Retrospectiva 2016

Direitos fundamentais viveram série de retrocessos no plano fático e jurídico

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30 de dezembro de 2016, 7h10

Os direitos humanos e os direitos fundamentais não tiveram sossego em 2016, tendo sido objeto de ampla polêmica, o que, embora a nossa atenção esteja centrada no Brasil, se verificou em todo o mundo. Aliás, em que pesem avanços relevantes em diversos níveis, há motivos de sobra para lamentar uma série de retrocessos, seja no que diz respeito aos níveis de efetividade dos direitos humanos e fundamentais — doravante simplesmente direitos fundamentais! —, dada a frequência e intensidade de sua violação no plano fático e jurídico, seja em termos de perspectivas quanto ao futuro.

Com efeito, quanto ao plano doméstico, basta lembrar — em caráter meramente ilustrativo — os índices lamentáveis de criminalidade e violência (conforme o último relatório sobre o tema — dados de 2015 —, das 50 cidades mais violentas do mundo, quase a metade é brasileira), os crescentes níveis de intolerância, o precário estado das prestações sociais, em especial quanto à educação e à saúde, ademais de reformas legislativas em andamento, que ao menos em parte colocam ainda mais em risco alguns direitos essenciais ao Estado Democrático de Direito. 

Já o cenário internacional não se revela mais sorridente, pois em 2016 tivemos o agravamento de uma série de problemas em termos de respeito, proteção e promoção dos direitos fundamentais, como dão conta os diversos ataques terroristas, o recorde quanto aos níveis de emissão de carbono na atmosfera, o aumento exponencial do número de refugiados, que, juntamente com o terrorismo, encontra-se associado à elevação dos índices de xenofobia, intolerância e discriminação, a crise econômica e a consequente redução da segurança social, somando ao aumento do desemprego em muitos países (inclusive no Brasil). Além disso, há que lamentar os constantes ataques à democracia e à liberdade de expressão, que colocam em cheque as instituições do Estado Constitucional na condição de Estado Democrático de Direito. Até mesmo a integração supranacional (que, em expressiva medida, se dá em torno da gramática dos direitos fundamentais) anda sendo colocada em cheque, bastando aqui referir a decisão da Inglaterra no sentido de se retirar da União Europeia.

Assim, é possível perceber que 2016 representou, de certo modo, uma continuidade em relação a 2015, mas com tendencial agravamento do quadro, o que, por outro lado, não quer dizer que não se registram importantes avanços tanto na seara legislativa quanto jurisprudencial. De todo modo, trate-se de avanços ou de retrocessos, é priorizando a experiência nacional ao longo do ano que ora finda que iremos avançar com o nosso breve inventário e sumária análise.

Na esfera criminal, embora indispensável que o Estado, cada vez menos presente em diversos ambientes (triste destaque para as vilas e favelas, mas também em alguns círculos mais favorecidos pela riqueza), assuma a sua responsabilidade em matéria de segurança pública e combate da criminalidade, a fragilidade de sua atuação e mesmo o seu descaso fazem do Estado um fator de estímulo e mesmo perpetuação do assim designado fascismo societal (Boaventura S. Santos). Tal fascismo não é tão somente tanto reflexo quanto causa de uma polarização social, econômica e cultural, mas também se revela como elemento catalisador de mais violência real e simbólica, incluindo uma erosão do próprio significado e alcance dos direitos fundamentais, que passam a ser encarados como algo distante do mundo real, circunscritos ao mundo acadêmico, na medida em que este nem sempre responde de forma propositiva e crítica em relação às violações de direitos.

No domínio da política criminal, por sua vez, aumenta o recurso à legislação simbólica e casuística e, o que é pior, nem sempre com o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais, tudo a contribuir — o que se verifica também em algumas decisões judiciais — para uma gradual erosão (ao menos parcial) de institutos basilares do Estado de Direito.

Talvez o exemplo mais emblemático no Brasil seja o caso da execução provisória da pena, alvo de tanto aplauso na esfera da opinião pública e publicada, ademais de consagrada (novamente) pelo STF. No plano legislativo, o projeto de lei de iniciativa popular propondo dez medidas contra a corrupção, que igualmente tem sido objeto de acirrada controvérsia, seja quanto ao seu conteúdo, seja no que diz respeito ao seu trâmite (basta referir a recente celeuma no STF, resultante da decisão monocrática do ministro Luiz Fux), merece amplo destaque.

Os dois casos selecionados (execução provisória da pena e projeto de lei com medidas contra a corrupção) bem ilustram aquilo que em colunas anteriores designamos de uma espécie de “maquiavelismo jurídico”, sem que com isso se esteja a comparar em si os protagonistas com a figura do ilustre autor florentino e nem com sua subjacente desvinculação da política e das ações dos governantes da moral. O que se toma emprestado (e por isso o uso da expressão) é apenas a ideia — que, aliás, é ínsita ao próprio princípio da proporcionalidade e da vedação do arbítrio — de que nem mesmo o mais nobre dos fins (e a nobreza dos fins não está em causa, muito antes pelo contrário, dada a urgência do combate à corrupção e ao crime organizado) poderá justificar, num Estado de Direito que assim o pretenda ser na sua plenitude — a adoção de qualquer meio.

A execução provisória da pena, chancelada por apertada maioria no STF, embora tenha sido justificada com base na necessidade de estabelecer um regime de igualdade entre os assim chamados criminosos do “colarinho branco” e a grande massa dos acusados e presos no Brasil, bem como para compensar e corrigir aspectos patológicos do sistema judiciário e processual, não se sustenta. Em primeiro lugar, pelo fato de literalmente atropelar a regra (e não o princípio) da presunção de inocência tal qual enunciado na CF, que pressupõe o trânsito em julgado da formação definitiva de um juízo de culpa. Além disso, verifica-se uma ofensa às exigências da proporcionalidade, porquanto na esteira da lógica do critério da necessidade (ou do menor sacrifício) haveriam de ser utilizados meios mais gravosos, como, por exemplo, autorizar o decreto de prisão preventiva quando da confirmação da condenação no segundo grau de jurisdição e em se tratando de pena privativa de liberdade a ser cumprida em regime fechado, ainda que também aqui seja possível esgrimir objeções.

Outro aspecto a ser considerado — e isso é perceptível já nas reformas e inovações no campo do combate ao crime organizado e na Lei de Drogas, mas de modo ainda mais agudo no projeto de lei com as medidas contra a corrupção — é o incremento de medidas de investigação e coleta de provas que implicam fortes restrições a direitos e garantias fundamentais, assim como eventuais abusos evidentes no manejo de meios já consagrados e em si amplamente praticados e juridicamente chancelados pelos tribunais constitucionais mais respeitados e mesmo na esfera supranacional, com destaque aqui para a União Europeia.

Nessa senda, resulta evidente que os direitos fundamentais não são absolutos e que restrições são constitucionalmente legítimas, desde que impostas com respeito às eventuais reservas legais, em especial as qualificadas (como no caso do sigilo de comunicação) e em sintonia com as reservas de jurisdição, mas também afinadas com as exigências da proporcionalidade e a preservação do respectivo núcleo essencial do direito afetado.

Mas não é isso que se constata em diversos casos, seja na prática diuturna da jurisdição, seja no que diz com medidas legislativas. A interpretação demasiadamente aberta da noção de flagrante delito especialmente nas hipóteses de tráfico de drogas para justificar o ingresso forçado (muitas vezes com base no argumento de mera suspeita) no domicílio sem mandado judicial, atualmente já mitigada pelo STF (a decisão mais relevante, em sede de repercussão geral, foi objeto de comentário em coluna de 2015), é apenas um caso entre muitos. Da mesma forma, abusos quanto ao tempo de duração de escutas telefônicas sem mesmo uma motivação consistente, eventual leniência com vazamentos, assim como o manuseio da escuta ambiental, dão conta de algumas perplexidades e indicam a necessidade de algumas correções de rumo.

A tendência de justificar técnicas mais invasivas da esfera pessoal na seara do combate ao crime e à corrupção, muito embora retrate uma tendência forte em todos os recantos do mundo, ainda mais depois do fatídico 11 de Setembro, não pode, contudo, resultar sem contraponto e ajuste aos parâmetros mínimos do Estado de Direito, existindo alternativas compatíveis. Assim, por exemplo, ao passo que nos EUA o abate de aviões com civis a bordo e tripulados por terroristas se revela possível, o Tribunal Constitucional da Alemanha considerou tal medida inconstitucional, o mesmo ocorrendo em outros casos nos quais a tradição alemã e europeia prevalente é mais protetiva. Isso demonstra que tanto o legislador quanto a jurisdição constitucional (mas não apenas esta) podem ser mais ou menos deferentes para com intervenções mais intensas nos direitos fundamentais. Mas também evidencia que o binômio segurança-liberdade não precisa ser resolvido, necessariamente, em prol da segurança, mas, sim, à feição de que mais segurança também pode garantir mais liberdade. Esse, portanto, um importante e urgente desafio a ser enfrentado.

Na seara das liberdades fundamentais, destaca-se a tendência — controversa — de o STF reconhecer para o ambiente doméstico e a despeito das peculiaridades da CF, uma posição preferencial da liberdade de expressão, no mínimo ampliando a sua esfera de proteção. Se em 2015 foi o caso de afastamento da necessidade de autorização prévia do biografado para a confecção de uma biografia por terceiros, em 2016 o STF reconheceu que a utilização de tatuagem no corpo não poderia servir de causa para não seleção em concurso público (no caso, para a Polícia Militar), desde que a tatuagem não fosse aparente, mas, especialmente, se ofensiva aos valores constitucionais, o que, embora o aplauso majoritário, não deixou (justamente) de ser criticado pelo fato de que estaria aberta uma brecha muito ampla e sujeita a manuseio abusivo e demasiadamente restritivo da liberdade pessoal.

Outro caso relevante, com repercussão maior na seara ambiental, é o da prática da “vaquejada”, modalidade de prática cultural e desportiva, que, a partir de legislação do Ceará, foi levado ao STF e lá, por maioria, julgado incompatível com a proibição de crueldade com os animais tal como estabelecida expressamente pela CF. Aqui, de acordo com o que foi discutido em coluna anterior, percebe-se uma predileção pela argumentação baseada em princípios, e não com o devido relevo de que no caso o que está em causa é violação de regra e, portanto, em princípio, inadequado o recurso à ponderação. A crítica, todavia, não se dirige em si ao resultado do julgamento, pois aderimos ao entendimento que prevaleceu na corte, em síntese, no sentido de que práticas culturais e desportivas que impliquem — de modo demonstrado caso a caso — crueldade com os animais, são vedadas pela CF. A objeção aqui sumariamente veiculada dirige-se apenas a alguns dos aspectos relativos à motivação, mas que aqui não voltarão a ser mais explorados.

Em matéria de direitos sociais, há também muito a relatar, mas também a lamentar, aqui sendo viável apenas apresentar um pequeno recorte. 

No plano jurisprudencial, o assim designado (pessoalmente não concordamos com o uso que em geral tem sido feito da expressão) ativismo judicial se revela particularmente intenso, com amplo destaque para as ações envolvendo o direito à saúde e o seu impacto sobre o SUS e o orçamento público. O caso emblemático e controverso da “pílula contra o câncer” já havia propiciado uma retomada do debate, que, atualmente, segue sendo travado no STF, em especial no que diz respeito ao tratamento de doenças consideradas raras e/ou de alto custo. O julgamento da matéria, já iniciado, segue pendente, mas pode indicar uma ao menos parcial alteração de rumo em relação ao que a nossa mais alta corte vinha decidindo sobre a matéria, admitindo em muitos casos direitos subjetivos a prestações sociais (e não apenas na área da saúde) ainda que o objeto do pedido (a prestação em si) não tivesse sido assegurado por alguma política pública já existente.

Que eventual mudança de entendimento por parte do STF (a gerar um importante “efeito em cascata” sobre os demais órgãos jurisdicionais brasileiros) poderá ser não necessariamente positiva e mesmo representar, ao menos da perspectiva do titular do direito, um retrocesso significativo, por ora não pode ser prognosticado, mas é no mínimo fator de alguma apreensão. Por mais que uma exclusão total ou parcial da obrigatoriedade do Estado em custear determinados tratamentos possa atender a outros reclamos legítimos, coloca-se em risco até mesmo a vida de pessoas pelo simples fato aleatório de terem sido acometidas (ou nascidas) de uma doença rara. Que a solução não é simples e o problema é grave, não há de ser questionado, mas que a adoção de uma lógica do “tudo ou nada” causa grande e justificada preocupação pelas suas consequências, também é algo a ser devidamente considerado e exige intensa e permanente vigilância.

Por fim, é possível afirmar que as maiores ameaças aos direitos fundamentais sociais, e isso em relação a diversos direitos e com diferente repercussão e gravidade, provêm do Poder Legislativo, mediante provocação do Poder Executivo.

Dada a quantidade de questões que aqui poderiam ser inventariadas e discutidas, selecionamos apenas duas.

Reforma de grande impacto, sem dúvida urgente e necessária para corrigir algumas importantes disfunções, é a da Previdência Social, verificando-se algumas evidentes patologias do ponto de vista da constitucionalidade de alguns aspectos. Em caráter ilustrativo, é possível afirmar que, a prevalecer a proposta na forma atual, a ausência de previsão de medidas de transição complementares, especialmente para quem ainda não tiver completado 50 anos de idade quando da promulgação, fere de morte o instituto da segurança jurídica (proteção da confiança legítima) e mesmo viola as exigências da proporcionalidade. Isso pelo fato de que não se pondera proporcionalmente o tempo de contribuição pretérito em relação ao tempo total de contribuição, sendo que a proteção da confiança e da expectativa de direito deverá sempre ser tanto mais alta quanto maior o tempo já completado de contribuição. De tal sorte, a idade segue sendo um critério relevante, mas insuficiente se não complementado por outros indicadores a compor um conjunto de regras de transição proporcionais. Espera-se, portanto, que o próprio Congresso Nacional promova os ajustes necessários, e, se isso não ocorrer, que o STF venha a corrigir o problema, pois, se existe uma certeza, é a de que a matéria será objeto de controle de constitucionalidade.

Já num outro plano e mesmo mais preocupante, até mesmo pelo fato de a emenda constitucional (no caso, a EC 95) já ter sido promulgada, é o impacto do estabelecimento de um teto de despesas públicas para o financiamento dos direitos sociais, em especial dos direitos à saúde e educação, para os quais existem (e foram ao menos formalmente mantidos) regras constitucionais próprias estabelecendo um piso (e não um teto) de alocação da receita pública. Ora, mesmo um congelamento ao nível do piso (se este passar a ser considerado como teto) poderá gerar um descumprimento do dever de progressividade na realização dos direitos sociais, tal como estabelecido pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e, portanto, já poderá ser considerado um retrocesso, mas também pelo fato de que a manutenção de valores nominais, ainda mais tendo em conta o aumento descontrolado e inflacionário do custo de medicamentos e outros produtos na seara médica, por si só já implicará uma redução na cobertura. Assim, em sendo demonstrado que restará afetado o núcleo essencial dos direitos sociais à saúde e à educação também aspectos da EC 95, espera-se sejam declarados inconstitucionais. De todo modo, trata-se de tema já versado em outras colunas da nossa lavra bem como em colunas qualificadas, dentre as quais destacamos as de Élida Graziane Pinto, Fernando Scaff, Maurício Conti e Heleno Torres.

Com isso, cientes de que aqui apresentamos apenas uma pequena amostra de questões atuais e relevantes que marcaram a evolução legislativa e jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais em 2016, fica a nossa esperança de que tenhamos ao menos levantado alguns problemas e inspirado alguma reflexão. Que 2017 seja marcado por mais respeito e maior consideração, proteção e promoção dos direitos fundamentais.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Desembargador no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

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