Observatório Constitucional

O Supremo e a terceirização: o que está verdadeiramente em jogo?

Autores

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

  • Fernando Hugo R. Miranda

    é sócio do escritório Paixão Côrtes Advogados Associados doutor e mestre em Direito do Trabalho pela USP e advogado da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce).

6 de fevereiro de 2016, 7h00

Aguardam julgamento, no Supremo Tribunal Federal, três processos cujos exames têm o potencial de aprimorar significativamente o desenho institucional traçado à figura da terceirização pela Justiça do Trabalho e, por conseguinte, de (re)definir a conformação jurídica das relações de trabalho. Trata-se da ADPF 324, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, e de dois agravos em recurso extraordinário que tiveram a repercussão geral reconhecida: o ARE 791.932, de relatoria do ministro Teori Zavascki, e o ARE 713.211, de relatoria do ministro Luiz Fux.

Para isso, no entanto, é essencial, talvez mesmo imprescindível, que a corte seja capaz de construir uma narrativa orgânica que explore os elementos constitutivos das pretensões postas em todos os feitos que, como se verá, compreendem três importantes perspectivas de análise constitucional sobre o mesmo tema.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal estará diante do desafio de estabelecer um diálogo institucional com a jurisdição trabalhista, nesse embate cada vez mais frequente e intenso entre a corte, no exercício de sua jurisdição constitucional, e os juízes e tribunais que exercem a jurisdição ordinária.

Nesse aspecto, já se teve a oportunidade de defender neste espaço que o fortalecimento da jurisdição constitucional passa necessariamente pelo reconhecimento e valorização de certas capacidades da jurisdição ordinária pelo STF. Em síntese, propunha-se lá (e propõe-se aqui) que, na apreciação de uma questão constitucional, havendo a necessidade de o tribunal constitucional definir o correto sentido da moldura fático-jurídica do que lhe é submetido, o tribunal constitucional não deve desprezar o entendimento, os conceitos e os institutos já firmados pelos juízes e tribunais ordinários, mesmo que tenha de resignificá-los à luz de seu entendimento a respeito da adequada leitura da Constituição. Sem que haja qualquer desprestígio à competência do STF no exercício de sua função de garantir a supremacia da Constituição, é importante que a corte se engaje no esforço de apreender os sentidos e os conceitos desenvolvidos pela jurisdição ordinária na construção de suas decisões, até para que seja reforçada a unidade e a organicidade do sistema jurídico[1].

Vamos aos casos.

Segundo a Súmula 331/TST, é vedada a terceirização de tarefas ligadas à atividade-fim das empresas. Agentes econômicos, assim, estariam obrigados a estabelecer relação jurídica de emprego quando contratassem qualquer atividade que se confunda com a atividade-fim do empreendimento. Qualquer outra relação jurídica seria considerada, por consequência, fraude trabalhista, com sua desconsideração por meio da aplicação dos instrumentos teóricos à disposição da disciplina trabalhista, fundamentalmente, o princípio da primazia da realidade, do que decorreria o reconhecimento do vínculo empregatício.

Nos autos do ARE 791.932 (relator ministro Teori Zavascki), discute-se, a teor do acórdão que reconheceu a repercussão geral, “a questão relativa à ofensa ou não ao princípio da reserva de plenário”. Especificamente, a impugnação oferecida volta-se contra decisão do TST de ignorar o sentido literal da expressão “atividade inerente” constante da Lei 9.472/97, que, segundo alega o recorrente, autorizaria a terceirização sem a limitação da atividade-fim. A questão, considerada exclusivamente em si, representaria apenas a discussão sobre a inobservância ou não à Súmula Vinculante 10, que veda tribunais afastarem a incidência de lei ou ato normativo do poder público sem a observância da cláusula de reserva de plenário estabelecida no artigo 97 da Carta. Nesse prisma, a discussão teria contornos processuais, sendo a questão de fundo circunstancial e coadjuvante.

Já nos autos ao ARE 713.211 (relator ministro Luiz Fux), a repercussão geral reconhecida fez direta referência à discussão sobre a extensão da expressão “atividade-fim”. O debate se desenvolve em torno da possibilidade de uma empresa de produção de celulose estar autorizada, ou não, a contratar outra empresa para atividades de florestamento e reflorestamento, dado o fato de a empresa de celulose indicar, em seu objeto social, a execução de tais atividades. O acórdão da repercussão geral apontou como questão constitucional a “fixação de parâmetros para a identificação do que representa atividade-fim”. Nesse contexto, a racionalidade da Súmula 331/TST não estaria, em si, sob escrutínio, visto que a reflexão estaria circunscrita ao conteúdo do conceito utilizado como limitador da terceirização. A decisão sugere que a vedação à terceirização da atividade-fim seria um valor a ser seguido, sendo preciso, apenas, apurar melhor os parâmetros à identificação da atividade-fim.

Por fim, na ADPF 324 (relator ministro Roberto Barroso), busca-se que seja afirmada a inconstitucionalidade da interpretação que veda a prática da terceirização, em síntese, por não haver legislação específica que a proíba. Na ação, são apontadas decisões que, partindo de critérios diversos, criam restrições a contratações entre empresas, sempre em articulação ampla da expressão “atividade-fim”. À primeira vista, portanto, o objeto da questão também seria a identificação do que se deve entender por atividade-fim, ainda que se alegue ofensa a preceitos constitucionais fundamentais em face do que se aponta como um posicionamento judicial sem lastro legal.

Nos três casos acima, se verifica que o foco central da reflexão foi a discussão sobre o que se deve entender por atividade-fim. No primeiro, discute-se a restrição, por interpretação judicial, do conceito legal de atividade inerente; no segundo, se afirma a necessidade de identificação de parâmetros mais seguros de identificação do que seria a atividade-fim; no terceiro, se alega que a limitação judicial da terceirização às atividades-meio seria inconstitucional, porque ausente restrição legal.

Diante das premissas metodológicas indicadas, surge a inexorável e fundamental indagação do que justificaria a apreciação da questão pelo Supremo Tribunal Federal, sob o ângulo da jurisdição constitucional. Afinal, a Justiça do Trabalho, há décadas, tem se debruçado sobre o problema e, em princípio, teria estabilizado as expectativas normativas dos agentes econômicos a partir da edição da Súmula 331 do TST, ocorrida em 1993! Por que, então, passados mais de 20 anos da edição da Súmula 331 do TST, deve o Supremo tomar as rédeas da discussão sobre a matéria? Por que hoje se torna premente a definição do que deva se entender por atividade-fim no contexto de terceirização, se o parâmetro existe desde a formulação da Súmula 331/TST, em 1993?

É preciso investigar, portanto, o que se passou entre o surgimento do entendimento e sua aplicação contemporânea e se há algo suficientemente relevante para criar uma nova reapreciação sobre o tema, sob o prisma da jurisdição constitucional.

A resposta à indagação remete ao movimento da jurisprudência trabalhista de transformação significativa do entendimento quanto o suporte fático da abstração condensada pela Súmula 331/TST. Em suas origens, o verbete foi destinado à regulamentação de contratos de fornecimento de mão de obra que passaram a ocorrer sem a observância dos requisitos previstos na Lei do Trabalho Temporário (Lei 6.019/74). Assim, se em um primeiro momento o TST afirmou o vínculo empregatício entre o empregado da empresa fornecedora de mão de obra e a empresa tomadora quando não preenchidos os requisitos legais — como o prazo máximo de três meses —, conforme a disciplina da Súmula 256/TST, com a edição da nova súmula os requisitos legais foram substituídos pelo critério da atividade-fim. Cancelada a Súmula 256/TST, o trabalho de empregado de empresa fornecedora de mão de obra que trabalhasse para além dos três meses não importaria no reconhecimento do vínculo empregatício, desde que, no entanto, não atuasse o empregado na atividade-fim da empresa tomadora.

Em suma, as limitações legais da figura do fornecimento de mão de obra foram, por ação do TST, substituídas pela limitação da atividade-fim. A consequência imediata foi a expansão da figura, em face da superação do restritivo requisito legal, com a possibilidade de fornecimento de mão de obra por períodos indeterminados de tempo, e para a contratação de serviços cotidianos, desde que não coincidentes com a atividade-fim.

Ao tempo das origens da Súmula 331/TST, em que a aplicação do entendimento se limitava às hipóteses de regulação da prestação de serviços diretos e pessoais por parte de um empregado “fornecido” e sua empresa tomadora, não se apresentou seriamente a alegação de que a limitação quanto à atividade-fim restringiria o direito de propriedade e da livre iniciativa. Contudo, ao longo da década de 2000, a Justiça do Trabalho, gradativamente, passou a utilizar o parâmetro da atividade-fim também para examinar a legalidade de contratos havidos entre empresas, sem que houvesse a cessão — o fornecimento — de mão de obra direta. Com isso, negócios interempresariais em que o objeto do contrato era a entrega de bens ou serviços (e não o fornecimento de mão de obra direta) foram reputados como ilegais na Justiça do Trabalho ao argumento de que o objeto da contratação interempresarial coincidiria com a atividade-fim da contratante. Foi o que se passou, por exemplo, com a empresa de celulose que contratou uma empresa especializada para o manejo florestal, a despeito de inexistir, no caso, a prestação direta e subordinada de serviços dos empregados da empresa contratada em favor da empresa contratante.

A evolução do entendimento se passou de forma praticamente despercebida por conta de um superlativo detalhe: ambos os fenômenos econômicos — o contrato de fornecimento de mão de obra e demais figuras contratuais interempresariais que não envolvam fornecimento de mão de obra — passaram a ser designados na Justiça do Trabalho como terceirização. Reconhecido que certo negócio jurídico entre as empresas configuraria terceirização, a aplicação dos requisitos da Súmula 331/TST, ou seja, da limitação quanto à atividade-fim, era consequência jurídica certa.

Como se vê, ao contrário do que o exame das ações individualmente consideradas possa sugerir, a problemática central apresentada ao Supremo Tribunal Federal não é a definição de parâmetros do que deva se entender por atividade-fim. É preciso ir além, definir, antes, em que situações o critério da atividade-fim é relevante e aplicável. Ao STF incumbe examinar se um contrato de prestação de serviços — ou mesmo de fornecimento de produtos, como se passou com o caso de empresas de sucos de frutas que compram os insumos de produtores independentes — configura ou não caso de terceirização, de forma a atrair a aplicação da Súmula 331/TST. Dizendo de outro modo, cumpre definir se uma empresa que fabrica papel precisa ter, dentro de sua estrutura empresarial, a atividade de manejo florestal, mantendo vínculo jurídico direto com os trabalhadores que prestam esse serviço e responsabilizando-se como empregador por fatos relacionados a essas pessoas. E, nessa discussão, há um amplo espectro de possibilidades que se põe entre os extremos da ausência absoluta de responsabilidade da empresa e a necessidade de reconhecimento de vínculo de emprego.

Será que a jurisdição constitucional tem algo a dizer sobre esse problema? Entendemos que sim, sem retirar o valor da discussão política que pode (e deve) se travar no Parlamento ou da dogmática trabalhista, tendo em vista que há parâmetros constitucionais relevantes para a discussão do problema, tais como os direitos fundamentais dos trabalhadores, a proteção da propriedade privada e a livre iniciativa (apenas para destacar os aspectos constitucionais mais evidentes sobre o tema).

E, como já dito, o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de conferir uma narrativa coerente no julgamento das três ações hoje em trâmite.

Na discussão acerca do termo “atividade inerente” estabelecida no artigo 94, inciso II, Lei 9.472/97 (ARE 791.932, de relatoria do ministro Teori Zavascki), é cabível a leitura, por exemplo, de que o dispositivo legal, ao autorizar que empresas concessionárias contratem “com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço [objeto da concessão]”, se refere a contratos interempresariais, e não contratos de fornecimento de mão de obra. O caso concreto em discussão no feito, inclusive, se refere precisamente a contratação de serviços certos por empresas especializadas, e não de fornecimento de mão de obra.

O mesmo se diz em relação ao ARE 713.211 (ministro Luiz Fux). No caso, a perplexidade do caso não decorreu de eventual definição ampla do conceito de atividade-fim, mas sim de aplicação hipertrofiada da Súmula 331/TST. O contrato celebrado entre uma empresa de celulose e uma empresa especializada de reflorestamento não se assemelha a situação de fornecimento de mão de obra, no qual o empregado da empresa contratada é posto à disposição e sob as ordens da empresa contratante — a empresa tomadora. Contratos entre empresas podem ser lidas como expressão real e fundamental da liberdade da livre iniciativa e do direito de propriedade. Não havendo, na relação, indícios de prestação pessoal de serviços subordinados, elementos essenciais do vínculo empregatício, pode-se entender como inadequada a limitação dos negócios civis interempresariais em decorrência da aplicação disposições trabalhistas, sem que isso implique violação aos direitos fundamentais do trabalhador, a partir de uma visão mais rica sobre a responsabilidade social dos envolvidos na cadeia econômica. A exemplo do que se disse em relação ao caso anterior, situar o debate da questão no conceito de atividade-fim pode obscurecer o debate.

Por fim, a identificação da real aplicabilidade da Súmula 331/TST resolveria de imediato a discussão posta na ADPF 324. Bem pensadas as coisas, o que se pretende na referida ação é que o STF impeça que a limitação quanto à atividade-fim seja imposta a casos relativos a negócios interempresariais.

A aplicação irrestrita da Súmula 331/TST, embora vista por alguns como fonte de prestígio dos postulados do Direito do Trabalho, verdadeiramente, importou em desgaste do conceito e dos valores nela refletidos (sem ignorar, aqui, o seu importante papel regulador). Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a reflexão do tema a partir da reconstrução histórica de sua significação, considerando o mundo que nos cerca e os valores constitucionais que nos inspiram.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] O embate entre o Supremo Tribunal Federal e a jurisdição ordinária, 2 de março de 2013. http://www.conjur.com.br/2013-mar-02/observatorio-constitucional-embate-entre-stf-jurisdicao-ordinaria

Autores

  • é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP), mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor do IDP e advogado.

  • é doutorando e mestre em Direito do Trabalho pela USP, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e advogado.

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