Tribuna da Defensoria

O papel da Defensoria Pública na assistência jurídica internacional

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25 de outubro de 2016, 7h00

Não é situação incomum a Defensoria Pública ser procurada por cidadãos brasileiros que necessitam ajuizar demandas no exterior ou receber solicitações de cidadãos brasileiros e estrangeiros, residentes no exterior, que necessitam demandar no Brasil.

O direito fundamental a assistência jurídica integral e gratuita prestada pelo Estado constitui disposição normativa das mais avançadas de todo o mundo, dada a extensão do artigo 5°, LXXIV da CRFB, quando comparada com as pesquisas existentes no direito comparado.

Por constar do rol de direitos e garantias fundamentais a assistência jurídica prestada àqueles insuficientes de recursos tem extensão tamanha para alcançar os nacionais e estrangeiros, residentes ou não em nosso território[1].

Nessa perspectiva, a assistência jurídica internacional prestada pela Defensoria Pública deve compreender três aspectos: 1 – a atuação da Defensoria Pública nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos; 2 – o atendimento de brasileiros e estrangeiros residentes no exterior que necessitam demandar ou se defender no Brasil; 3 – o atendimento de brasileiros que necessitam demandar ou se defender no exterior.

O foco da presente reflexão se dedica aos itens 2 e 3, já que a atuação nos sistemas internacionais já foi objeto de vários estudos nessa coluna e tem dicção clara na LC 80/94 (artigo 4°, VI).

Como primeira premissa, é importante considerar que o brasileiro e o estrangeiro não residente em nosso país têm direito a assistência jurídica e a gratuidade de justiça nos mesmos moldes que os nacionais, sempre que precisarem solucionar questões jurídicas em nosso território, diante do amparo constitucional já explicitado.

É fato que grande parte das defensorias públicas estaduais não possui regulamentação a respeito do atendimento de estrangeiros ou brasileiros residentes fora do país, especialmente no que toca a avaliação do direito à assistência jurídica, na interlocução de informações e na definição de atribuições para o respectivo atendimento.

No entanto, eventual omissão regulamentar institucional não pode significar um obstáculo ao acesso do serviço solicitado pelo interessado, especialmente quando o órgão de atuação da Defensoria Pública tem potencial aptidão para prestá-lo e a pessoa é insuficiente de recursos.

Como segunda premissa, o nacional que deseja demandar ou se defender no exterior pode buscar a assistência da Defensoria Pública para tal mister. No entanto, a atuação institucional não deterá o caráter integral desejado pela Constituição da República.

Em se tratando de jurisdição estrangeira (que não se confunde com a jurisdição internacional), o papel da Defensoria Pública é o de facilitar o acesso do cidadão ao sistema jurídico do país competente para causa e aos serviços de assistência jurídica nele disponíveis.

A Defensoria Pública da União, por exemplo, com o suporte do Ministério das Relações Exteriores intermedeia a chamada cooperação jurídica internacional para assistência jurídica, sem que isso signifique que seus membros atuem nas causas em tramitação em outros países.

Apesar de o Estado ter o dever de prestar assistência jurídica integral, isto não quer dizer que os defensores públicos brasileiros detenham conhecimento jurídico das normas de outros ordenamentos jurídicos e a capacidade postulatória para lá patrocinar demandas.

Para essa situação, vários são os tratados firmados com o Brasil prevendo atuação em caráter cooperativo entre os serviços de assistência jurídica e, neste ponto, o Código de Processo Civil de 2015 também caminhou alguns passos, regulando, de forma inédita, a cooperação jurídica internacional que visa uniformizar o tratamento processual definido por diversos instrumentos internacionais (artigo 27, V).

A Portaria 231/2015[2] editada pela Defensoria Pública da União e pela Secretaria Nacional de Justiça aponta os inúmeros tratados, acordos e convenções firmados pela República Federativa do Brasil e demais países (Portugal, França, Espanha, Itália, Cuba, Chile, Nigéria, dentre outros), além de regulamentar o modo de prestação da assistência jurídica decorrente da cooperação jurídica internacional.

O referido ato normativo define a cooperação jurídica internacional passiva (assistência jurídica internacional passiva — artigo 2°) quando estrangeiros residentes no exterior ou seus representantes legais, apresentarem à autoridade central brasileira pedidos destinados a solicitar medidas de representação judiciais ou extrajudiciais no Brasil.

Considera-se a cooperação jurídica internacional ativa (assistência jurídica internacional ativa — artigo 3°) as hipóteses em que nacionais ou residentes no Brasil, ou seus representantes legais, assistidos pela Defensoria Pública, formulam solicitação de assistência jurídica para a obtenção de medidas judiciais ou extrajudiciais no exterior.

Esse ato normativo contém uma omissão por não indicar o modo de atendimento dos brasileiros residentes no exterior que necessitem de atendimento em nosso país. No entanto, acreditamos que a disciplina do artigo 2° lhes é plenamente aplicável, sem prejuízo do suporte que as embaixadas brasileiras no exterior devem oferecer aos brasileiros.

Nossa afirmativa se confirma pela ressalva da própria Portaria a respeito da possibilidade de as Defensorias Públicas responsáveis pelo atendimento serem diretamente contatadas para fins de atendimento, como vemos pela determinação do seu artigo 9°:

“O disposto nesta Portaria não prejudica nem impede a cooperação direta entre as Defensorias Públicas no Brasil e suas instituições homólogas no exterior, para fins de concessão de assistência jurídica gratuita, quando existir esse canal de cooperação estabelecido.”

Parágrafo único. Nos casos em que exista tratado em vigor com a previsão de Autoridade Central para a cooperação jurídica internacional destinada à assistência jurídica gratuita, o DRCI será consultado previamente”.

Há uma omissão estrutural a respeito da integralidade da assistência jurídica internacional. Ela decorre da ausência de uma autoridade central definida pelas defensorias públicas[3], o que torna necessário o auxílio do Ministério da Justiça, por meio de seu Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI).

Apesar dessa circunstância, a iniciativa do Ministério da Justiça e da Defensoria Pública da União é louvável, especialmente por concentrar em um único órgão a gestão e o intercâmbio de informações necessárias à prestação do serviço, facilitando o acesso à assistência jurídica.

Acreditamos, inclusive, caber às defensorias públicas se organizarem para receber esses tipos de demandas, mediante acordos de cooperação com o Ministério das Relações Exteriores, de modo a desburocratizar o acesso dos brasileiros residentes no exterior aos serviços de Defensoria Pública, até que haja a instituição de uma autoridade central.

Talvez o Condege deva incluir em sua pauta a regulamentação estadual dos serviços de assistência jurídica internacional, agindo de forma coordenada com a DPU e o Ministério das Relações Exteriores.

Temos ciência da interlocução positiva entre a Embaixada brasileira no Japão e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no sentido de viabilizar o ajuizamento de demanda por parte de brasileiro residente na terra do sol nascente. Igualmente, a Embaixada do Azerbaijão atuando em conjunto com essa mesma Defensoria Pública, de modo a facilitar a defesa de interesses de uma família daquele país envolvida em litígio perante a justiça fluminense. Exemplos de atuações pontuais não faltarão.

Particularmente, entendo que a implementação de uma autoridade central responsável por todas as defensorias pública seja a maneira mais organizada de funcionamento da assistência jurídica internacional, especialmente sob a ótica da interlocução de informações entre Estados e a facilitação de seu acesso, considerando a realidade díspar entre as instituições.

No que diz respeito ao funcionamento prático da assistência jurídica internacional, imaginemos o exemplo de um cidadão português, economicamente necessitado e residente em terras lusitanas que seja réu em demanda aforada na comarca de Niterói (RJ). Pode ele valer-se dos serviços da Defensoria Pública do Rio de Janeiro? A resposta, sem sombra de dúvida, é positiva.

Há, em nosso país, o Decreto Legislativo 26/1963, que incorpora a Convenção sobre Assistência Judiciária Gratuita entre Portugal e Brasil, firmada em 9 de agosto de 1960. Esse acordo internacional traz uma série de disposições a respeito do direito à “assistência judiciária gratuita” aplicável a brasileiros e portugueses nos territórios de ambos os países, a exemplo do seu art. 1°: “Os nacionais de cada uma das Altas Partes Contratantes gozarão, no território da outra, em igualdade de condições, dos benefícios da assistência judiciária gratuita concedidos aos próprios nacionais”.

Apesar de a Convenção referir-se à expressão assistência judiciária gratuita, a doutrina institucional já apontou a inexatidão técnica do legislador no seu emprego[4]. Mesmo diante do equívoco, importante compreender que a norma da convenção internacional é aplicável tanto ao direito de dispensa provisória do pagamento das despesas processuais (gratuidade de justiça), como o direito à assistência jurídica por profissional habilitado (Defensoria Pública).

Um dado interessante deve ser destacado. Em Portugal, a matéria referente à assistência jurídica (Protecção Jurídica) é disciplinada por meio do artigo 20º da Carta portuguesa, quando assegura o acesso ao direito, complementado pelo seu n. 02, que garante a todos o direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade (Portugal adota o sistema judicare).

A Lei 34/2004, substancialmente alterada pela Lei 47/2007 regulamenta a figura do acesso ao direito e aos tribunais, através da informação (artigo 4º) e da Protecão Jurídica (artigo 6º). Diversas reformas foram realizadas com o objetivo de facilitar o acesso ao Apoio Judiciário, especialmente através da delegação da atividade de avaliação do direito ao benefício, hoje feita pelos órgãos de seguridade social portugueses, situação diversa da que ocorre no Brasil.

Isso nos serve de advertência no sentido de que os graus de exigência e modos para o preenchimento dos requisitos necessários à assistência jurídica podem variar conforme o país, já que os tratados comumente determinam a incidência de suas respectivas normas internas aos cidadãos estrangeiros que pretendam lá demandar.

Pensemos agora na situação oposta, o caso de um cidadão brasileiro que necessite demandar na justiça italiana, postulando uma indenização. O Decreto Legislativo 1.476/1995 incorpora o Tratado relativo à Cooperação Judiciária e ao reconhecimento e execução de sentenças em matéria civil entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana.

No seu artigo 10 fica assegurado o direito à dispensa das despesas processuais aos cidadãos brasileiros que tenham que litigar na Itália, observadas as condicionantes aplicadas aos cidadãos italianos que gozem do benefício.

Na Itália, o sistema de assistência jurídica (patrocinio a spese dello stato) é pautado pelo modelo judicare, cabendo ao interessado solicitar a nomeação de advogado dativo (nomina di un avvocato) perante o órgão de classe da advocacia (Consiglio dell`Ordine degli Avvocati), observando-se os requisitos previstos na lei italiana, conforme regramento da Lei 29/2001, do Decreto Presidencial 115/2002 e suas sucessivas modificações.

Situação mais complexa pode ocorrer em países onde não haja acordo de cooperação a respeito da assistência jurídica, como é caso dos Estados Unidos da América em matéria cível. Lá, a capacidade postulatória é atribuída de forma ampla ao cidadão o que representa a ausência de um modelo nacional de assistência jurídica.

A falta de um tratado de reciprocidade dificulta a utilização do suporte fornecido pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, cabendo às Defensorias Públicas buscar contato com a unidade federativa americana competente para a causa com o intuito de estabelecer a interlocução institucional.

Essa realidade apenas reforça a nossa opinião no sentido de ser imperioso o estabelecimento da autoridade central da Defensoria Pública, responsável pela interlocução e cooperação com os organismos congêneres de prestação de assistência jurídica (Public Defender`s Office).

Por fim, lanço um tema para reflexão que trarei em outra oportunidade. O Estado brasileiro, como forma de promoção do acesso à justiça do cidadão nacional, pode ser obrigado a arcar com o pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios em países onde não haja um sistema de assistência jurídica organizado?[5]


[1] “A norma suscita a questão de saber se os estrangeiros não residentes estariam alijados da titularidade de todos os direitos fundamentais.
A resposta deve ser negativa. A declaração de direitos fundamentais da Constituição abrange diversos direitos que radicam diretamente no princípio da dignidade do homem princípio que o art.1º, III, da Constituição Federal toma como estruturante o Estado democrático brasileiro. O respeito devido à dignidade de todos os homens não se excepciona pelo fator meramente circunstancial da nacionalidade. Há, portanto, direitos que se asseguram a todos, independentemente da nacionalidade do indivíduo, porquanto são considerados emanações necessárias do princípio da dignidade da pessoa humana. Alguns direitos, porém, são dirigidos ao indivíduo enquanto cidadão, tendo em conta a situação peculiar que o liga ao País. Assim, os direitos políticos pressupõem exatamente a nacionalidade brasileira. Direitos sociais, como o direito ao trabalho, tendem a ser também não inclusivos dos estrangeiros sem residência no País. É no âmbito dos direitos chamados individuais que os direitos do estrangeiro não residente ganham maior significado.” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 350-351).
[2] http://www.justica.gov.br/sua-protecao/lavagem-de-dinheiro/institucional-2/publicacoes/cooperacao-em-pauta/imagens/portaria-e-anexos.pdf
[3] Recentemente, a Procuradoria-Geral da República se tornou autoridade central para pedidos de cooperação internacional em matéria penal entre países de língua portuguesa, nos termos do Decreto 8.861/2016.
[4] “As expressões assistência judiciária, assistência jurídica e gratuidade de justiça vêm sendo utilizadas ao longo dos anos sem o adequado desvelo técnico.
De fato, essa confusão terminológica se deve, em grande parte, à própria deficiência técnica da Lei n. 1.060/1950, que se utiliza inadvertidamente do termo assistência judiciária para designar (i) o serviço público de assistência dos necessitados em juízo (art. 1°); (ii) o órgão estatal responsável pela prestação do serviço de assistência dos hipossuficientes (art. 5°, §§1°, 2° e 5° e art. 18); e (iii) o benefício de isenção de despesas processuais, ou seja, como sinônimo de gratuidade de justiça (arts. 3°, 4°, §2°, 6°, 7°, 9°, 10 e 11).” (ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da defensoria pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 94).
[5] O tema já teve suas primeiras linhas traçadas no seguinte texto: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8960

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