das provas e a garantia de sua autenticidade decorre do próprio modelo probatório tradicional, vários órgãos executivos que por força de sua atividade principal ou secundária lidam com elementos probatórios passaram a estipular protocolos específicos para a cadeia de custódia.” (A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2021. p. 13. No prelo).

[5] Além do já mencionado livro de Geraldo Prado, é possível mencionar, por todos: KNIJNIK, Danilo. Prova pericial e seu controle no direito processual brasileiro. São Paulo: Editora RT, 2017. p. 179; FIGUEIREDO, Daniel Diamantaras de; SAMPAIO, Denis. A cadeia de custódia na produção probatória penal. In: Primeiras impressões sobre a Lei 13.964/2019: pacote “anticrime”. A visão da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020. p. 50-52.

[6] Por todos: BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra (orgs.). Temas atuais de investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 532-535.

[7] MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, n. 331, jun. 2020, p. 8.

[8] Aqui, convém evitar alguns equívocos. A preservação da cadeia de custódia das provas é um dever direcionado ao Estado que surge a partir do momento em que há a coleta de determinado vestígio (físico, analógico ou digital) pelos órgãos estatais. Não cabe à polícia ou ao Ministério Público assegurar a preservação da cadeia de custódia antes, por exemplo, de um delator lhe entregar um celular que contenha informações importantes para a investigação. Contudo, da ausência de um dever direcionado aos órgãos estatais antes de ter a posse do vestígio não decorre a impossibilidade de o imputado questionar a credibilidade/fiabilidade das informações. Este questionamento, tratando-se de provas digitais, pode se dar a partir da análise dos metadados, pelo que é fundamental a preservação da cadeia de custódia pelos órgãos estatais desde o primeiro momento em que tiverem contato com a prova. O fato é que o dever de preservação e estabelecimento da cadeia de custódia é direcionado ao Estado e, no processo penal, configura um ônus para a acusação, e não para o imputado, que não está livre da responsabilidade de oferecer prova suficiente da autenticidade/fiabilidade dos elementos probatórios que junta ao processo. No mesmo sentido, Morais da Rosa, Alexandre. Guia do Processo Penal Estratégico: De acordo com a Teoria dos Jogos e MCDA-C. Florianopolis: EMais. p. 404

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