Tribuna da Defensoria

Defensoria precisa assumir quatro responsabilidades para ser poder popular

Autor

  • Caio Paiva

    é defensor público federal especialista em ciências criminais membro do Grupo de Trabalho da Defensoria Pública da União sobre Presos e coautor do livro “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos” (no prelo pela Editora Dizer o Direito).

22 de maio de 2015, 11h22

Nessa semana se comemora o aniversário da Defensoria Pública[1]. É difícil conter a vontade de ressaltar o quanto o trabalho dos defensores públicos contribui para a construção de uma sociedade mais livre, justa, solidária e fraterna, que não há democracia verdadeira sem acesso à Justiça, que a instituição projeta e dá visibilidade para causas que muito pouco ou nada importavam para outras carreiras jurídicas[2] (cito como exemplos a revista vexatória em familiares de presos, a discussão em torno do grande encarceramento a partir da audiência de custódia, a defesa da dignidade da população em situação de rua etc). É igualmente irresistível a vontade de expor aqui as dificuldades que a Defensoria enfrenta no seu dia a dia, vítima de verdadeiros golpes governamentais que transformam o que seria uma travessia num calvário institucional. No entanto, estrearei essa coluna Tribuna da Defensoria falando das responsabilidades dos defensores públicos na formatação de uma instituição que não se afaste dos seus ideais e de quem justifica a sua existência: os cidadãos usuários[3] da assistência jurídica gratuita.

A “Defensoria do Futuro”, na minha concepção, deverá se tornar um “poder popular”, mas para isso necessitará assumir pelo menos as quatro responsabilidades que descrevo a seguir:

1 — Abertura à participação popular na Defensoria Pública
Se o encastelamento é uma estratégia para outras instituições, para a Defensoria tal atitude se afigura como verdadeiro suicídio institucional. O usuário do serviço de assistência jurídica gratuita deve ter a possibilidade de participar de determinados espaços de diálogos institucionais, abertura essa que proporciona, nas palavras de Luciana Zaffalon, “uma compreensão mais exata do quadro de exclusão da ordem jurídica que precisa ser superado, do que precisa ser priorizado”, de modo que a participação popular contribui para que “as desigualdades aflorem na forma de questões prioritárias e passíveis de soluções coletivas que caminhem para a efetivação da Justiça, superando-se necessariamente os entraves linguísticos e operacionais vinculados ao exercício do Direito”[4].

Passo importante e decisivo dado neste sentido se encontra na previsão da Ouvidoria-Geral, órgão auxiliar das Defensorias Públicas inserido na LC 80/94 pela LC 132/2009, que deve servir como a ponte entre a instituição e a sociedade, a fim de que sejam captadas e discutidas informações relativas às políticas de atendimento, avaliação do serviço oferecido mediante pesquisas de satisfação dos usuários, monitoração do cumprimento das funções primordiais da Defensoria Pública etc.

O modelo de Ouvidoria-Geral acolhido pela LC 132/2009 foi o de eleger um membro externo à carreira de defensor público, no que agiu corretamente o legislador. A Ouvidoria externa representa, conforme ressalta Amélia Soares da Rocha, uma vacina contra o corporativismo[5] e pode servir para uma oxigenação constante da instituição através de um controle social e proativo de suas pautas. Como meio de potencializar este mecanismo de participação popular na Defensoria, defendo, inclusive, que a LC 80/94 deveria ser reformada para garantir que o Ouvidor-Geral tenha não apenas direito de assento e voz nas reuniões do Conselho Superior das Defensorias, mas também direito de voto. Democracia (substancial) requer efetiva participação nas deliberações.

A participação popular na Defensoria, porém, deve ter os seus limites. A LC nacional falha ao não prever mecanismos de destituição do Ouvidor-Geral. Acertada a previsão encontrada na LC 14130/2012, do estado do Rio Grande do Sul, que prevê em seu artigo 41, parágrafo 2º, que “A destituição do Ouvidor-Geral dependerá de decisão do Conselho Superior da Defensoria Pública, mediante votação de 2/3 (dois terços) de seus membros, em decisão motivada, em caso de abuso de poder ou ato de improbidade, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa”. Outro limite à figura do Ouvidor-Geral, não previsto na LC nacional, que somente faz menção à exigência da dedicação exclusiva, é a necessidade de o Ouvidor-Geral não exercer atividade político-partidária. A Ouvidoria não pode servir para aparelhamento político-partidário das Defensorias.

Finalmente, a participação popular na Defensoria, em especial por meio da sociedade civil organizada e entidades de proteção dos direitos humanos, abre a instituição para um diálogo inclusivo, superando-se, portanto, a lógica burocrática e hermética tradicionalmente encontrada no serviço público.

2 — A educação em direitos como forma de promover a difusão dos direitos humanos e a solução extrajudicial dos conflitos
O defensor público não é um mero advogado do pobre, um profissional cuja atividade se resume a postular em juízo o direito do cidadão. A Defensoria deve se apresentar para o cidadão carente como uma via emancipatória, como uma possibilidade de superação do modelo judicializante. A educação em direitos consiste numa função institucional da Defensoria Pública, conforme prevê o artigo 4º, III, da LC 80/94: “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”. Ao lado de tal função caminha a de promover — prioritariamente — a solução extrajudicial dos litígios (artigo 4º, II, da LC 80/94). Acesso à justiça não se confunde com acesso ao Poder Judiciário. A educação em direitos confere uma nova dimensão ao exercício da cidadania, podendo até atuar na prevenção de conflitos ou numa compreensão menos armada sobre estes. Daí, portanto, a lição dos defensores públicos do estado do Rio Grande do Sul, Domingos Barroso da Costa e Arion E. de Godoy, no sentido de que esse percurso avulta o papel da Defensoria enquanto mediadora da inserção legítima do sujeito nos sistemas de poder, de modo que “Ao assegurar aos vulneráveis o acesso ao instrumental necessário para inserirem-se na linguagem do poder e se comunicarem a partir de seus símbolos, a Defensoria Pública viabiliza sua atuação já na condição de cidadãos capazes de influenciar nas tomadas de decisão, assim se convertendo em agentes transformadores, seja de sua própria história, seja da sociedade que integram”[6].

Quando se fala em educação em direitos[7], é preciso que se compreenda tal função institucional para além do ensino tradicional verticalizado, no qual o membro da Defensoria seria o portador do saber e a população mera destinatária passiva deste conhecimento. A difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico obrigam a que a Defensoria se comunique com a população com linguagem e método menos herméticos, tendo vocação institucional para participar desde eventos de educação para crianças e jovens até em debates comunitários sobre pleitos e temas que de algum modo interferem na vida dos cidadãos carentes. Para o pleno exercício desta atividade, obviamente que as Defensorias Públicas necessitarão de um considerável aumento nos seus quadros de defensores e servidores, assim como de uma estrutura adequada.

A palavra, porém, jamais será neutra. A educação em direitos, portanto, inevitavelmente se dará a partir de preconcepções de mundo, de sociedade e de relações de poder. Entre os objetivos da Defensoria Pública (artigo 3º-A da LC 80/94) está a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais, assim como a prevalência dos direitos humanos. Tais bandeiras deverão nortear a atividade da educação em direitos: educar para libertar, e não para oprimir.

3 — A assunção de uma postura ideológica
Da participação popular na Defensoria e da educação em direitos surge a necessidade de a instituição assumir uma postura ideológica. Não se trata, aqui, de uma doutrinação, e sim de um discurso que se ajuste aos objetivos e às funções institucionais da Defensoria Pública. A instituição não deve se calar diante de temas polêmicos nem temer por, em determinadas ocasiões, ser a voz contramajoritária. Alguém deve falar pelos excluídos, pelos rejeitados e pelas minorias. Essa voz deve atravessar o Poder Legislativo, manter-se firme e independente diante do Poder Executivo e chegar no Poder Judiciário através de uma defesa intransigente dos direitos humanos. E que não nos enganemos: a fuga para um falso esconderijo de neutralidade (também) é uma forma de exercício de ideologia.

4 — A superação do modelo defensor-auxiliar do Poder Judiciário
Os membros da Defensoria Pública não devem se comportar como meros auxiliares do Poder Judiciário, que tudo fazem para agradar o Tribunal em troca de um bom relacionamento institucional. Notadamente na área penal, ressalta Amilton Bueno de Carvalho, “Ao defensor — apesar da luta expressamente desigual (daí, repito, a necessidade de proteção ao acusado) — compete, quase no limite do impossível, buscar igualizar o desigual”[8]. Não se negocia o direito dos outros. A Defensoria representa, por excelência, a contenção do poder punitivo e do abuso de autoridade. O usuário da assistência jurídica gratuita deve receber uma proteção integral, o que passa, a meu sentir, por uma condução do processo (seja ele penal, cível, previdenciário etc.) de forma ética e responsável pelo defensor público, que deve estar sempre atento para reduzir os danos — naturalmente — provocados pela judicialização. O relacionamento com as demais instituições deve se pautar, então, pelo respeito e pela deferência, mas jamais pela submissão.

Autonomia para quê(m)?
Se a “Defensoria do Futuro” deverá representar um “poder popular”, logicamente devemos responder, portanto, que a autonomia sempre deverá estar a serviço da consecução dos objetivos e das funções institucionais da Defensoria Pública. Ser autônoma para caminhar livre de ingerências arbitrárias do Poder Executivo. Ser autônoma para ser forte, independente, para se defender dos golpes. Ser autônoma para que quando, no apagar das luzes, e ninguém mais se importar com eles, que se levante a última trincheira de proteção dos direitos humanos dos cidadãos carentes: viva a Defensoria Pública!

*A coluna Tribuna da Defensoria será publicada às terças-feiras na ConJur.

 


[1] A Lei federal nº. 10448/2002 instituiu o dia 19 de maio como sendo o “Dia Nacional da Defensoria Pública”. A escolha desta data é uma homenagem a Santo Ivo, o padroeiro dos advogados, defensores públicos e demais profissionais que lidam com a Justiça.

[2] Menciono “carreiras jurídicas”, aqui, como instituições de Estado, e não entidades privadas de proteção dos direitos humanos, que são pioneiras e lideram a discussão de inúmeras pautas.

[3] A tradicional referência aos usuários dos serviços prestados pela Defensoria como sendo os seus “assistidos” deve ser evitada, porquanto assistência pode induzir a um estado de incapacidade que diminui o cidadão e o coloca numa relação vertical com o defensor público, sendo que o ideal é que esta relação se estabeleça na horizontal. Neste sentido, vale ressaltar a lição de Anitua, para quem, da mesma forma que não se pode educar desde o “princípio da hierarquia”, tampouco se pode defender alguém se valendo deste princípio, “já que desta maneira se lhe impõe no lugar da diferença subordinada ou inferiorizante ao defendido”. A ideia de uma defesa pública eficaz, conclui Anitua, “será a que se ponha ao lado (e não acima) do que tem uma necessidade. E isso é importante porque ao defender assim, nós defendemos a todos” (ANITUA, Gabriel Ignacio. La defensa pública como garantía de acecco a la justicia. In Revista del Ministerio Público de la Defensa (Argentina). Ano V – nº. 7 – maio – 2011, p. 83).

[4] CARDOSO, Luciana Zaffalon Leme. Fendas Democratizantes: mecanismos de participação popular na Defensoria Pública e o equacionamento da luta social por oportunidade de acesso à justiça. In RUGGERI RÉ, Aluisio Iunes. Temas Aprofundados: Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 37.

[5] ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013, p. 203.

[6] COSTA, Domingos Barroso da. Educação em Direitos e Defensoria Pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva. Curitiba: Juruá, 2014, p. 90.

[7] O tema da educação em direitos é desafiador e merece um texto exclusivo aqui, na Tribuna da Defensoria, para tratar de suas várias implicações. Por ora, recomendo a leitura da excelente obra indicada na nota anterior, escrita pelos membros da DPE/RS, Domingos e Arion.

[8] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 25.

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