Opinião

Ataque de Eugênio Aragão ao MP visa desqualificar operação 'lava jato'

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22 de julho de 2016, 17h54

A quem interessaria um Ministério Público com diretrizes definidas desde a cúpula, com seu procurador-geral atrelado e nomeado livremente pelo Poder Executivo? Haveria independência para conduzir uma operação incômoda às forças políticas, como a “lava jato”?

Domingo passado foram aqui na ConJur publicadas longas declarações feitas pelo subprocurador-geral da República Eugênio Aragão, último ministro da Justiça da presidente afastada Dilma Rousseff. Estas são algumas de muitas perguntas que surgem de algumas más palavras colocadas naquela entrevista, e que tentaremos enfrentar.

Foram lançadas ali, infelizmente – e não é a primeira vez em que isto ocorre –, ideias e opiniões descabidas, desinformadas ou preconceituosas sobre o Ministério Público brasileiro, as quais é obrigatório rebater para que fique claro que são opiniões isoladas, não correspondendo à carreira do MP.

Nesta linha, e em primeiro lugar, defende Eugênio Aragão como acertada a formatação de escolha para o cargo de procurador-geral hoje definida pela Constituição para o MPF, vale dizer, livre escolha, dentro da carreira do MPF, pelo presidente, e apreciação pelo Senado. Critica, acidamente, qualquer participação da carreira, encaminhando a lista tríplice para PGR.

Logo adiante, ataca o princípio da independência funcional que quer mitigado por um centralismo derivado do princípio da unidade. Quando a instituição definir uma posição – não se explica se de tese jurídica, ou de apreciação de prova –, cada membro não a poderia contrariar. No máximo, poderia se omitir de agir.

Justo que se diga, desde logo, que há Ministérios Públicos com formatos semelhantes ao preconizado por Eugênio. Impõe, contudo, a honestidade intelectual que se acentue que este modelo aumenta, exponencialmente, o poder dos órgãos centrais e do chefe do órgão: o procurador-geral. Em alguns ordenamentos ele é eleito, em outros tem o poder de avocar ou transferir qualquer processo. Em todos os casos, dá o tom não apenas de sua atuação, mas de todo o órgão.

Ora, se o procurador-geral, como defende Eugênio Aragão, seria livremente indicado pelo Executivo, dentro da respectiva carreira, e ditaria ou influenciaria fortemente o comportamento e as posições dos demais, qual a chance de uma atuação ministerial que eventualmente se contrapusesse frontalmente aos interesses do Poder Executivo? Responde-se: nenhuma. Jamais haveria uma operação “lava jato” e seriam raras ou impossíveis Ações Civis Públicas para defender o meio ambiente em grandes empreendimentos. Em suma, difícil conceber o MP como o conhecemos, e suas contribuições ao país.

O MPF viveu, já sob égide da Constituição de 1988, quatro mandatos de um procurador-geral indicado diretamente pelo Poder Executivo, sem oitiva e sem liderança de seus pares. E o Brasil reconhece que a atuação própria deste procurador-geral foi abaixo do que se esperava. Eugênio Aragão, aliás, sempre foi crítico desta era do MPF, e conhece suas consequências.

O PGR e os colegiados de então, todavia, não tinham interferência direta na independência funcional dos membros, o que permitiu uma atuação livre, nas esferas criminal e de tutela de interesses difusos e indisponíveis, nas instâncias inferiores. É possível avaliar o que ocorreria se a independência estivesse mitigada, por uma unidade centrada no PGR.

Os freios e contrapesos, também dentro do MP, são necessários em uma democracia ainda imatura, para garantir a independência na atuação. O Brasil apenas ganhou – e muito – em atuação capacitada, equilibrada e independente do PGR e do MPF quando o Poder Executivo passou a acatar a lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), copiando o modelo usado nos demais Ministérios Públicos do país. Isto é hoje reconhecido por todas as forças políticas, inclusa e à frente aquela a que serviu como ministro Eugênio Aragão.

À legitimidade democrática – pois a escolha continua sendo feita pelo presidente da República e a aprovação pelo Senado Federal – junta-se a legitimidade técnica, weberiana, garantia de um bom desempenho na função, e de capacidade de liderança e coordenação, essenciais em um órgão em que inexiste hierarquia na atividade fim.

É ainda, com a devida vênia, um absoluto despropósito ver neste processo influência de interesses meramente corporativos. A ANPR já apresentou oito listas tríplices para apreciação presidencial e, em todos os casos, os nomes apresentados eram do mais alto nível, enfrentaram o crivo da opinião pública, mostrando-se sempre preparados e sem qualquer conotação corporativa.

De outra parte, a independência funcional é a essência do Ministério Público pós-1988, quando foi alçado à posição de magistratura, com as mesmas prerrogativas que os juízes. É a garantia de uma atuação livre, independente, mas também plural.

É possível conceber, sim, um MP mais unitário, com vantagens, por exemplo, na segurança jurídica. Mas que fique claro: não seria um MP de magistrados independentes, modelo que a nossa Constituição embebeu de nações europeias, como a Itália. Seria um MP com limitações e influência política muitas vezes maior.

O modelo de 1988 ainda é o mais adequado para o país, e os acontecimentos dos últimos meses e anos apenas comprovam isso. Precisamos do MP de magistrados, com a independência funcional garantida e as prerrogativas de juízes de pé. Por outro lado, segurança jurídica, planejamento e eficiência podem ser buscados – e devem – por crescimento das funções de coordenação dentro dos MPs. Não há qualquer necessidade, para isso, de mitigação – de resto, de mais do que duvidosa constitucionalidade – do princípio da independência funcional.

Há de se ter muito cuidado com o que se propõe e o que se deseja. Ainda que esta não tenha sido a intenção de Eugênio Aragão, o Ministério Público por ele preconizado aproxima-se muito mais do MP da ditadura, com suas nomeações diretas e avocações de processos, do que de um MP democrático e adequado a uma democracia em construção.

A formação da lista tríplice constitui um progresso institucional para o país e para todo o Ministério Público brasileiro, para o qual é inadmissível retrocesso.

De outra banda, por dever funcional acompanhamos, há cinco anos, a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Não nos recordamos de Eugênio acompanhar ou comentar os trabalhos, o que talvez explique as suas palavras, que denotam profundo desconhecimento e preconceito. O CNMP contribuiu, em uma década, para que o MP de hoje seja mais transparente e orgânico.

É uma absoluta inverdade que não existam punições a desvios disciplinares de membros do MP. É só acompanhar as sessões – públicas, sempre – do CNMP para constatar o inverso. Há punições, e exigência de estruturação das corregedorias locais dos ramos, o que é ainda mais importante para que se afirme que o espírito de corpo só subsiste no seu sentido sadio, que não se compactua com irregularidades, e que a sociedade e os cidadãos têm uma instância colegiada em que estão representados e que os ouve, para cobrar do Ministério Público. 

Se o CNMP ainda é um órgão em construção, e comete algum pecado é por eventual excesso na regulamentação, e não por omissão, ou em qualquer inexistente viés corporativo.

O que leva a outro ponto negativo da entrevista. Entre as críticas, Eugênio Aragão aponta que o MP estaria embriagado pelo que denominou “fetiche criminalista”, e que seria hoje extremamente conservador, força também do perfil de seus membros “concurseiros”, que entrariam na carreira em busca de bons salários e sem a devida vocação.

Pois bem: há de se respeitar a opinião individual de Eugênio – como cabe em uma democracia e em uma instituição plural –, porém também impõe-se contrapor que esta preconceituosa opinião não tem qualquer base na realidade, peca por injustiça, parcialidade e falta de autocrítica. Demonstra mais uma vez total falta de conhecimento sobre o espírito de várias gerações de procuradores da República.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que quem dirige hoje o MPF – na medida em que cabe a um órgão de magistrados independentes – não é qualquer geração jovem, e sim os procuradores que ingressaram nos anos que imediatamente antecederam ou se seguiram à Constituição de 1988. E é natural que assim seja. Estão neste parâmetro o atual procurador-geral, componentes e coordenadores de Câmara e membros do Conselho Superior. É a geração de Eugênio Aragão, o qual foi recente e sucessivamente membro do Conselho Superior, corregedor-geral e vice-procurador-geral Eleitoral do atual procurador-geral da República, Rodrigo Janot, posição que ocupou até poucos meses, quando saiu para assumir o Ministério da Justiça.

Se o MPF estivesse então – o que aqui se admite apenas como instrumento de argumentação, para demonstrar a incoerência interna, falta de autocrítica do autor da entrevista, pois não corresponde à verdade – em algum viés de “fetiche criminalista conservador” (seja lá o que isto em verdade signifique), é responsabilidade principalmente da geração a qual pertence Eugênio Aragão, muito mais do que de jovens procuradores.

Ocorre, porém, que a opção por priorizar o combate à corrupção – que em nada prejudicou as demais missões do MP – nada teve de erro, e deve, ao inverso, ser aplaudida. Foi um sinal de sensibilidade com o debate público e com o país, que anseia por mudanças.

Mercê de seu trabalho – que inclui, com destaque, a opção preferencial pelo combate à corrupção, endossada pelo Conselho Superior do MPF – o atual PGR foi reconduzido com o voto favorável de mais de quatro quintos de seus pares e com imediata escolha (debaixo de merecidos elogios), após recebimento e reconhecimento público da lista tríplice encaminhada pela ANPR, pela mesma presidente da República que meses depois designaria Eugênio Aragão ministro da Justiça. Rodrigo Janot teve ainda apoio no Senado de todas as forças políticas, incluídas as que hoje formam a base do governo interino, e recebeu o apoio expresso de todas as entidades e instituições do MP brasileiro. O trabalho do PGR e do MPF hoje, no combate ao crime organizado e à corrupção, é aplaudido por todo o país.

Nesse contexto, a crítica “solta” a um pretenso “fetiche criminalista”, ainda mais quando mesclada de forma fluida a jovens procuradores, parece ter apenas um alvo: desqualificar a operação “lava jato”. E não se pode condenar qualquer intérprete de ver nesse viés da entrevista contaminação com o discurso político vindo do ministro da Justiça dos últimos e tumultuados momentos de um governo afastado, pois, uma vez mais, as conclusões não perecem dignas da experiência do autor da entrevista.

O peso e o sucesso da operação “lava jato”, ao fim e ao cabo, advêm da solidez das provas, da capacidade que o Estado demonstrou em investigar e apresentar em juízo, em tempo recorde, provas cabais do envolvimento de pessoas com grande poder econômico e político, no maior esquema de desvio de dinheiro público da história do país. Seu pecado, portanto, é única e exclusivamente a eficiência.

A “lava jato” é um trabalho coordenado, mas também é exemplo da necessidade e qualidade da investigação criminal pelo Ministério Público, pois sem a investigação própria pelo MPF, na força tarefa, os resultados inexistiriam. A operação é um marco de sucesso também perante vários juízos e o Supremo, com decisões exaradas e mantidas por todas as instâncias do Poder Judiciário, mesmo tendo como contraparte as melhores e mais bem qualificadas bancas de defesa do país.

Isto não é “fetiche criminalista”. É fruto da qualidade do trabalho feito pelo Estado, usando de maneira correta, e com todas as garantias – nosso Poder Judiciário permanece livre, técnico, independente, e extremamente garantista, quando avaliado perante os padrões internacionais – os instrumentos dados à lei para as investigações.

Em outro tema, também consta na entrevista declaração, infelizmente, já repetida em outras vezes (e já antes rebatida pela ANPR), de Eugênio Aragão, acerca de um pretenso “conservadorismo” da classe e de jovens procuradores “concurseiros”, não vocacionados, que entram na classe apenas em busca de bons salários.

Sempre com a devida vênia, esta é de todas as declarações do último domingo a mais inexplicavelmente agressiva e preconceituosa, sem base fática alguma, e pouco corajosa, vez que dirigida a uma massa de procuradores jovens – não raro ainda em estágio probatório – espalhados pelo país.

Com efeito, com o crescimento da carreira e interiorização da Justiça, quem hoje ingressa, por exemplo, no Ministério Público Federal, assumirá tipicamente em uma Procuradoria da República isolada em um município do Norte, ou Nordeste, e levará indefinidos anos para chegar até sua base ou a cidade em que pretende se estabelecer em definitivo. A mesma realidade – que inexistia no MPF até uma década atrás – repete-se nos demais ramos das magistraturas nacionais.

Fazer a presença da Justiça nos rincões do Brasil – ainda com apoio da carreira e da instituição, com condições e tecnologia, mas distante de sua família – é um desafio para poucos, e que exige dedicação, mormente quando submetidos a controles burocráticos de corregedorias internas e externas em grau que inexistia há uma década.

Semelhante realidade – e é esta a realidade do MPF e das magistraturas nacionais – não é para pessoas sem vocação. Quem após esforço de anos está qualificado por dificílimo concurso público para um cargo de procurador da República ou outra magistratura, com todo o respeito, com menos ou igual esforço encontraria outras carreiras e outros caminhos menos sacrificantes. E parece muito fácil (e inadequado, e errado) para alguém de uma geração que não enfrentou estas realidades esquecer os sacrifícios impostos às novas gerações de membros, para lhes tachar de não vocacionados, de que teriam motivos meramente pecuniários (que inexistem!) para buscar este caminho.

Por fim, as 10 Medidas Contra a Corrupção. É legítimo que Eugênio Aragão, como cidadão e como profissional, levante-se contra esta ou aquela das medidas, mesmo na oposição da imensa maioria de seus colegas no Ministério Público e na magistratura nacional – que apoiam –, e na contramão da sociedade civil, que abraçou a ideia, e a fez chegar no Congresso Nacional com apoio popular inédito.

O que não parece legítimo ou correto, sempre com a devida vênia, é que um professor de Direito Penal e de Direito Internacional afirme que há nas propostas coisas que vê como incompatíveis com um Estado de Direito, sem revelar – pois certamente o sabe – que na sua maioria foram propostas a partir de leis e jurisprudências formadas em democracias e Estados de Direito mais antigos e mais sólidos que o Brasil.

Esperamos que prossiga o debate. Mas sereno e técnico, como deve ser.

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